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+ brasil 504 d.C.
Misticismo de Andrei Tarkóvski e "cinema de montagem" de Dziga Vertóv escancaram os limites e as contradições do modernismo
A sina de ser moderno
Hermano Vianna
Tem gente que afirma, com graus
de sinceridade e preocupação
bem variáveis, que o problema
maior da arte contemporânea, em
todas suas mídias -da literatura ao cinema-, é falta de projetos de qualidade.
Não faço parte dessa turma nem comungo desse diagnóstico. O problema para
mim é exatamente o contrário: sou cotidianamente bombardeado por tanta coisa boa que não tenho tempo nem de
acompanhar uma parcela reduzidíssima
do que me interessa.
Há CDs que adoro, mas que tenho certeza de que não vou nunca escutar pela
segunda vez. Há DVDs que, não contentes em disponibilizar cinematografias
com as quais nunca tive contato, ainda
me torturam com uma quantidade avassaladora de extras que nunca vão atingir
minhas retinas. Há, no meu browser,
uma lista enorme de endereços de páginas da Web que só não deleto por masoquismo, pois sei que, quando conseguir
seguir seus links, sempre vou descobrir
algum trabalho que acabará me interessando demais, mais do que deveria, desviando dessa maneira minha atenção de
outras coisas que também me interessavam demais e assim por diante, numa
perdição informacional embriagante,
portanto produtora de ressacas atrozes.
Howard Becker, um dos mais importantes sociólogos formados pela Escola
de Chicago, uma vez me disse -quando
o apresentei para um MOO [ambiente
imersivo virtual] precursor dos games
on-line da internet- que nunca mais
entraria naquele antro virtual, não porque não tivesse gostado do que viu lá,
mas sim porque aquilo o atraía tanto e o
levaria para tantos outros lugares interessantes que preferia cortar o novo bem
pela raiz.
Seguindo essa sua receita bem pragmática, me recusei até bem recentemente a
ter um aparelho de DVD. Porém tive que
comprar um novo computador, que veio
com DVD, e aí não teve jeito: um novo
horizonte de tentação se abriu na minha
vida. Como se não bastasse a possibilidade de ver filmes novos, essas novas mídias ainda nos fazem o favor de relançar
toda a história do cinema mundial até
agora. Com a eficiência globalizada da
distribuição via internet, o que antes era
absolutamente inacessível agora passa a
estar à distância apenas de alguns cliques
de mouse e da digitação de nosso número de cartão de crédito.
A dificuldade então é como filtrar essa
quantidade colossal de informações ou
como organizar nossas listas de prioridades de consumo e iluminação cultural.
Antigamente os cadernos culturais dos
jornais pretendiam ocupar o papel de filtros ou guias. Mas hoje eles também estão perdidos, não conseguem mais
acompanhar criticamente tudo o que é
lançado e acabam se rendendo aos filtros
dos departamentos de marketing de gravadoras, editoras e estúdios de cinema,
deixando grande parte da produção artística atual, muitas vezes o que ela tem
de mais interessante, num limbo de silêncio e nenhuma divulgação.
Geralmente, o que os cadernos culturais publicam são matérias na hora do
lançamento, notas rápidas, e o que precisa de tempo para digestão e análise cai
automaticamente no ostracismo do
"sem palavras". Foi o que aconteceu, por
exemplo, com a magnífica caixa de
DVDs [Continental, tel. 0/xx/11/5052-6311] que tornou disponível no Brasil, no
final de 2003, todos os filmes de Andrei
Tarkóvski, além -é claro- de uma
quantidade sufocante de extras que vasculham toda a obra do diretor russo.
Vou logo avisando: sou fã, tiete doente,
de Andrei Tarkóvski. Quase dei um troço (para citar enviesadamente o título do
recém-relançado livro do meu querido
Waly Salomão -que tem um novo prefácio brilhante de Antônio Cícero, por sinal), pensando no dinheiro que seria
obrigado a gastar para ter aquela caixa
(na verdade três caixas), quando vi o lançamento numa loja. Passei muitos anos
da minha vida, entre vários cineclubes e
cinematecas, para conseguir ver todos os
filmes. Até o lançamento dessa coleção
de DVDs, a única forma ter contato com
Tarkóvski, aqui no Rio, era por meio das
cópias VHS entesouradas no videoclube
Polytheama. Mas agora estava tudo ali
na minha frente, totalmente e facilmente
-apesar da barreira dos muitos reais-
disponível.
