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Na história, as duas linhas da política dos EUA em relação ao Brasil: a desdenhosa e a afetiva
O leão e o cordeiro
KENNETH MAXWELL
especial para a Folha
Em 1821, o príncipe Metternich
-bem ao modo do dr. Henry Kissinger, que escreveu em seu louvor 150 anos mais tarde, num livro
sobre o Congresso de Viena-
acreditava piamente no princípio
do intervencionismo contra-revolucionário. Ironicamente, os predecessores de Kissinger na Secretaria de Estado norte-americana
nos inícios do século 19, preocupados que estavam após as experiências desastrosas da guerra de
1812 com a vulnerabilidade da jovem República ao ataque europeu,
pensavam justamente o contrário.
Com receio de que a Santa Aliança de Metternich pretendesse reconduzir as colônias espanholas
rebeldes do Novo Mundo ao aprisco europeu, depois que o Exército
austríaco reprimira as revoluções
republicanas em Nápoles e no Piemonte e que a França restaurara o
execrável Bourbon Fernando 7º
no trono em Madri, o presidente
Monroe anunciou em 1823 sua famosa doutrina, numa mensagem
ao Congresso. Esse viria a ser o
princípio diretor da política norte-americana para o hemisfério
ocidental no século seguinte.
A Doutrina Monroe, contudo,
fora prenunciada alguns anos antes e em sua concepção original
congregava o Brasil e os Estados
Unidos num "sistema americano", no qual as duas nações agiriam em concerto para manter a
Europa à distância. Thomas Jefferson, na condição de enviado a Paris em 1786, reunira-se secretamente em Nîmes com um jovem
revolucionário brasileiro que
atendia pela alcunha de "Vendek". Ele era, na realidade, José
Joaquim Maia e Barbalho, um estudante do Rio de Janeiro que frequentava então a Universidade de
Montpellier. Daí em diante, Jefferson passou a nutrir um vivo interesse pela América do Sul e, em
particular, pelo Brasil, coligindo
avidamente volumes para sua extensa biblioteca sobre a geografia,
a história natural e a política da região.
Como diretor-presidente da Sociedade Filosófica Americana da
Filadélfia entre 1797 e 1814, Jefferson travou contato com um brilhante naturalista português, secretário-fundador da Academia de
Ciências de Lisboa, o abade José
Francisco Correa da Serra. O abade, que chegara aos Estados Unidos em 1812, era tido como um homem de grande erudição, sendo
amplamente solicitado pelos líderes da nova República. Alguns dos
amigos de Jefferson deixaram registros de suas reações ao abade
nessa época. Um dos mais interessantes é da lavra de Francis Gilmore, companheiro de Correa numa
longa expedição para coleta de espécies botânicas, bem como de informações sociais e de história natural ao longo da fronteira ocidental. Gilmore retornou de Monticello para a Filadélfia com o abade
em 1813 e disse sobre Correa: "Ele
é o homem mais extraordinário na
face da Terra. Ele leu, viu, compreende e lembra tudo o que obteve dos livros ou o que aprendeu
das viagens, da observação e das
conversas com gente letrada. Ele é
membro de toda sociedade filosófica no mundo e conhece todo homem de distinção ainda vivo".
O próprio Jefferson teve uma
reação bastante análoga e sua descrição é igualmente lisonjeira: "O
sr. Correa era um cavalheiro português de primeira grandeza nas
ciências, sendo sem dúvida alguma o homem mais cultivado que
conheci dos quantos países em
que estive. Modesto, bem-humorado, informal, simples como um
camponês, ele se tornou o favorito
de todos com quem travava relações. Seu inglês é fluente". Em
1817, o abade Correa foi nomeado
ministro plenipotenciário do Reino Unido de Portugal e do Brasil
em Washington e permaneceu até
1820 como representante nos Estados Unidos da Corte portuguesa
no Rio.
Nessa época o abade já fazia visitas regulares a Monticello, a residência de Jefferson num serro
montanhoso na Virgínia, onde até
hoje o dormitório do rés-do-chão
é chamado "quarto do abade".
