São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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Ponto de Fuga

O bom museu


Ocorreu no Museu D. João 6º, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma renovação espantosa, com uma ideia perfeita: salas de exposição concebidas como reservas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Conhecemos instituições de internamento: o asilo, o hospital, a prisão, a escola, o quartel. Ora, o museu as reúne todas: de fato, parece uma escola, por sua vontade didática e suas preocupações historicistas; evoca a prisão, com suas vigilâncias, barreiras, proibições, sem contar o silêncio e os longos corredores; assemelha-se ao hospital ou ao asilo, porque recolhe restos mais ou menos deteriorados, salvos do desastre ou do tempo e, aliás, tratados em consequência (múltiplos cuidados: desinfecção, próteses e restaurações consolidantes): é uma escola, uma prisão, um hospital."
Esse é um trecho de "Le Musée sans Fin" (O Museu sem Fim, ed. Champ Vallon, 1982), escrito por François Dagognet, ele próprio bom leitor de Michel Foucault. Local disciplinar e repressivo, em que as obras são confinadas e os espectadores adestrados segundo normas rígidas de comportamento, o museu também é um lugar de crença e de espetáculo.
A crença no valor espiritual das artes faz dele uma solene catedral laica. Os limites da visibilidade, dispostos pelos curadores e diretores, transforma-o num cenário. As decisões, o domínio, a manipulação, situam-se nas coxias. Sobre o público, massa passiva e menosprezada, derramam-se escolhas misteriosas, indiscutíveis.

El supremo
A velha ideia do intelectual diante da vanguarda das massas nasceu no Iluminismo e reforçou-se com certas concepções marxistas. Tem hoje seu refúgio no diretor ou no conservador de museus. É ele quem decreta quais obras o público deve ver, quais vão para as reservas.
Esse poder chega às raias da paranoia. Os grandes museus internacionais permitem, pelo menos aos estudiosos, acesso fácil ao acervo conservado em reserva. Mas em outros, o pesquisador encontra tropeços e portas fechadas.
É então a via-crúcis dos pedidos negados, das cartas não respondidas, dos arbitrários: "Esta não", "aquele não pode". É o gostinho prazeroso do mando: todas as razões se resumem a "porque eu não quero".

Libertação
Em 1937, Le Corbusier propôs o projeto de um museu de arte moderna em que as reservas seriam abertas ao público. [A arquiteta] Andrée Putman criou, para o museu de Rouen, na França, uma formidável apresentação, incluindo as reservas no percurso do espectador. São poucos os exemplos de soluções assim democráticas.
Ocorreu no Museu D. João 6º, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma renovação espantosa, coordenada pela professora Sonia Gomes. Sua coleção preciosa, admirável, vinculada à Escola Nacional de Belas Artes desde seus antigos primórdios, está exposta em totalidade, afora as obras mais frágeis, como os papéis.
Ideia perfeita: salas de exposição concebidas como reservas. Que não se imagine, no entanto, a assepsia sem graça comum nesses lugares. A museografia de Marize Malta, sensível, pensou as cores com cuidado, dispôs obras nas paredes e nos painéis que o visitante deve, ele próprio, manipular para trazê-las à exposição. Não é um recinto técnico: é um lugar lindo, e de prazer. O visitante não o percorre apenas: fica e não tem mais vontade de ir embora.

Inédito
Todos os diretores de museus brasileiros deveriam fazer uma peregrinação ao D. João 6º. Para inspirarem-se em suas soluções e, sobretudo, em seu espírito. Muitos decerto invocariam razões práticas para continuarem autoritários. Os obstáculos são, porém, mentais, e não concretos. Outros aproveitariam. Fica longe, no Fundão, prédio da Reitoria. Mas quem não foi, faça um esforço e vá, para se regalar.

jorgecoli@uol.com.br


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