O lançamento aconteceu quase em segredo, com a nobre exceção deste Mais!
[em 23/11/2003] e de poucas outras matérias. Não há espaço, não há tempo, não
é exatamente culpa de editores e jornalistas. Ironia: agora que podemos ter acesso
a tudo, ou quase tudo, falta a informação
básica, até para saber que tudo é esse que
está a nossa disposição.
Pois também não foi dada quase nenhuma atenção para o lançamento anterior de uma outra caixa de DVDs, que
também trazia um filme de Andrei Tarkóvski (a obra-prima "Andrei Rublev"),
junto com três de Dziga Vertóv (as também obras-primas "Um Homem com
uma Câmera", "Cinema-Olho" e "Réquiem para Lênin"), além do hilário "Aelita, a Rainha de Marte" (uma ficção
científica comunista de 1924), tudo isso
embalado sob o título -da caixa- "O
Cinema Revolucionário Soviético - vol.
2" [Continental].
Não tenho certeza se meus caríssimos
leitores já sabiam que esses títulos essenciais da história do cinema estão à venda
no Brasil. Portanto, este artigo deve ser
lido mais como um serviço de utilidade
pública e poderia terminar aqui com a
sensação de dever cumprido. Mas aproveito a oportunidade para fazer breves
comentários sugeridos pelo meu internamento febril, quando revi todos esses
filmes um atrás do outro, durante poucos feriados deste início de 2004. Os organizadores da caixa "O Cinema Revolucionário Soviético", benditos sejam eles,
certamente têm noção dos problemas
colocados pela aplicação do rótulo "revolucionário" nesse conjunto de filmes,
reunidos perigosamente e um tanto
quanto desconfortavelmente nessa caixa, e também da quase ironia de colocar
o símbolo da foice e martelo bem vermelho na frente do título "Andrei Rublev".
Cinema revolucionário pois ligado à
Revolução de Outubro e sua história? Ou
por propor uma estética revolucionária
dentro da história do cinema em geral?
Ou os dois sentidos ao mesmo tempo?
Não existem dois cineastas com concepções tão diferentes do que vem a ser
revolução, no cinema e na política, quanto Dziga Vertóv [1896-1954] e Andrei
Tarkóvski [1932-86]. Duvido de que conseguissem ficar muito tempo numa mesma sala sem brigar. O fato de seus filmes
estarem disponíveis numa única caixa
nos dá uma ótima oportunidade para
pensar essas diferenças e como nos colocamos hoje diante delas.
A verdade da Revolução
Dziga
Vertóv não era exatamente bem compreendido, mas podemos dizer que
mantinha -ou pretendia manter-
boas relações com os primeiros governos bolcheviques, aqueles mais esteticamente vanguardistas. Jean-Luc Godard
já disse que o cinema de Vertóv não era
cinema-verdade como entendemos
atualmente, quando o termo verdade é
usado de maneira vaga e politicamente
imprecisa, mas sim o cinema da verdade
da Revolução, daquela revolução específica: "kino-pravda", segundo Godard,
significava "simplesmente abrir os olhos
e mostrar o mundo em nome da ditadura do proletariado".
"Réquiem para Lênin", conhecido em
outras línguas como "Três Canções acerca de Lênin", é o cinema propaganda da
implantação dessa ditadura. Tão propaganda que até nos escandaliza e apavora,
mostrando como muitas das futuras demências stalinistas já encantavam o olho
da câmera radicalmente modernista de
Vertóv.
Nem Bush, em sua campanha contra
países islâmicos, teria permissão para
usar as imagens e o texto que abrem esse
filme. Tudo é bastante óbvio, quase burro. Enquanto lemos "meu rosto estava
numa prisão escura", vemos mulheres
com uma espécie de burca. Entra o próximo verso, "sendo conduzido para uma
vida cega", e então aparecem imagens de
muçulmanos rezando com a cabeça encostada no chão.