Em suas discussões em Monticello, Jefferson e o abade Correa delinearam o que mais tarde viria a ser
conhecido como a Doutrina Monroe.
Jefferson relatou seus debates
com o abade numa carta a William
Short de 4 de agosto de 1820. Short
fora o secretário particular de Jefferson quando este serviu como
embaixador em Paris: "Das muitas conversas mantidas com ele",
escreveu Jefferson sobre o abade,
"espero que ele veja e promova
em sua nova situação (o abade fora chamado de volta para o Rio de
Janeiro e Jefferson supunha que
ele assumiria um posto no alto escalão do governo) as vantagens de
uma fraternização cordial entre
todas as nações americanas e a importância de elas aglutinarem-se
num sistema de política americano, totalmente autônomo e desvinculado daquele da Europa. Não
está distante o dia em que seremos
levados a requerer formalmente
uma partilha meridiana que dividirá o oceano em dois hemisférios,
no lado de cá, do qual jamais se
ouvirá um tiro de arma européia,
nem de arma americana no outro;
e durante a fúria das eternas guerras européias, o leão e o cordeiro
nas nossas paragens descansarão
em paz lado a lado. O excesso de
população na Europa e a falta de
espaço fazem eclodir a guerra, na
opinião deles necessária para
manter reduzido o excesso numérico. Aqui o espaço é abundante, a
população escassa, e a paz, o expediente necessário para procriar os
homens, a quem a terra exuberante oferece os meios de vida e felicidade. Os dirigentes da sociedade,
lá e cá, são radicalmente diversos,
e espero que nenhum patriota
americano jamais perca de vista a
política fundamental de interditar
nos mares e nos territórios das
duas Américas as contendas ferozes e sanguinárias da Europa. Não
vejo a hora do início dessa coalizão. Sou convictamente favorável
a um acordo com os poderes marítimos europeus, atribuindo-lhes a
tarefa de conter as piratarias de
seus mares e os canibalismos das
costas africanas, e a nós a tarefa de
coibir as mesmas atrocidades em
nossos mares, e para tal propósito
eu exultaria em ver as armadas do
Brasil e dos Estados Unidos crescendo juntas como irmãs da mesma família, buscando o mesmo
objetivo".
O Secretário de Estado John
Quincy Adams era menos solidário, e foi ele, não Monroe ou Jefferson, quem exerceu maior influência sobre a política externa
norte-americana em relação às nações recém-independentes da
América do Sul, seja como Secretário de Estado entre 1817 e 1825,
seja como presidente, de 1825 a
1829. John Quincy Adams cultivara uma estreita amizade com Thomas Jefferson quando viveu em
Paris nos anos de 1874-75, e de fato
enxergava os méritos da separação
com a Europa, mas não pensava
que isso implicasse uma identidade mútua entre os Estados Unidos
e as novas nações ao sul. Ele via os
sul-americanos como irremediavelmente corrompidos pela religião católica, pela tradição ibérica
e pelo clima tropical. O agente comercial no Rio de Janeiro relatara-lhe que a monarquia portuguesa no Brasil "degenerara numa
completa efeminação e voluptuosidade. Dificilmente pode-se supor a existência de uma sociedade
em pior estado do que nesse país.
Onde, aliás, o clima incita a toda
sorte de depravação e delinquência".
John Quincy Adams, o inflexível
habitante de Massachusetts, Nova
Inglaterra, que descrevia a si mesmo como um homem de temperamento "frio e austero", não se
entretinha com um vizinho tão
pouco promissor e de tamanho
desalinho. Ele aquiesceu com relutância ao desejo do presidente
Monroe, em meados de 1822, de
dar sequência ao reconhecimento
do México, do Chile, das Províncias Unidas do Rio da Prata e do
império brasileiro. No fundo, sua
intenção era lidar o menos possível com eles. Tal como Jefferson,
ele conhecia bem o abade Correa e
o tinha como um homem "de extensa e vária literatura, de profunda ciência, de espírito brilhante e
senhor dos poderes inesgotáveis
da conversação". Mas Adams
também achava Correa "irritadiço, suscetível, refratário, precipitado e, sob tensão, embirrento".
