São Paulo, domingo, 07 de maio de 2000


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+ história
Alforriando escravos, articulando sua fuga dos cativeiros e fazendo pregação política, as sociedades libertárias do norte do país impulsionaram a Abolição
A Abolição antes da Lei Áurea

Almino Affonso
especial para a Folha

Acrônica que evoca a campanha abolicionista não parece ter espaço para fazer justiça aos que, valendo-se da pressão social como instrumento de luta política, lograram romper os grilhões do cativeiro cinco anos antes que a Lei Áurea fosse assinada pela princesa Isabel, num gesto de audácia que precisa ser lembrado, sobretudo pela lição que nos deixou. À frente das Províncias, numa façanha pioneira, está o Ceará. O próprio governo instituíra, em 1868, por meio da lei nº 1.254, um "fundo especial de 15 contos de réis por ano, para a manumissão de cem escravos que fossem nascendo e levados à pia batismal, de preferência do sexo feminino". E as organizações libertárias, que foram se constituindo, cumpriram um papel propulsor, como a "Sociedade Perseverança e Porvir", o "Centro Abolicionista 25 de Dezembro", a "Sociedade das Senhoras Libertadoras". Por sua vez, a "Sociedade Cearense Libertadora", fundada em 1880, se propunha, com enorme audácia, libertar os escravos por todos os meios ao seu alcance. As Sociedades Libertadoras, além da pregação política, se entregavam à tarefa de obter a alforria de escravos, pela pressão social junto aos escravocratas, pela campanha para angariar fundos e comprar escravos, ato contínuo libertando-os, e pela articulação da fuga de escravos, dando-lhes guarida e defesa, inclusive transferindo-os de uma Província para outra. O jornalista José Lino da Justa, na série de artigos "Vultos da Abolição no Ceará" (que remontam a 1938), revela quanto ousava a ação libertadora: "Aqui, em Fortaleza, chegavam até a arrebentar, de bordo dos vapores, escravos que em trânsito procediam do Norte".

Abolição em uma vila
Nesse contexto, não cabe estranhar que, a 27 de janeiro de 1881, os jangadeiros, tendo à frente Francisco José do Nascimento, tenham assumido a responsabilidade histórica de proclamar: "No porto do Ceará não se embarcam mais escravos!". O governo, por todos os meios, tentou esmagar o movimento. Mas tudo em vão: os jangadeiros haviam abolido de fato o tráfico de escravos no Ceará.
Nada mais podia deter o movimento emancipador. A "Sociedade Cearense Libertadora" decidira, num gesto emblemático, alforriar todos os escravos de Aracape. Vale dizer -e aí a força do símbolo-, abolir a escravidão na pequena vila... A comissão da "Libertadora", composta de João Cordeiro, Almino Affonso, Antônio Martins e Frederico Borges, que visitara Acarape em novembro de 1882 -incumbida da pregação-, empolgou a cidadania.
Assim, quando se instalou o ato libertário, a 1º de janeiro de 1883, com a presença de José do Patrocínio (que viera do Rio de Janeiro para o evento) e das mais significativas lideranças do Ceará, foram distribuídas as últimas cartas de alforria.
Assim, quando se instalou o ato libertário, a 1º de janeiro de 1883, com a presença de José do Patrocínio (que viera do Rio de Janeiro para o evento) e das mais significativas lideranças do Ceará, foram distribuídas as últimas cartas de alforria. Na pequenina vila, que logo mais se chamaria Redenção, todos se tornaram homens livres! Na verdade, rompera-se a cadeia da escravatura no elo mais frágil... Não obstante as dimensões de Acarape, a repercussão política daquela manhã foi enorme. Joaquim Nabuco, em carta da Inglaterra, arrebata-se: "O Ceará é maravilhoso. Parece incrível que essa Província faça parte do Império. Acarape é mais do que um farol para todo o país; é o começo de uma pátria livre". Raul Pompéia, o grande romancista, derrama-se em louvores: "O Acarape começa. Vai nascer o futuro". De volta ao Rio de Janeiro, José do Patrocínio denomina o Ceará de "Terra da Luz".

