São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Misticismo de Andrei Tarkóvski e "cinema de montagem" de Dziga Vertóv escancaram os limites e as contradições do modernismo

A sina de ser moderno

Hermano Vianna

Tem gente que afirma, com graus de sinceridade e preocupação bem variáveis, que o problema maior da arte contemporânea, em todas suas mídias -da literatura ao cinema-, é falta de projetos de qualidade. Não faço parte dessa turma nem comungo desse diagnóstico. O problema para mim é exatamente o contrário: sou cotidianamente bombardeado por tanta coisa boa que não tenho tempo nem de acompanhar uma parcela reduzidíssima do que me interessa.
Há CDs que adoro, mas que tenho certeza de que não vou nunca escutar pela segunda vez. Há DVDs que, não contentes em disponibilizar cinematografias com as quais nunca tive contato, ainda me torturam com uma quantidade avassaladora de extras que nunca vão atingir minhas retinas. Há, no meu browser, uma lista enorme de endereços de páginas da Web que só não deleto por masoquismo, pois sei que, quando conseguir seguir seus links, sempre vou descobrir algum trabalho que acabará me interessando demais, mais do que deveria, desviando dessa maneira minha atenção de outras coisas que também me interessavam demais e assim por diante, numa perdição informacional embriagante, portanto produtora de ressacas atrozes.
Howard Becker, um dos mais importantes sociólogos formados pela Escola de Chicago, uma vez me disse -quando o apresentei para um MOO [ambiente imersivo virtual] precursor dos games on-line da internet- que nunca mais entraria naquele antro virtual, não porque não tivesse gostado do que viu lá, mas sim porque aquilo o atraía tanto e o levaria para tantos outros lugares interessantes que preferia cortar o novo bem pela raiz.
Seguindo essa sua receita bem pragmática, me recusei até bem recentemente a ter um aparelho de DVD. Porém tive que comprar um novo computador, que veio com DVD, e aí não teve jeito: um novo horizonte de tentação se abriu na minha vida. Como se não bastasse a possibilidade de ver filmes novos, essas novas mídias ainda nos fazem o favor de relançar toda a história do cinema mundial até agora. Com a eficiência globalizada da distribuição via internet, o que antes era absolutamente inacessível agora passa a estar à distância apenas de alguns cliques de mouse e da digitação de nosso número de cartão de crédito.
A dificuldade então é como filtrar essa quantidade colossal de informações ou como organizar nossas listas de prioridades de consumo e iluminação cultural. Antigamente os cadernos culturais dos jornais pretendiam ocupar o papel de filtros ou guias. Mas hoje eles também estão perdidos, não conseguem mais acompanhar criticamente tudo o que é lançado e acabam se rendendo aos filtros dos departamentos de marketing de gravadoras, editoras e estúdios de cinema, deixando grande parte da produção artística atual, muitas vezes o que ela tem de mais interessante, num limbo de silêncio e nenhuma divulgação.
Geralmente, o que os cadernos culturais publicam são matérias na hora do lançamento, notas rápidas, e o que precisa de tempo para digestão e análise cai automaticamente no ostracismo do "sem palavras". Foi o que aconteceu, por exemplo, com a magnífica caixa de DVDs [Continental, tel. 0/xx/11/5052-6311] que tornou disponível no Brasil, no final de 2003, todos os filmes de Andrei Tarkóvski, além -é claro- de uma quantidade sufocante de extras que vasculham toda a obra do diretor russo.
Vou logo avisando: sou fã, tiete doente, de Andrei Tarkóvski. Quase dei um troço (para citar enviesadamente o título do recém-relançado livro do meu querido Waly Salomão -que tem um novo prefácio brilhante de Antônio Cícero, por sinal), pensando no dinheiro que seria obrigado a gastar para ter aquela caixa (na verdade três caixas), quando vi o lançamento numa loja. Passei muitos anos da minha vida, entre vários cineclubes e cinematecas, para conseguir ver todos os filmes. Até o lançamento dessa coleção de DVDs, a única forma ter contato com Tarkóvski, aqui no Rio, era por meio das cópias VHS entesouradas no videoclube Polytheama. Mas agora estava tudo ali na minha frente, totalmente e facilmente -apesar da barreira dos muitos reais- disponível.