Ele ridicularizou a sugestão do
abade Correa (e de Thomas Jefferson) de que o Brasil e os Estados
Unidos criassem um "sistema
americano". Com o desdém e a
arrogância que caracterizariam as
atitudes norte-americanas para
com a América Latina no século
seguinte, John Quincy Adams escreveu: "Quanto a um sistema
americano, já o temos; nós constituímos a sua totalidade".
A avaliação do abade Correa e de
Jefferson sobre as possibilidades
de êxito de uma aliança hemisférica havia sido mais generosa.
Quando os dois despediram-se em
1820, Jefferson escreveu a Correa
de Monticello: "Recebi seu adeus
com sincero pesar pela perda daquilo que sustentaríamos, e principalmente daquelas visitas amistosas com que você me deixava tão
feliz. Eu também sentirei falta de
seu conselho e de sua aprovação
naquilo que fazemos e estamos
por fazer em nossa universidade, a
última de minhas preocupações
mortais e o último serviço que
posso prestar a meu país. (Mas
não) perderemos todos os benefícios de sua amizade (...), pois esse
motivo e o amor pelo seu país serão um estímulo para promover
essa harmonia íntima entre nossas
duas nações, que é de tanto interesse para ambos. (...) Considero
(seu governo) o mais justo, inofensivo e desambicioso de todos
com os quais nos ocupamos, sem
nenhuma exceção. Estou certo de
que esse também é o caráter do
nosso. Duas nações como essas jamais desejarão indispor-se mutuamente".
O abade Correa não estava menos contrito pela sua partida:
"Amanhã, no paquete Albion, sigo para a Inglaterra, e de lá para o
Brasil. É-me impossível deixar esse continente sem voltar os olhos
mais uma vez para a Virgínia, para
você e para Monticello. (...) Espero
que você, meu caro amigo, viva
por muito tempo para ver cada dia
mais, com os seus próprios olhos,
a diferença que existe entre os presidentes filosóficos e toda a série
contingente de futuros chefes da
sua nação. Orgulhe-se de ser natural da Virgínia. Este seria um privilégio que desejaria para mim, se
fosse norte-americano. Seu fiel e
sincero amigo, Joseph Correa da
Serra".
John Quincy Adams e Thomas
Jefferson, em muitos sentidos,
condensaram logo no início, com
notável perspicácia, as duas linhas
básicas, mas contraditórias, da
política norte-americana em relação ao Brasil: a desdenhosa e indiferente, de um lado, a colaboradora e afetiva, de outro. O Brasil estaria fadado a experimentar as duas
no curso dos 150 anos seguintes.
Fontes:
"The Writings of Thomas Jefferson", editado por
Andrew A. Lipscomb e Albert E. Bergh. Washington, DC, 1903-4 (20 vols.), vol. 15, págs. 262-64;
"The Abbé Corrêa in America - 1812-1820 - The
Contribution of the Diplomat and the Natural
Philosopher to the Foundations of our National
Life", por Richard Beale Davis;
"Transactions of the American Philosophical Society", New Series, vol. 45, parte 2, 1955;
"Memoirs of Quincy Adams, Comprising Portions from His Diary from 1795 to 1848", editado
por Charles Francis Adams, 12 vols. Filadélfia,
1874-7.
Kenneth Maxwell é historiador inglês e um dos
maiores especialistas da atualidade sobre a história do Brasil e de Portugal. Publicou, entre outros, "A Devassa da Devassa" e "Pombal - Paradoxos do Iluminismo" (ambos pela Paz e Terra).
Lançou também "The Making of Portuguese Democracy" (A Formação da Democracia Portuguesa, Cambridge University Press). Vive nos Estados Unidos.
Tradução de José Marcos Macedo.
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