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Tiro pela culatra
Comparação com comerciais
de cervejas na Alemanha
mostra como a publicidade brasileira está entranhada nos valores culturais do país
LUCIA SANTAELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O que a publicidade
visa é, sobretudo,
vender produtos.
Ninguém duvida
disso. Para cumprir seus propósitos, faz uso de
estratégias e até mesmo de artimanhas, algumas explícitas,
outras bastante sutis. Quanto
mais sutis, mais poder de penetração elas alcançam até o cerne emocional do consumidor.
Um país como o Brasil -em
que sentimentos e emoções
contam bem mais do que a racionalidade bem-comportada- se constitui em solo propício à fertilização do discurso
publicitário.
Além da pragmática do consumo, há um outro aspecto da
publicidade que, apesar de sua
relevância, não costuma ser
lembrado. A publicidade funciona como um termômetro
que marca a temperatura dos
valores culturais. Sem a sugestão, o apelo e o empréstimo de
valores que estão impregnados
na cultura de um povo, o discurso publicitário seria como
carne sem tempero.
O recente alvoroço provocado pela campanha da cerveja
Devassa Bem Loura, da Schincariol, produzida pela agência
Mood, é um exemplo flagrante
para pensar o enraizamento da
publicidade na cultura.
De 2000 a 2004, coordenei a
parte brasileira de uma pesquisa cultural comparativa entre
Brasil e Alemanha (financiada
pelo acordo Capes-DAAD). O
projeto envolveu a vinda de
pesquisadores alemães ao Brasil para analisar nossas mídias
e vice-versa.
O que ele teve de mais interessante foi a revelação de que
o olhar do outro nos alerta para
aspectos de nossa própria cultura que nos passam despercebidos. Uma das mídias analisadas foi a publicidade (ver "Palavra e Imagem nas Mídias", org.
L. Santaella e W. Nöth, 2008,
ed. UFPA).
O que imediatamente provocou espanto nos pesquisadores
alemães foram as publicidades
de cerveja com gigantescas
mulheres seminuas, em poses
cheias de malícia, ocupando de
20 a 30 metros dos perfis de
prédios espalhados por pontos
nevrálgicos da cidade de São
Paulo.
Na Alemanha, em sintonia
com o gosto minimalista de seu
design, as publicidades colocam ênfase na origem natural
de seus ingredientes ou no prazer socializador da bebida, o de
beber junto com amigos.
Não por acaso, o sobretexto
sexual da publicidade no Brasil
intrigou os alemães.
Moral da estória: nossa
aliança entre cerveja, mulheres
e sexualidade (ou sensualidade,
para fazer uso de um eufemismo) já é velha e não espanta
mais nenhum brasileiro.
A sensualidade, a beleza e a
juventude são valores para a
cultura deste país. E ponto. Já
dizia Vinicius de Moraes: "...
que me desculpem, mas a beleza é fundamental".
Vestido de tubinho
O que levaria, então, o Conar
a resolver se autorregular somente agora?
O nome "devassa", para
quem conhece o léxico, de fato,
convida à devassidão. Qual? A
de beber ou a de transar? A estrela escolhida para brilhar na
devassa geral é nada menos que
Paris Hilton, o emblema magno do despudor exibicionista.
Comparado com esse texto
cultural de caráter global, é até
tímido o vídeo com as poses esforçadamente sensuais da estrela. Qualquer mocinha classe
média escolheria um tubinho
negro, curto e justinho para
causar um pequeno frisson em
festinhas de final de semana.
Se comparada à exuberância
curvilínea de muitas de nossas
atrizes nacionalmente globais,
a loirice da Hilton e suas formas nada redondas parecem
aguadas.
Como poderia uma jovem
quase anoréxica competir, em
pleno Carnaval, com o estonteante e quase desconcertante
esplendor da beleza das rainhas
das baterias da Sapucaí?
O tiro do Conar, como todo
tiro moralista, saiu pela culatra.
Uma campanha que, não obstante seus programados milhões, tinha tudo para simplesmente cair na saturada corrente midiática, virou notícia, justo
aquilo de que a própria mídia
precisa para se autoalimentar.
Pipocam matérias pelos jornais, o assunto entrou no rol
dos tópicos mais quentes do
Twitter, o vídeo recebeu no
YouTube visitantes muito mais
atentos do que os distraídos espectadores da TV.
Enfim, a devassa veio à tona,
driblando a acelerada mutação
dos interesses humanos enquanto o mundo gira.
Além disso, às vésperas do
Dia Internacional da Mulher
[amanhã], é preciso lembrar
que o respeito às mulheres e
aos méritos -que vão além da
superfície de suas curvas e recheios- não é algo que se incorpora na cultura por meio de
decretos, censuras nem por seu
oposto -as festividades-, mas
pela educação e, acima de tudo,
pelo apreço à dignidade que deve brotar da força íntima e das
ações das próprias mulheres.
Homens machistas só vicejam onde mulheres ainda não
cresceram diante de si mesmas
e para o outro.
LUCIA SANTAELLA é professora da Pontifícia
Universidade Católica (SP) e autora de "Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade" (Paulus).
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