São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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A América Latina joga a toalha

Reuters - 31.ago.2001
Soldados equatorianos praticam exercícios militares para proteger a fronteira do país do ataque de grupos guerrilheiros vindos da Colômbia



Para historiador, suspensão de ajuda financeira, negociações mais agressivas e envolvimento em conflitos, como na Colômbia, indicam que EUA devem impor a "pax americana" à região, consolidar o México como líder regional e isolar o Brasil


por Kenneth Maxwell

Três meses depois de iniciado o ano de 2002, a década complacente dos anos 1990 já parece estar muito distante. O contexto internacional não é mais de "consenso", seja ele de Washington ou qualquer outro, em relação à política econômica ou a qualquer outra coisa; não é mais uma era de prosperidade e paz, mas um tempo marcado por conflitos, guerra e incertezas.
Nem tudo é negativo, é claro. Os banqueiros voltaram a enxergar o Brasil com otimismo; como o presidente brasileiro, também eles agora acham que a "continuidade" vai prevalecer em outubro. Mas, se tudo isso soa prematuro, é porque o é: em matéria de política, basta uma semana para mudar tudo. O golpe na campanha presidencial de Roseana Sarney, que resultou da recente descoberta de R$ 1,34 milhão em dinheiro no escritório da empresa Lunus, de seu marido, constitui um lembrete dessa verdade básica, e o mesmo pode ser dito das transformações advindas desde aquele dia fatídico de setembro marcado pela queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York.
Como no resto do mundo, também para a América Latina os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 marcaram um momento de definição. Isso se deu não tanto porque o cotidiano tenha mudado para os camponeses que trabalham nos arrozais de Bangladesh, para os cariocas que procuram fugir do mosquito transmissor da dengue, no Rio de Janeiro, ou para funcionários de madeireiras tomando seus tragos de forte aguardente num bar qualquer no norte da Suécia, mas porque o mundo mudou, de maneira repentina e dramática, para as pessoas (menos de 5% da população mundial) que, todos os anos, destinam cerca de US$ 400 bilhões dos impostos que pagam para o sustento de quase 40% dos gastos militares do mundo, que consomem cerca de 30% da produção petrolífera mundial e constituem 25% da economia global. E isso tem uma importância profunda.
Até 11 de setembro de 2001, a maioria dos americanos tinha uma visão benigna de si, acreditava profundamente fazer mais bem do que mal ao mundo e acreditava, também, contar com um mandato especial do Todo-Poderoso para manter erguido um farol de esperança de uma vida mais próspera e feliz para a humanidade. Duas vezes ao longo do século 20, durante dois conflitos armados de grandes proporções e no longo decorrer da Guerra Fria, foi bom para a humanidade o fato de essa visão ter prevalecido. Mas o 11 de setembro mostrou aos americanos que a maior parte do resto do mundo não pensa assim e, na realidade, os vê como arrogantes, fariseus ou pura e simplesmente estúpidos.
Mesmo alguns daqueles que os americanos enxergavam como seus amigos não se solidarizaram com sua dor, e entre esses, para a surpresa da maioria dos americanos, figuravam seus "vizinhos" latinos meridionais.
A empatia está presente ou não está. No que diz respeito à América Latina, no momento em que a empatia se mostrou mais necessária, ela não esteve presente. Os dados obtidos por pesquisas de opinião em toda a América Latina imediatamente após os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono são enfáticos a esses respeito. As causas dessa falta de conexão podem ser históricas ou psicológicas, justificadas ou não, mas causas têm menos significado do que consequências.


Atualmente não são leninistas superados que levam a sério as velhas teorias do imperialismo -são os ideólogos neoconservadores dos institutos de estudos de Washington