O lançamento aconteceu quase em segredo, com a nobre exceção deste Mais! [em 23/11/2003] e de poucas outras matérias. Não há espaço, não há tempo, não é exatamente culpa de editores e jornalistas. Ironia: agora que podemos ter acesso a tudo, ou quase tudo, falta a informação básica, até para saber que tudo é esse que está a nossa disposição.
Pois também não foi dada quase nenhuma atenção para o lançamento anterior de uma outra caixa de DVDs, que também trazia um filme de Andrei Tarkóvski (a obra-prima "Andrei Rublev"), junto com três de Dziga Vertóv (as também obras-primas "Um Homem com uma Câmera", "Cinema-Olho" e "Réquiem para Lênin"), além do hilário "Aelita, a Rainha de Marte" (uma ficção científica comunista de 1924), tudo isso embalado sob o título -da caixa- "O Cinema Revolucionário Soviético - vol. 2" [Continental].
Não tenho certeza se meus caríssimos leitores já sabiam que esses títulos essenciais da história do cinema estão à venda no Brasil. Portanto, este artigo deve ser lido mais como um serviço de utilidade pública e poderia terminar aqui com a sensação de dever cumprido. Mas aproveito a oportunidade para fazer breves comentários sugeridos pelo meu internamento febril, quando revi todos esses filmes um atrás do outro, durante poucos feriados deste início de 2004. Os organizadores da caixa "O Cinema Revolucionário Soviético", benditos sejam eles, certamente têm noção dos problemas colocados pela aplicação do rótulo "revolucionário" nesse conjunto de filmes, reunidos perigosamente e um tanto quanto desconfortavelmente nessa caixa, e também da quase ironia de colocar o símbolo da foice e martelo bem vermelho na frente do título "Andrei Rublev". Cinema revolucionário pois ligado à Revolução de Outubro e sua história? Ou por propor uma estética revolucionária dentro da história do cinema em geral? Ou os dois sentidos ao mesmo tempo? Não existem dois cineastas com concepções tão diferentes do que vem a ser revolução, no cinema e na política, quanto Dziga Vertóv [1896-1954] e Andrei Tarkóvski [1932-86]. Duvido de que conseguissem ficar muito tempo numa mesma sala sem brigar. O fato de seus filmes estarem disponíveis numa única caixa nos dá uma ótima oportunidade para pensar essas diferenças e como nos colocamos hoje diante delas.

A verdade da Revolução
Dziga Vertóv não era exatamente bem compreendido, mas podemos dizer que mantinha -ou pretendia manter- boas relações com os primeiros governos bolcheviques, aqueles mais esteticamente vanguardistas. Jean-Luc Godard já disse que o cinema de Vertóv não era cinema-verdade como entendemos atualmente, quando o termo verdade é usado de maneira vaga e politicamente imprecisa, mas sim o cinema da verdade da Revolução, daquela revolução específica: "kino-pravda", segundo Godard, significava "simplesmente abrir os olhos e mostrar o mundo em nome da ditadura do proletariado". "Réquiem para Lênin", conhecido em outras línguas como "Três Canções acerca de Lênin", é o cinema propaganda da implantação dessa ditadura. Tão propaganda que até nos escandaliza e apavora, mostrando como muitas das futuras demências stalinistas já encantavam o olho da câmera radicalmente modernista de Vertóv. Nem Bush, em sua campanha contra países islâmicos, teria permissão para usar as imagens e o texto que abrem esse filme. Tudo é bastante óbvio, quase burro. Enquanto lemos "meu rosto estava numa prisão escura", vemos mulheres com uma espécie de burca. Entra o próximo verso, "sendo conduzido para uma vida cega", e então aparecem imagens de muçulmanos rezando com a cabeça encostada no chão. Mas, quando o texto diz que "um raio de verdade começou a brilhar", nos deparamos logo com mulheres que tiram seus véus e começam imediatamente a ler um livro de -quem mais poderia ser?- Lênin. Como eram ingênuos e tão politicamente incorretos nossos antigos revolucionários, não eram? O resto do filme é o elogio do desenvolvimento proporcionado por Lênin para populações que viviam na "escuridão" de costumes religiosos condenados pela ditadura do proletariado: chegam a eletricidade, as fábricas, a universidade, a fazenda coletiva e até um avião que despeja herbicida sobre as estepes.

