São Paulo, Domingo, 07 de Março de 1999
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Na história, as duas linhas da política dos EUA em relação ao Brasil: a desdenhosa e a afetiva
O leão e o cordeiro

KENNETH MAXWELL
especial para a Folha

Em 1821, o príncipe Metternich -bem ao modo do dr. Henry Kissinger, que escreveu em seu louvor 150 anos mais tarde, num livro sobre o Congresso de Viena- acreditava piamente no princípio do intervencionismo contra-revolucionário. Ironicamente, os predecessores de Kissinger na Secretaria de Estado norte-americana nos inícios do século 19, preocupados que estavam após as experiências desastrosas da guerra de 1812 com a vulnerabilidade da jovem República ao ataque europeu, pensavam justamente o contrário.
Com receio de que a Santa Aliança de Metternich pretendesse reconduzir as colônias espanholas rebeldes do Novo Mundo ao aprisco europeu, depois que o Exército austríaco reprimira as revoluções republicanas em Nápoles e no Piemonte e que a França restaurara o execrável Bourbon Fernando 7º no trono em Madri, o presidente Monroe anunciou em 1823 sua famosa doutrina, numa mensagem ao Congresso. Esse viria a ser o princípio diretor da política norte-americana para o hemisfério ocidental no século seguinte.
A Doutrina Monroe, contudo, fora prenunciada alguns anos antes e em sua concepção original congregava o Brasil e os Estados Unidos num "sistema americano", no qual as duas nações agiriam em concerto para manter a Europa à distância. Thomas Jefferson, na condição de enviado a Paris em 1786, reunira-se secretamente em Nîmes com um jovem revolucionário brasileiro que atendia pela alcunha de "Vendek". Ele era, na realidade, José Joaquim Maia e Barbalho, um estudante do Rio de Janeiro que frequentava então a Universidade de Montpellier. Daí em diante, Jefferson passou a nutrir um vivo interesse pela América do Sul e, em particular, pelo Brasil, coligindo avidamente volumes para sua extensa biblioteca sobre a geografia, a história natural e a política da região.
Como diretor-presidente da Sociedade Filosófica Americana da Filadélfia entre 1797 e 1814, Jefferson travou contato com um brilhante naturalista português, secretário-fundador da Academia de Ciências de Lisboa, o abade José Francisco Correa da Serra. O abade, que chegara aos Estados Unidos em 1812, era tido como um homem de grande erudição, sendo amplamente solicitado pelos líderes da nova República. Alguns dos amigos de Jefferson deixaram registros de suas reações ao abade nessa época. Um dos mais interessantes é da lavra de Francis Gilmore, companheiro de Correa numa longa expedição para coleta de espécies botânicas, bem como de informações sociais e de história natural ao longo da fronteira ocidental. Gilmore retornou de Monticello para a Filadélfia com o abade em 1813 e disse sobre Correa: "Ele é o homem mais extraordinário na face da Terra. Ele leu, viu, compreende e lembra tudo o que obteve dos livros ou o que aprendeu das viagens, da observação e das conversas com gente letrada. Ele é membro de toda sociedade filosófica no mundo e conhece todo homem de distinção ainda vivo".
O próprio Jefferson teve uma reação bastante análoga e sua descrição é igualmente lisonjeira: "O sr. Correa era um cavalheiro português de primeira grandeza nas ciências, sendo sem dúvida alguma o homem mais cultivado que conheci dos quantos países em que estive. Modesto, bem-humorado, informal, simples como um camponês, ele se tornou o favorito de todos com quem travava relações. Seu inglês é fluente". Em 1817, o abade Correa foi nomeado ministro plenipotenciário do Reino Unido de Portugal e do Brasil em Washington e permaneceu até 1820 como representante nos Estados Unidos da Corte portuguesa no Rio.
Nessa época o abade já fazia visitas regulares a Monticello, a residência de Jefferson num serro montanhoso na Virgínia, onde até hoje o dormitório do rés-do-chão é chamado "quarto do abade". Em suas discussões em Monticello, Jefferson e o abade Correa delinearam o que mais tarde viria a ser conhecido como a Doutrina Monroe.
Jefferson relatou seus debates com o abade numa carta a William Short de 4 de agosto de 1820. Short fora o secretário particular de Jefferson quando este serviu como embaixador em Paris: "Das muitas conversas mantidas com ele", escreveu Jefferson sobre o abade, "espero que ele veja e promova em sua nova situação (o abade fora chamado de volta para o Rio de Janeiro e Jefferson supunha que ele assumiria um posto no alto escalão do governo) as vantagens de uma fraternização cordial entre todas as nações americanas e a importância de elas aglutinarem-se num sistema de política americano, totalmente autônomo e desvinculado daquele da Europa. Não está distante o dia em que seremos levados a requerer formalmente uma partilha meridiana que dividirá o oceano em dois hemisférios, no lado de cá, do qual jamais se ouvirá um tiro de arma européia, nem de arma americana no outro; e durante a fúria das eternas guerras européias, o leão e o cordeiro nas nossas paragens descansarão em paz lado a lado. O excesso de população na Europa e a falta de espaço fazem eclodir a guerra, na opinião deles necessária para manter reduzido o excesso numérico. Aqui o espaço é abundante, a população escassa, e a paz, o expediente necessário para procriar os homens, a quem a terra exuberante oferece os meios de vida e felicidade. Os dirigentes da sociedade, lá e cá, são radicalmente diversos, e espero que nenhum patriota americano jamais perca de vista a política fundamental de interditar nos mares e nos territórios das duas Américas as contendas ferozes e sanguinárias da Europa. Não vejo a hora do início dessa coalizão. Sou convictamente favorável a um acordo com os poderes marítimos europeus, atribuindo-lhes a tarefa de conter as piratarias de seus mares e os canibalismos das costas africanas, e a nós a tarefa de coibir as mesmas atrocidades em nossos mares, e para tal propósito eu exultaria em ver as armadas do Brasil e dos Estados Unidos crescendo juntas como irmãs da mesma família, buscando o mesmo objetivo".