Mas, quando o texto diz que "um raio
de verdade começou a brilhar", nos deparamos logo com mulheres que tiram
seus véus e começam imediatamente a
ler um livro de -quem mais poderia
ser?- Lênin. Como eram ingênuos e tão
politicamente incorretos nossos antigos
revolucionários, não eram? O resto do
filme é o elogio do desenvolvimento proporcionado por Lênin para populações
que viviam na "escuridão" de costumes
religiosos condenados pela ditadura do
proletariado: chegam a eletricidade, as
fábricas, a universidade, a fazenda coletiva e até um avião que despeja herbicida
sobre as estepes.
Composição da "verdade"
Esse mesmo culto ao progresso mecânico, colocado no eixo "correto" pela revolução
proletária, aparece em "Um Homem
com uma Câmera". Só que nesse filme a
mecânica de destaque é a da lente da câmera cinematográfica e também a da
moviola que edita as imagens e do projetor que mostra o resultado para os espectadores. O processo de composição da
"verdade" fílmica pretende se revelar por
inteiro, e a montagem -antinaturalista- é a vedete, assim como nos videoclipes, todos eles herdeiros da revolução estética ali proclamada. Nesse campo, nada em Vertóv parece ingênuo.
Lendo os escritos de Tarkóvski, fico com a certeza de que o que ele acabou filmando é bem mais interessante do que as intenções que diz terem sido os motores da filmagem
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Nesse mesmo campo eu também me
sinto -ou tenho a petulância de me sentir- mais próximo do modo de pensar o
cinema proposto por Vertóv do que daquele advogado por Tarkóvski, de quem
nunca consegui tolerar um misticismo
que posso -petulantemente, é claro-
classificar de ingênuo e talvez de antimodernista ou de sintoma de mal-estar na
civilização moderna/modernista, que se
refletia numa crítica dura e militante
contra o que chamava de "cinema de
montagem" (tendo como inimigo geralmente Eisenstein, que, ainda segundo o
Godard dos anos 60, é um cineasta com
linguagem revisionista diante daquela
proposta por Vertóv), o que resulta numa visão quase cinematograficamente
religiosa de que as partes de um filme
verdadeiro se combinam "legítima e espontaneamente", quase como numa epifania, "devido a uma tendência interior
do material" filmado, resultante do "fluxo de tempo" contido em cada plano.
Também diferentemente de Vertóv,
mas em outra vertente, Tarkóvski -até
por já viver o desencanto do projeto revolucionário, tornado público oficialmente por Kruchev- não pode nunca
ser considerado nem nunca quis ser um
cineasta da propaganda do poder soviético. Pelo contrário: seus filmes tiveram
problemas de censura ("Andrei Rublev"
teve sua exibição proibida por vários
anos pelo governo Brejnev) não por advogar a contra-revolução capitalista ou
anunciar o que décadas mais tarde ficaria conhecido como a "glasnost", mas
por tocar em feridas abertas da "alma"
russa, naquilo que ela tem de mais dostoievskiano, com uma linguagem cinematográfica que, se não era fruto da editite de Vertóv, também não
parecia nada com realismo socialista ou
naturalismo hollywoodiano compreensível para os burocratas do Partido Comunista.
Tarkóvski não tinha bons olhos para o
"progresso" material que tanto encantou
Vertóv e outros primeiros modernistas
-comunistas, fascistas, anarquistas, liberais. Como um profeta, ele denunciava
ter a humanidade chegado a um ponto
"em que parecemos dominados por uma
incapacidade fatal de exercer nenhum
domínio sobre nossas conquistas materiais e de utilizá-las para o nosso bem".
O futuro é a catástrofe anunciada reiteradamente em seus filmes, do medievalismo ortodoxo de "Andrei Rublev" à estranha ficção científica de "Solaris" ou
"Stalker". Como antídoto, propõe uma
arte espiritualizada, que vê o mundo para além da mediação do conceito, como
se estivesse diante das coisas pela primeira vez. Seguindo essa trilha, descobrimos
que "a função da imagem artística é ser
uma espécie de detector do infinito... em
direção ao qual nossa razão e nossos sentimentos se elevam num ímpeto alegre e
arrebatador".