Composição da "verdade"
Esse mesmo culto ao progresso mecânico, colocado no eixo "correto" pela revolução proletária, aparece em "Um Homem com uma Câmera". Só que nesse filme a mecânica de destaque é a da lente da câmera cinematográfica e também a da moviola que edita as imagens e do projetor que mostra o resultado para os espectadores. O processo de composição da "verdade" fílmica pretende se revelar por inteiro, e a montagem -antinaturalista- é a vedete, assim como nos videoclipes, todos eles herdeiros da revolução estética ali proclamada. Nesse campo, nada em Vertóv parece ingênuo.


Lendo os escritos de Tarkóvski, fico com a certeza de que o que ele acabou filmando é bem mais interessante do que as intenções que diz terem sido os motores da filmagem


Nesse mesmo campo eu também me sinto -ou tenho a petulância de me sentir- mais próximo do modo de pensar o cinema proposto por Vertóv do que daquele advogado por Tarkóvski, de quem nunca consegui tolerar um misticismo que posso -petulantemente, é claro- classificar de ingênuo e talvez de antimodernista ou de sintoma de mal-estar na civilização moderna/modernista, que se refletia numa crítica dura e militante contra o que chamava de "cinema de montagem" (tendo como inimigo geralmente Eisenstein, que, ainda segundo o Godard dos anos 60, é um cineasta com linguagem revisionista diante daquela proposta por Vertóv), o que resulta numa visão quase cinematograficamente religiosa de que as partes de um filme verdadeiro se combinam "legítima e espontaneamente", quase como numa epifania, "devido a uma tendência interior do material" filmado, resultante do "fluxo de tempo" contido em cada plano.
Também diferentemente de Vertóv, mas em outra vertente, Tarkóvski -até por já viver o desencanto do projeto revolucionário, tornado público oficialmente por Kruchev- não pode nunca ser considerado nem nunca quis ser um cineasta da propaganda do poder soviético. Pelo contrário: seus filmes tiveram problemas de censura ("Andrei Rublev" teve sua exibição proibida por vários anos pelo governo Brejnev) não por advogar a contra-revolução capitalista ou anunciar o que décadas mais tarde ficaria conhecido como a "glasnost", mas por tocar em feridas abertas da "alma" russa, naquilo que ela tem de mais dostoievskiano, com uma linguagem cinematográfica que, se não era fruto da editite de Vertóv, também não parecia nada com realismo socialista ou naturalismo hollywoodiano compreensível para os burocratas do Partido Comunista. Tarkóvski não tinha bons olhos para o "progresso" material que tanto encantou Vertóv e outros primeiros modernistas -comunistas, fascistas, anarquistas, liberais. Como um profeta, ele denunciava ter a humanidade chegado a um ponto "em que parecemos dominados por uma incapacidade fatal de exercer nenhum domínio sobre nossas conquistas materiais e de utilizá-las para o nosso bem". O futuro é a catástrofe anunciada reiteradamente em seus filmes, do medievalismo ortodoxo de "Andrei Rublev" à estranha ficção científica de "Solaris" ou "Stalker". Como antídoto, propõe uma arte espiritualizada, que vê o mundo para além da mediação do conceito, como se estivesse diante das coisas pela primeira vez. Seguindo essa trilha, descobrimos que "a função da imagem artística é ser uma espécie de detector do infinito... em direção ao qual nossa razão e nossos sentimentos se elevam num ímpeto alegre e arrebatador". Já disse que há horas que esse blablablá catastrófico de Tarkóvski me parece tão ingênuo quanto a iluminação leninista de Vertóv.