Por enquanto esse momento de desilusão e verdade vai afetar a política norte-americana em relação à região e a maneira, além da linguagem, como ela é conduzida. Na verdade isso já aconteceu, e não necessariamente para melhor. Haverá discussões intransigentes, decisões difíceis e pouca tolerância para com os sofismas já tradicionais vindos do lado latino-americano e com as expressões de solidariedade vazias de significado proferidas pelo lado americano. E, como as tendências parecem estar indicando, essa mudança vai ajudar o México a fortalecer seu papel de interlocutor latino mais destacado em Washington, ao passo que o Brasil será relegado à margem ou, o que é pior, a um isolamento hostil, dentro de um conjunto reconfigurado de prioridades americanas no hemisfério Ocidental.
É claro que essa nova afirmação de interesse nacional por parte dos EUA faz parte de uma transformação muito mais ampla e profunda. Se o término da Guerra Fria pôs fim à necessidade de dar ao capitalismo um tratamento linguístico propositalmente confuso -gerando, por exemplo, a rápida substituição do termo "países em desenvolvimento" pelo conceito dos "mercados emergentes"-, os acontecimentos de 11 de setembro jogaram por terra os tabus relativos ao império.
Atualmente não são leninistas superados que levam a sério as velhas teorias do imperialismo -são as cabeças jovens e brilhantes da página de editoriais do "Wall Street Journal", os ideólogos neoconservadores dos institutos de estudos de Washington e, o que é mais ameaçador, as lideranças civis do Pentágono que aderem a essa idéia. "Sim", eles dizem aos esquerdistas do passado, "vocês têm razão"; e, como resultado, argumentam, é chegada a hora de "falar alto e sem peias na língua sobre o Império Americano, é chegada a hora de os americanos exercerem plenamente os poderes imperiais que possuem, de aderir à missão imperial que lhes foi imposta e, se preciso for, de impor a "pax americana" pela força avassaladora das armas que os Estados Unidos hoje possuem".
É verdade que a América Latina ainda não é uma das prioridades da pauta dos "novos" imperialistas. Por enquanto os proponentes do intervencionismo estão agitando em prol da derrubada do [ditador iraquiano" Saddam Hussein, e os EUA continuam fortemente engajados no Afeganistão. Ademais, não há evidências dignas de crédito da existência de células da Al Qaeda na notória e desgovernada área da tríplice fronteira entre Paraguai, Argentina e Brasil, apesar dos temores iniciais, após 11 de setembro, de que elas existissem. Porém há vínculos entre essa região e outra zona de crise interminável: o conflito israelo-palestino. Existem evidências fortes de financiamento aos grupos extremistas Hamas e ao Hezbollah (um indivíduo levantou e transferiu pelo menos US$ 50 milhões nos últimos anos). Mas mesmo isso é um engajamento em escala relativamente pequena, falando em termos comparativos.
Mais significativa do que isso é a existência de centenas de milhões de dólares envolvidos no comércio sul-americano de cocaína e o papel da tríplice fronteira como importante passagem de drogas, armas e narcodólares contrabandeados. O perigo, aqui, não é tanto de uma ameaça terrorista aos EUA quanto do desafio que tudo isso representa para a governabilidade da América do Sul. A influência corruptora de somas imensas de dinheiro sujo constitui uma ameaça importante às autoridades civis, aos Judiciários e às forças policiais locais -e, o que não é menos importante, exerce um impacto corrosivo sobre a vida cotidiana, à medida que a criminalidade urbana, a violência aleatória e a insegurança pessoal crônica crescem de maneira geométrica.
Essa rede clandestina de tráfico de drogas e criminalidade liga o Brasil de maneira inexorável à única região das Américas em que tanto os conflitos armados quanto o envolvimento norte-americano estão aumentando: a Colômbia.
Aqueles que imaginam poder beneficiar-se da atual visão de mundo de Washington, renovada e ainda mais maniqueísta do que antes -em que a já familiar visão do mundo em preto-e-branco, onde os "amigos", de um lado, confrontavam os "comunistas", do outro, cedeu espaço à nova configuração que opõe "amigos" a "terroristas"-, se adaptaram rapidamente à nova fórmula. O governo colombiano que está chegando ao fim -o qual já recebeu US$ 1,3 bilhão em ajuda dos EUA (o que o torna o terceiro maior recebedor de ajuda americana no mundo, perdendo apenas para Israel e Egito) e que está sempre sensível ao clima reinante em Washington- explorou a nova terminologia imediatamente, reclassificando os velhos guerrilheiros de esquerda como terroristas pós-modernos.


O principal avestruz é o Brasil, que, paradoxalmente, busca um papel de liderança na América do Sul, mas guarda distância da conflagração mais perigosa e mais potencialmente divisora do continente: a Colômbia