O Secretário de Estado John Quincy Adams era menos solidário, e foi ele, não Monroe ou Jefferson, quem exerceu maior influência sobre a política externa norte-americana em relação às nações recém-independentes da América do Sul, seja como Secretário de Estado entre 1817 e 1825, seja como presidente, de 1825 a 1829. John Quincy Adams cultivara uma estreita amizade com Thomas Jefferson quando viveu em Paris nos anos de 1874-75, e de fato enxergava os méritos da separação com a Europa, mas não pensava que isso implicasse uma identidade mútua entre os Estados Unidos e as novas nações ao sul. Ele via os sul-americanos como irremediavelmente corrompidos pela religião católica, pela tradição ibérica e pelo clima tropical. O agente comercial no Rio de Janeiro relatara-lhe que a monarquia portuguesa no Brasil "degenerara numa completa efeminação e voluptuosidade. Dificilmente pode-se supor a existência de uma sociedade em pior estado do que nesse país. Onde, aliás, o clima incita a toda sorte de depravação e delinquência".
John Quincy Adams, o inflexível habitante de Massachusetts, Nova Inglaterra, que descrevia a si mesmo como um homem de temperamento "frio e austero", não se entretinha com um vizinho tão pouco promissor e de tamanho desalinho. Ele aquiesceu com relutância ao desejo do presidente Monroe, em meados de 1822, de dar sequência ao reconhecimento do México, do Chile, das Províncias Unidas do Rio da Prata e do império brasileiro. No fundo, sua intenção era lidar o menos possível com eles. Tal como Jefferson, ele conhecia bem o abade Correa e o tinha como um homem "de extensa e vária literatura, de profunda ciência, de espírito brilhante e senhor dos poderes inesgotáveis da conversação". Mas Adams também achava Correa "irritadiço, suscetível, refratário, precipitado e, sob tensão, embirrento". Ele ridicularizou a sugestão do abade Correa (e de Thomas Jefferson) de que o Brasil e os Estados Unidos criassem um "sistema americano". Com o desdém e a arrogância que caracterizariam as atitudes norte-americanas para com a América Latina no século seguinte, John Quincy Adams escreveu: "Quanto a um sistema americano, já o temos; nós constituímos a sua totalidade".
A avaliação do abade Correa e de Jefferson sobre as possibilidades de êxito de uma aliança hemisférica havia sido mais generosa. Quando os dois despediram-se em 1820, Jefferson escreveu a Correa de Monticello: "Recebi seu adeus com sincero pesar pela perda daquilo que sustentaríamos, e principalmente daquelas visitas amistosas com que você me deixava tão feliz. Eu também sentirei falta de seu conselho e de sua aprovação naquilo que fazemos e estamos por fazer em nossa universidade, a última de minhas preocupações mortais e o último serviço que posso prestar a meu país. (Mas não) perderemos todos os benefícios de sua amizade (...), pois esse motivo e o amor pelo seu país serão um estímulo para promover essa harmonia íntima entre nossas duas nações, que é de tanto interesse para ambos. (...) Considero (seu governo) o mais justo, inofensivo e desambicioso de todos com os quais nos ocupamos, sem nenhuma exceção. Estou certo de que esse também é o caráter do nosso. Duas nações como essas jamais desejarão indispor-se mutuamente".
O abade Correa não estava menos contrito pela sua partida: "Amanhã, no paquete Albion, sigo para a Inglaterra, e de lá para o Brasil. É-me impossível deixar esse continente sem voltar os olhos mais uma vez para a Virgínia, para você e para Monticello. (...) Espero que você, meu caro amigo, viva por muito tempo para ver cada dia mais, com os seus próprios olhos, a diferença que existe entre os presidentes filosóficos e toda a série contingente de futuros chefes da sua nação. Orgulhe-se de ser natural da Virgínia. Este seria um privilégio que desejaria para mim, se fosse norte-americano. Seu fiel e sincero amigo, Joseph Correa da Serra".
John Quincy Adams e Thomas Jefferson, em muitos sentidos, condensaram logo no início, com notável perspicácia, as duas linhas básicas, mas contraditórias, da política norte-americana em relação ao Brasil: a desdenhosa e indiferente, de um lado, a colaboradora e afetiva, de outro. O Brasil estaria fadado a experimentar as duas no curso dos 150 anos seguintes.


Fontes: "The Writings of Thomas Jefferson", editado por Andrew A. Lipscomb e Albert E. Bergh. Washington, DC, 1903-4 (20 vols.), vol. 15, págs. 262-64;
"The Abbé Corrêa in America - 1812-1820 - The Contribution of the Diplomat and the Natural Philosopher to the Foundations of our National Life", por Richard Beale Davis;
"Transactions of the American Philosophical Society", New Series, vol. 45, parte 2, 1955;
"Memoirs of Quincy Adams, Comprising Portions from His Diary from 1795 to 1848", editado por Charles Francis Adams, 12 vols. Filadélfia, 1874-7.


Kenneth Maxwell é historiador inglês e um dos maiores especialistas da atualidade sobre a história do Brasil e de Portugal. Publicou, entre outros, "A Devassa da Devassa" e "Pombal - Paradoxos do Iluminismo" (ambos pela Paz e Terra). Lançou também "The Making of Portuguese Democracy" (A Formação da Democracia Portuguesa, Cambridge University Press). Vive nos Estados Unidos.



Tradução de José Marcos Macedo.



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