Já disse que há horas que esse blablablá
catastrófico de Tarkóvski me parece tão
ingênuo quanto a iluminação leninista
de Vertóv.
A construção de um sino
Fico me
perguntando o que me atrai tanto em
seus filmes. Penso -é uma obviedade
esse pensamento, mas mesmo assim
quero torná-lo explícito- que isso
acontece com todo grande artista: não é
preciso prestar tanta atenção no que eles
falam sobre o que fizeram ou o que pretendiam ter feito com suas obras, que
sempre são mais complexas do que as receitas que as produziram ou as bulas que
nos indicam os modos corretos de interpretá-las -ou de combater qualquer tipo de interpretação.
Lendo os escritos de Tarkóvski, inclusive o "kino-roman" que deu origem a
"Andrei Rublev", fico com a certeza de
que o que ele acabou filmando é bem
mais interessante do que as intenções
que diz terem sido os motores da filmagem ou de sua busca espiritual diante de
um mundo cuja situação atual tanto despreza -desprezo que eu, humildemente, me vejo na obrigação política ou vital
de desprezar.
Vide "Andrei Rublev", que traz no seu
final aquela bela cena -talvez uma das
mais belas e dramaticamente carregadas
cenas da história do cinema- da produção de um grande sino, comandada por
um adolescente que, depois de ter cumprido sua promessa, ao ouvir o sino finalmente badalando, confessa chorando
que mentiu ao dizer que conhecia o segredo daquele ofício. Mesmo tendo blefado, sai vitorioso. É essa vitória que faz
"Andrei Rublev" decidir voltar a pintar.
A vitória, tecnológica, do "falso" sineiro
nos leva a pensar -ou pelo menos me
levou a pensar, até contra os princípios
mais caros de Tarkóvski- que o fato de
não termos "nenhum domínio sobre
nossas conquistas materiais", inclusive
sobre o resultado dos filmes que produzimos, não nos impede de utilizar essas
conquistas para o nosso "bem".
A cena do sino é também um primor
cinematográfico por razões técnicas. São
planos longos, com movimentos de câmera extremamente bem coreografados,
captando o movimento preciso de multidões. A câmera vai e volta, dançando calmamente sobre a tensa ação. O tempo
flui dentro do plano, e não na edição.
Mas é, repito, também uma vitória técnica, de domínio sobre conquistas materiais (antes das gruas ciberneticamente
precisas dos dias atuais), tão "mecânicas" quanto as que tornaram possíveis a
montagem de "Um Homem com uma
Câmera", de Dziga Vertóv, com planos
curtíssimos captados quase sempre por
uma câmera num tripé, sem movimento
(mesmo no jogo de futebol, a impressão
de ação veloz é mais transmitida pelos
cortes da edição do que pelos planos em
que a câmera corre atrás dos jogadores).
Cerebralismo exibido
É interessante, nem que seja por mero exercício
de duvidosa retórica, imaginar a dupla
Vertóv-Tarkóvski como dois pólos do
modernismo. Parece um pouco a dupla
James Joyce-Guimarães Rosa. Bom sertanejo, Rosa imaginava-se -como Tarkóvski- um homem que "pensava no
infinito". Ele declarou: "Não estão certos,
quando me comparam com Joyce. Ele
era um homem cerebral, não um alquimista". Tarkóvski -para quem o "cinema de montagem" era um cerebralismo
exibido e autoritário- poderia falar o
mesmo de Vertóv, aliando-se a "Andrei
Rublev" -ingenuamente ou não- do
lado dos artistas alquimistas.
Colocar esses artistas em dupla, lado a
lado, é uma maneira de evidenciar as
contradições e os limites do modernismo, que pode ser pensado como uma espécie de "cinema de montagem" querendo escapar da montagem -para alcançar o real verdadeiro ou o espiritual absoluto-, mas sempre voltando para a
ilha de edição. Essas duplas, tão especiais
em suas diferenças, nos fazem também
ver que não há escapatória: podemos ir
de um pólo ao outro, mesmo pensando
atingir o mais radical antimodernismo,
mas estamos condenados -com cada
vez mais DVDs, CDs e o que mais vier
pela frente- a ser modernos.
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O
Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed.
Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na série
"Brasil 504 d.C.",do Mais!.
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