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+ brasil 501 d.c.
Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro
Ser negro no Brasil hoje
por Milton Santos
Há uma frequente indagação sobre como é ser
negro em outros lugares, forma de perguntar,
também, se isso é diferente de ser negro no
Brasil. As peripécias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes, Europa, Américas, África e
Ásia, seja como quase transeunte, isto é, conferencista,
seja como orador, na qualidade de professor e pesquisador.
Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em
diversos países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais correspondentes. Cada uma
dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e todas
elas diversas da própria experiência brasileira. As realidades não são as mesmas.
Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido,
desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deu-lhe
um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária. Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas
e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do
simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos
das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social
sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de
ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas).
Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar
manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil,
segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma
forma de discriminação ou preconceito.
500 anos de culpa
Agora, chega o ano 2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente a construção unitária da nação. Então é ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da história: 500 anos de
culpa, 1 ano de desculpa. Mas as desculpas vêm apenas
de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica!
O próprio presidente da República considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua
Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos
os negros para a grande Casa Brasileira. Por enquanto,
para o ministro da Educação, basta que continuem a
frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam
reservas indígenas.
A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas
coisas para ultrapassar o palavrório retórico e os gestos
cerimoniais e alcançar uma ação política consequente.
Ou os negros deverão esperar mais outro século para
obter o direito a uma participação plena na vida nacional? Que outras reflexões podem ser feitas, quando se
aproxima o aniversário da Abolição da Escravatura,
uma dessas datas nas quais os negros brasileiros são autorizados a fazer, de forma pública, mas quase solitária,
sua catarse anual?
Hipocrisia permanente
No caso do Brasil, a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade
branca dominante reage, quando o tema é a existência,
no país, de um problema negro. Essa equivocação é,
também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio
Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito
de cor, mas manifestá-lo.
Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do
problema torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral é substituído por
referências ao dicionário. Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é
preconceito, discriminação, racismo e quejandos, com
os inevitáveis apelos à comparação com os norte-americanos e europeus. Às vezes, até parece que o essencial
é fugir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o que é?
Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma
ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser
negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um
olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o
discurso individualmente repetido é, também, utilizado
por governos, partidos e instituições. Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele
se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da
emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira
adequada e sistêmica.
Marcas visíveis
Que fazer? Cremos que a discussão
desse problema poderia partir de três dados de base: a
corporeidade, a individualidade e a cidadania. A corporeidade implica dados objetivos, ainda que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui
dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente. Com a verdadeira cidadania, cada qual é o
igual de todos os outros e a força do indivíduo, seja ele
quem for, iguala-se à força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode efetivamente
dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função
da posição relativa de cada um na esfera social.
Costuma-se dizer que uma diferença entre os Estados
Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e aqui
não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que
alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa
linha de cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o
corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando
uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania
do outro. Então, a própria subjetividade e a dos demais
esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avaliação, no entanto, é preconceituosa.
A individualidade é uma conquista demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de
reagir, uma construção que, ao mesmo tempo, é social,
emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio
privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração objetiva da pessoa, diante de
outro olhar. No Brasil, onde a cidadania é, geralmente,
mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais
aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo
acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade.
Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações,
de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do
produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro -imagem fácil- e não as minhas aquisições
intelectuais, após uma vida longa e produtiva.
Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a
conquista, por cada um, da consciência não suprime a
realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas
quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro
de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.
Olhar enviesado
Enfrentar a questão seria, então,
em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la diante da opinião, e aqui entra o papel da escola e,
também, certamente, muito mais, o papel frequentemente negativo da mídia, conduzida a tudo transformar em "faits-divers", em lugar de aprofundar as análises. A coisa fica pior com a preferência atual pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda
mais, o enfrentamento do tema no seu âmago. E há,
também, a displicência deliberada dos governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado
muito mais em termos eleitorais que propriamente em
termos políticos. Desse modo, o assunto é empurrado
para um amanhã que nunca chega.
Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto
de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em
baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na
base da pirâmide social quanto haver "subido na vida".
Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais
e econômicas estruturais e seculares, para as quais não
se buscam remédios. A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a
qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a
sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente
brasileiro no Brasil.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP e autor de, entre outros, "Espaço do Cidadão" (Ed. Nobel), "Pensando o Espaço do Homem" (Ed. Hucitec). Ele escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.
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