Não foi muito difícil, já que o uso de táticas de terror faz parte, há muito tempo, do repertório letal da guerrilha colombiana. Mas o terror também tem feito parte do arsenal usado pelos paramilitares de direita na Colômbia, sem falar nas próprias Forças Armadas do governo. A guerra na Colômbia não é um conflito simples e claramente delineado entre a "democracia", de um lado, e, do outro, homens selvagens e radicais que vivem na selva. Lamentavelmente é uma guerra civil altamente complexa, extremamente brutal e travada em diversas frentes, profundamente enraizada na história colombiana e sem nenhuma solução fácil à vista. A guerra na Colômbia também é um conflito em que os Estados Unidos, de fato, financiam ambos os lados. O insaciável apetite doméstico americano por drogas ilegais fornece muitíssimos mais dólares para sustentar as insurreições armadas do que a ajuda que o Congresso americano pode fornecer às Forças Armadas colombianas para cobrir os custos de treinamento militar, helicópteros e a pulverização das plantações de coca com agentes desfolhantes. De acordo com estatísticas divulgadas em 18 de março pelo secretário da Justiça, John Ashcroft, os americanos gastaram US$ 62,9 bilhões com drogas no ano 2000, dos quais mais da metade (US$ 36,1 bilhões) com cocaína -ou seja, aproximadamente o equivalente à receita da gigante da mídia AOL Time Warner nesse ano.

Engajamento não desejado
Entretanto a americanização do conflito colombiano constitui um caminho conveniente pelo qual os vizinhos imediatos da Colômbia podem esquivar-se de tratar o problema, apesar de, potencialmente, serem os mais diretamente ameaçados em sofrer o impacto do colapso do Estado colombiano e da intensificação da violência. O principal avestruz é o Brasil, que, paradoxalmente, busca um papel de liderança na América do Sul, mas guarda distância da conflagração mais perigosa e mais potencialmente divisora do continente.
No entanto a Colômbia é um engajamento não desejado que será imposto ao Brasil, cedo ou tarde, quer os brasileiros gostem disso, quer não. O indiciamento nos EUA, em 18 de março, de integrantes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e de três brasileiros, incluindo o narcotraficante Luiz Fernando da Costa (também conhecido como Fernandinho Beira-Mar, o único traficante da lista de Ashcroft que se encontra detido neste momento), por tráfico de drogas destinadas aos EUA, Suriname, Paraguai, México e Espanha, em troca de armas, dinheiro e equipamentos para as Farc, demonstra até que ponto a crise já se internacionalizou. Os indiciamentos vão complicar as relações EUA-Brasil em torno da extradição de Beira-Mar, que os EUA vão querer e à qual o Brasil vai se opor, por uma questão constitucional.
Pode parecer, à primeira vista, que questões perenes e essencialmente periféricas vão continuar a dominar a pauta dos EUA na América Latina. A política interna vai falar mais alto do que a ideologia no Congresso, tanto entre republicanos quanto entre os democratas. A administração republicana conservadora já se dobrou diante do lobby protecionista na questão do aço, e a aprovação da autoridade de negociação comercial, quando finalmente acontecer, será tão restrita que vai dificultar em muito a negociação do livre comércio no hemisfério, especialmente com o Brasil.
Mas o protecionismo também é forte entre os democratas. Democratas liberais, como o senador Christopher Dodd, um dos principais a opinar sobre a política latino-americana dos EUA, serão a favor -e não contra- o aumento da ajuda militar norte-americana ao governo colombiano. O principal candidato ao terceiro cargo mais importante na representação democrata na Câmara dos Deputados, Robert Menendez, de Nova Jersey, é um porta-voz eloquente dos cubano-americanos anticastristas que compõem sua base eleitoral.
Os funcionários de nível intermediário dentro do establishment diplomático americano são todos formados pelo que se poderia chamar de "Escola Jesse Helms de Estudos Latino-Americanos", ou seja, são todos figuras respeitadas pelo lobby cubano-americano ou ex-assessores do Senado no Comitê de Relações Exteriores do senador da Carolina do Norte Jesse Helms, o hoje prestes a se aposentar velho mal-humorado do Senado, famoso (ou infame, dependendo da convicção política do observador) como o "Senador Não". O senador Helms é co-autor da legislação que encerra a política norte-americana em relação a Cuba numa camisa-de-força, pelo menos até que Fidel saia de cena.
Depois de ser alvo da oposição dos democratas no Senado durante um ano devido ao papel que exerceu no imbróglio dos anos 1980 na América Central, Otto Reich foi nomeado pelo presidente Bush, durante o recesso do Congresso, para o cargo de secretário-assistente "interino" do setor de América Latina do Departamento de Estado, ao lado do ex-assessor de Helms no Senado, Roger Noriega, que hoje é o embaixador dos EUA na OEA (Organização dos Estados Americanos) e figura influente nos bastidores em questões referentes à América Latina. No primeiro discurso que fez após sua indicação, Otto Reich, que foi embaixador na Venezuela e lobista empresarial de longo prazo, nem sequer mencionou o Brasil.
Entretanto, embora isso signifique que é pouco provável que qualquer coisa mude na política norte-americana em relação a Cuba, outras questões importantes serão decididas em outras esferas. Estas incluem: o futuro das intervenções do FMI, de outras agências financeiras internacionais e do Tesouro norte-americano para socorrer sistemas econômicos falidos -nesse ponto, o papel do secretário do Tesouro, Paul O'Neill, será crítico para o futuro da Argentina; o comércio, área na qual o papel estratégico crucial (que envolve decisões sobre a Alca -Área de Livre Comércio das Américas) caberá ao representante norte-americano de Comércio, Robert Zoellick; a energia, área na qual a voz principal será a do vice-presidente, Dick Cheney (nesse caso, o futuro do regime de Hugo Chávez na Venezuela será um dos grandes pontos de interrogação); e a imigração, questão sobre a qual o Congresso americano terá voz determinante.