A construção de um sino
Fico me perguntando o que me atrai tanto em seus filmes. Penso -é uma obviedade esse pensamento, mas mesmo assim quero torná-lo explícito- que isso acontece com todo grande artista: não é preciso prestar tanta atenção no que eles falam sobre o que fizeram ou o que pretendiam ter feito com suas obras, que sempre são mais complexas do que as receitas que as produziram ou as bulas que nos indicam os modos corretos de interpretá-las -ou de combater qualquer tipo de interpretação. Lendo os escritos de Tarkóvski, inclusive o "kino-roman" que deu origem a "Andrei Rublev", fico com a certeza de que o que ele acabou filmando é bem mais interessante do que as intenções que diz terem sido os motores da filmagem ou de sua busca espiritual diante de um mundo cuja situação atual tanto despreza -desprezo que eu, humildemente, me vejo na obrigação política ou vital de desprezar. Vide "Andrei Rublev", que traz no seu final aquela bela cena -talvez uma das mais belas e dramaticamente carregadas cenas da história do cinema- da produção de um grande sino, comandada por um adolescente que, depois de ter cumprido sua promessa, ao ouvir o sino finalmente badalando, confessa chorando que mentiu ao dizer que conhecia o segredo daquele ofício. Mesmo tendo blefado, sai vitorioso. É essa vitória que faz "Andrei Rublev" decidir voltar a pintar. A vitória, tecnológica, do "falso" sineiro nos leva a pensar -ou pelo menos me levou a pensar, até contra os princípios mais caros de Tarkóvski- que o fato de não termos "nenhum domínio sobre nossas conquistas materiais", inclusive sobre o resultado dos filmes que produzimos, não nos impede de utilizar essas conquistas para o nosso "bem". A cena do sino é também um primor cinematográfico por razões técnicas. São planos longos, com movimentos de câmera extremamente bem coreografados, captando o movimento preciso de multidões. A câmera vai e volta, dançando calmamente sobre a tensa ação. O tempo flui dentro do plano, e não na edição. Mas é, repito, também uma vitória técnica, de domínio sobre conquistas materiais (antes das gruas ciberneticamente precisas dos dias atuais), tão "mecânicas" quanto as que tornaram possíveis a montagem de "Um Homem com uma Câmera", de Dziga Vertóv, com planos curtíssimos captados quase sempre por uma câmera num tripé, sem movimento (mesmo no jogo de futebol, a impressão de ação veloz é mais transmitida pelos cortes da edição do que pelos planos em que a câmera corre atrás dos jogadores).

Cerebralismo exibido
É interessante, nem que seja por mero exercício de duvidosa retórica, imaginar a dupla Vertóv-Tarkóvski como dois pólos do modernismo. Parece um pouco a dupla James Joyce-Guimarães Rosa. Bom sertanejo, Rosa imaginava-se -como Tarkóvski- um homem que "pensava no infinito". Ele declarou: "Não estão certos, quando me comparam com Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista". Tarkóvski -para quem o "cinema de montagem" era um cerebralismo exibido e autoritário- poderia falar o mesmo de Vertóv, aliando-se a "Andrei Rublev" -ingenuamente ou não- do lado dos artistas alquimistas.
Colocar esses artistas em dupla, lado a lado, é uma maneira de evidenciar as contradições e os limites do modernismo, que pode ser pensado como uma espécie de "cinema de montagem" querendo escapar da montagem -para alcançar o real verdadeiro ou o espiritual absoluto-, mas sempre voltando para a ilha de edição. Essas duplas, tão especiais em suas diferenças, nos fazem também ver que não há escapatória: podemos ir de um pólo ao outro, mesmo pensando atingir o mais radical antimodernismo, mas estamos condenados -com cada vez mais DVDs, CDs e o que mais vier pela frente- a ser modernos.

Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na série "Brasil 504 d.C.",do Mais!.


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