São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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Amor para sempre

Em "Você Precisa Ir?", a historiadora Antonia Fraser relembra os 30 anos de convivência com o marido, o Nobel Harold Pinter

DOMINIC DROMGOOLE

Existe um tipo de casal no qual as duas pessoas são tão totalmente diferentes que é quase impossível identificar o que as atrai.
Parece não haver nada de comum em seu passado, nenhuma correspondência de classe social, nenhuma opinião política comum, nem mesmo um ou dois hobbies que ambos compartilhem. Você acaba se perguntando não apenas como puderam se conhecer, mas como o amor floresceu e cresceu, atingindo a maturidade.
A explicação convencional de que os opostos se atraem em geral se aplica a mais ou menos seis meses de transas entusiasmadas, mas raramente é o bastante para energizar mais de 30 anos de união conjugal.

Gosto pelas diferenças
Com certos casais, porém, vemos diferenças como essas acompanhando uma longevidade tamanha que não podemos deixar de admirá-la, atribuindo-a ao fato de cada um gostar tanto das diferenças existentes no outro.
Há algo de profundamente saudável em um amor que é baseado na curiosidade interminável acerca de outra pessoa. Isso foi encarnado à perfeição na história de amor de Harold Pinter e Antonia Fraser ["Must You Go? My Life with Harold Pinter", Você Precisa Ir? - Minha Vida com Harold Pinter, de Antonia Fraser].
Ele, o robusto apóstolo das trevas, nascido na zona leste de Londres [região proletária da capital]; ela, um misto aristocrático e veranil de alegria e doçura. Evidentemente, a curiosidade era algo normal e corriqueiro para ambos -ele, um dramaturgo de curiosidade psicológica investigativa; ela, historiadora especializada no coração humano do que em forças sobretudo sociológicas.
O livro segue a forma de anotações tiradas dos diários que ela escreveu de maneira intermitente ao longo dos 30 e poucos anos que durou seu relacionamento com ele. A obra oferece uma visão aguda de Pinter, a pessoa, e também insights sobre suas peças. O investimento de Fraser no trabalho de seu parceiro era imenso, e ela é agradavelmente franca com o leitor, assim como era com o marido, ao falar de sua estética e sua política.
O livro tem início com uma conflagração de escândalos e paixão, quando ela é arrebatada de seu marido, o deputado conservador Hugh Fraser, enquanto ele escapa das garras dolorosas da mulher de Pinter, a atriz Vivien Merchant.
Essa seção recria uma imagem de prazeres simples dos anos 1970, como carros esporte e fins de semana em Paris, jantares e encontros românticos discretos, esperas agoniadas por telefonemas e cartas de amor entregues em segredo.
O amor dos dois perdura e se aprofunda ao longo de décadas das mudanças sísmicas em cujo centro Pinter e Fraser pareciam estar com frequência.
[O escritor] Salman Rushdie aparece, desaparece e reaparece; [o dramaturgo e político] Vaclav Havel, enigmático e glamouroso, entra e sai de maneira fugaz; o socialismo regado a champanhe é inventado na sala de estar deles; Pinter sobe com dificuldade em uma plataforma no Hyde Park para lançar uma diatribe contra a guerra do Iraque, diante de 1 milhão de almas esperançosas e desesperançadas. E, eventualmente, o mundo se reúne à sua porta para festejar seu Prêmio Nobel [ganho em 2005].
Tudo é relatado de uma perspectiva privilegiada e com muita atenção aos detalhes sociais e comportamentais. Em muitos momentos, Pinter é captado sob uma luz escura e teatral, posicionando-se diante de janelas ou portas, com sua silhueta destacada por uma aurora fresca ou um crepúsculo morno, colocando-se em cena com um senso teatral natural, antes de voltar-se ao grupo ou à autora e disparar alguma pérola.

Contrastes deliciosos
Também há episódios em que os contrastes entre Pinter e Fraser se tornam deliciosos. Fraser tem obsessão por flores, e em todo lugar aonde vão, em qualquer estado de clandestinidade política na Tchecoslováquia pré-Veludo ou de desespero médico durante o declínio de Pinter devido ao câncer, sua mulher não para de observar as fúcsias, as gardênias e os hiacintos que os cercam.
Há algo de extremamente cômico nisso, mas também profundamente tocante. Este livro funciona, assim como suas vidas parecem ter funcionado, como a mais comovente e duradoura das histórias de amor. Nos últimos anos, os dois dançaram em bailes geriátricos em locais exóticos, jogaram par ou ímpar para decidir em que restaurantes de Holland Park comeriam e sempre pareceram misteriosos e quase idealizados como casal feliz.

Apetite pela vida
O livro faz pouco para reduzir o mistério, mas, de alguma maneira, consegue fazer a felicidade deles parecer perfeitamente natural -duas pessoas com um apetite pela vida, o vinho e a verdade que é quase tão ávido quanto o apetite que tinham uma pela outra. O final, apresentado de modo brutal e nada sentimental, mas repleto de uma franqueza própria a um Tolstói, é quase insuportavelmente comovente. Todo este livro belíssimo enche o leitor de gratidão pelo fato de que o acaso pode, de vez em quando, não errar a mão -pode encontrar a garota certa para o rapaz certo.

DOMINIC DROMGOOLE é diretor artístico do teatro Shakespeare's Globe, em Londres. A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.


MUST YOU GO?

Autora: Antonia Fraser
Editora: Weidenfeld & Nicolson (Reino Unido)
Quanto: 20, R$ 56 (336 págs.)

ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados pelo site
www.amazon.co.uk




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