É nesse contexto que o 11 de setembro ganha importância: o chanceler mexicano Jorge Castañeda soube como expressar sua empatia pelo sofrimento dos EUA; FHC, não


Em todas essas áreas já está surgindo de maneira perceptível o esboço de uma nova pauta de prioridades:
1. Não a quaisquer novos pacotes de socorro: em dezembro de 2001 a Argentina anunciou a moratória de uma dívida de US$ 132 bilhões. Foi a maior moratória de dívida da história, um valor suficiente para cobrir os custos de guerra no Afeganistão durante uma década.
Está claro que a era dos megapacotes de socorro já chegou ao fim; aliás, o secretário O'Neill deixou isso claro em diversas ocasiões. Como ele mesmo já disse sem meias palavras, ele não é alguém que se disponha a "gastar o dinheiro de encanadores e marceneiros americanos que ganham US$ 50 mil por ano e se perguntam que diabos estamos fazendo com seu dinheiro". O Tesouro norte-americano não vai mais continuar a oferecer dinheiro, como vem fazendo desde a crise do peso mexicano, em 1994, e os mercados financeiros já compreenderam a mensagem. Logo, a Argentina não provocou nenhum "contágio" -ela simplesmente implodiu e está aguardando seu messias local que virá mais uma vez fazê-la ressuscitar das cinzas.
2. Comércio: é uma questão contenciosa mesmo na melhor das épocas, já que o comércio interliga questões domésticas e multinacionais de maneiras complexas, mobilizando forças racionais e irracionais e ampliando interesses locais de modo que assumam precedência sobre os interesses das políticas nacionais concebidas com visão ampla. No entanto o comércio é essencial para o bem-estar futuro do sistema internacional e, especialmente, para os EUA. Hoje a América Latina compra 44% do total das exportações americanas.
O comércio bilateral entre EUA e México já supera o volume de comércio americano com o Japão, fazendo do México o segundo maior mercado de exportações dos EUA (o primeiro é o Canadá), responsável por 29% do crescimento das exportações americanas. O comércio total com a região já equivale a mais do que o dobro do comércio norte-americano com a União Européia. A Alca é uma prioridade, mas os EUA não estão esperando por meganegociações com o Brasil, que vêem como um co-presidente potencialmente recalcitrante e obstrucionista. Em lugar disso, os EUA parecem estar se movendo pelas margens para criar uma rota alternativa, promovendo acordos de livre comércio com o Chile, a América Central, o Caribe e os países andinos.
3. Energia: 33% das importações petrolíferas dos EUA vêm da América Latina. A Venezuela, sozinha, fornece mais de 14% do petróleo importado anualmente pelos EUA. Até 11 de setembro, os EUA adotavam uma posição de não-ingerência nos assuntos da Venezuela. Suas investidas no cenário internacional em Bagdá, Pequim e Havana não tornaram o presidente Hugo Chávez mais popular em Washington, mas tudo isso era visto como irrelevante, desde que o petróleo continuasse a fluir. Argumentava-se que ele diria uma coisa, mas agiria com responsabilidade, à medida que o futuro de seu governo dependesse das receitas petrolíferas.
Depois de 11 de setembro a atitude americana endureceu, e, à medida que a contestação dentro da Venezuela prossegue, ninguém em Washington ficará muito infeliz se Chávez deixar o governo.
4. Imigração: 44% de todos os imigrantes que vivem nos EUA provêm da América Latina. O México fez da reforma das leis norte-americanas de imigração uma prioridade e já alcançou algum sucesso nessa frente. A imigração e o dinheiro enviado pelos imigrantes estão fortalecendo ainda mais os laços que unem a América do Norte. Nos últimos três anos, 600 mil colombianos deixaram seu país; na Venezuela, 150 mil pessoas partiram desde que Chávez chegou à Presidência; 500 mil pessoas deixaram o Equador; um em cada sete haitianos vive fora de seu país; um em cada seis salvadorenhos emigrou para os EUA; 7,5 milhões de mexicanos vivem nos EUA; e o total enviado por imigrantes a suas famílias na América Latina e no Caribe já passa de US$ 15 bilhões por ano.
5. Nova configuração: Em consequência de todas essas mudanças, quando os EUA olham para fora da "pátria", o que vêem é uma região cada vez mais diferenciada ao sul -na realidade, uma série de círculos concêntricos de engajamento e integração maiores e menores. O círculo interior é o Nafta (acordo norte-americano de livre comércio). Mais além dele, há o que se poderia chamar de "o grande Nafta" (ou seja, o Caribe e a América Central). Mais além deste, há os países andinos (Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e o caso especial do Chile). Com relação ao Mercosul, existe mais ambiguidade; e, no tocante ao Brasil, com ou sem o Mercosul, há uma grande incerteza.
Mas o desafio fundamental dirá respeito à liderança regional, e as partes-chave na disputa são o México e o Brasil. Nesse contexto, a história de dois sociólogos é instrutiva: Jorge Castañeda [chanceler mexicano" e Fernando Henrique Cardoso. Ambos são figuras cosmopolitas e ambos têm tido participação destacada nos debates promovidos em círculos acadêmicos do Primeiro Mundo. Ambos já viajaram muito e lecionaram ou estudaram em importantes universidades francesas e norte-americanas. Ambos são autores prolíficos. Ambos são (ou eram) de esquerda. Cada um chegou ao poder nas costas de uma coalizão de centro-direita.
É nesse contexto que o 11 de setembro ganha importância. Castañeda "captou" a questão instintivamente e soube como expressar sua empatia pelo sofrimento dos EUA, mesmo à custa de despertar a hostilidade de seus compatriotas. FHC, não. Talvez as raízes de suas reações diferentes diante desse momento definidor sejam geracionais. Castañeda estudou em Princeton, nos Estados Unidos, enquanto FHC foi aos Estados Unidos já no papel de professor universitário, alguém que já era intelectualmente formado.
É verdade que o Brasil assumiu a liderança ao evocar o Tratado do Rio em solidariedade aos EUA, um tratado que o México, pouco tempo antes, tinha descrito como redundante, mas, desde 11 de setembro, FHC deve estar acompanhando as pesquisas que monitoram a opinião pública brasileira, e isso se reflete claramente tanto em seu discurso populista neste último ano de Presidência quanto nas críticas cada vez mais estridentes que ele vem fazendo às próprias instituições que mantiveram seu governo operante durante a crise financeira de 1998-99.
Castañeda, ao contrário, trabalha com o sistema americano e já cortejou e conquistou Jesse Helms e George W. Bush. Ele não perdeu tempo nem sentimentos para desativar uma crise potencial, ao permitir que a polícia de Fidel Castro capturasse os cubanos que buscaram asilo na embaixada mexicana em Havana e que, desavisadamente, acharam que teriam a proteção solidária do México recém-democrático.
Castañeda convenceu Bush a ir à Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, da ONU [que ocorreu entre 18 e 22 de março", em Monterrey para discutir a ajuda e o desenvolvimento econômico, além de uma nova promessa de destinar recursos importantes. FHC -que, como Clóvis Rossi já observou, passou quase um ano inteiro de seus oito anos na Presidência fora do Brasil- escolheu esse momento para ficar em casa, cedendo a liderança ao México e, no processo, causando irritação nos EUA.
Existe, porém, um consolo compensatório. O escritor Carlos Fuentes, essa voz sempre confiável do nacionalismo mexicano velho e irredutível, saudou o discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso diante da Assembléia Nacional francesa -que chamou a atenção em Washington por traçar equivalências morais com o terrorismo-como o melhor discurso já feito por um presidente latino-americano em qualquer lugar.
Fuentes será um bom candidato a receber a Ordem do Cruzeiro do Sul que não foi dada a Henry Kissinger. Talvez Castañeda envie Fuentes ao Brasil, como embaixador mexicano, para incentivar o Brasil a continuar sendo o que o México já deixou de ser, enquanto o México, sem alarde mas com eficácia, forja e consolida seu papel de principal parceiro, interlocutor e intérprete latino-americano de Washington.


Tradução de Clara Allain



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