Desafio à ordem
Na verdade, Acarape representou um desafio à ordem constituída. E um exemplo a ser seguido. Não tardou muito e Fortaleza, a 24 de maio de 1883, também ousou libertar seus escravos. Pelo interior afora, a correnteza abolicionista já não é contida. Cidade por cidade, todas se orgulham de lavar-se do opróbrio escravagista. Até que, a 25 de março de 1884, o presidente da Província -dr. Sátiro de Oliveira Dias- declara solenemente: "A Província do Ceará não possui mais escravos!". Os canhões da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção reboaram, os sinos repicaram: "É indescritível então o que se passou!". Segundo Manoel Onofre, os matutinos, em suas edições especiais, teceram "homenagens aos vultos abolicionistas mais atuantes, notando-se o relevo dado à personalidade de João Cordeiro e à de Almino Affonso, entre os primeiros e outros denodados companheiros". Raimundo Nonato, por sua vez, destaca a contribuição do combativo rio-grandense-do-norte: "Fato que não padece dúvida é que toda a campanha abolicionista do Ceará teve na palavra de Almino Affonso um dos seus elementos decisivos, senão sua principal figura pelo entusiasmo com que empolgava a Terra da Luz".

Efeito moral e político
Vale insistir: quatro anos antes da Lei Áurea, a Província do Ceará, pela vontade política e social de seu povo, tornou-se pioneira na abolição da escravatura. Joaquim Nabuco em Paris, em 1900, fez justiça a essa raça de lutadores: "A emancipação do Ceará foi o acontecimento decisivo para a causa abolicionista. O efeito moral da existência de uma Província livre, resgatada e desde então fechada para a escravidão foi imenso; o efeito político, imediato!". Ao impulso da maçonaria, fora organizada em Mossoró (RN), a Sociedade Libertadora Mossoroense, sob a liderança de Joaquim Bezerra da Costa Menezes, Romualdo Lopes Galvão, Miguel Faustino do Monte e Francisco Romão Figueira.
Ainda se ouviam as ressonâncias de Acarape e Fortaleza quando Mossoró, a 30 de setembro de 1883, também engalanou-se para declarar-se livre da escravidão. Foram sete dias de festa. Com a presença de Almino Affonso, que viera de Fortaleza para compartir com seus conterrâneos aquele momento de grandeza, o presidente da Sociedade Libertadora Mossoroense -Joaquim Bezerra da Costa Mendes- fez a declaração histórica: "Mossoró está livre: aqui não há mais escravos!".
Sem desmerecer a contribuição de tantas outras lideranças, os que se têm dedicado à história da Abolição em Mossoró são unânimes em reconhecer em Almino Affonso o condutor daquela jornada, sobretudo pela sua palavra dominadora. Câmara Cascudo, por exemplo, na sua "História do Rio Grande do Norte", interpreta esse fascínio coletivo: "Almino Affonso surgia para a multidão como seu predestinado, um super-homem, um semideus". E linhas adiante: "Na abolição de Mossoró, Almino, que fora para magna cearense, passara a fronteira e conquistara a idolatria com sua voz estentórica, reboante e vastíssima".
A irradiação do movimento abolicionista também se antecipara na Província do Amazonas. A Sociedade Emancipadora Amazonense, fundada em 1870, da qual foi presidente Tenreiro Aranha, de longe cumpria o seu papel de proselitismo. E o próprio governo, amparado na lei de 24 de abril de 1884, "consignou a quantia de 30 contos de réis, num orçamento de 2.500 contos, para completar as alforrias, ao mesmo tempo proibindo a entrada de novos escravos na Província do Amazonas".
A 1º de maio de 1884, fora constituída, em Manaus, a "Sociedade Emancipadora 25 de Março". Almino Affonso, que há pouco chegara do Ceará, incorpora-se à campanha abolicionista no Amazonas, ao lado de figuras proeminentes da Província, como Lima Bacury José Paranaguá, Leonardo Malcher.
A 24 de maio de 1884, Manaus libertou seus escravos. Segundo Robério Braga, jovem e brilhante historiador amazonense, foi "da maior relevância o desempenho de Almino Affonso e Gentil Rodrigues de Souza", inclusive na obtenção de recursos para alforriar os escravos que ainda restavam nas senzalas.
Por fim, a 10 de julho de 1884, o presidente da Província, dr. Theodureto Souto, proclama a emancipação dos escravos no Amazonas: "Ficando assim, e de hoje para sempre, abolida a escravidão e proclamada a igualdade dos direitos de todos os seus habitantes".
Antecipando-se às demais Províncias, o Ceará, o Amazonas e o Rio Grande do Norte souberam plantar a sementeira da igualdade social, muito antes que a Lei Áurea ousasse fazê-lo. É hora de reconhecer-lhes essa façanha histórica.


Almino Affonso é advogado. Foi deputado federal pelo PSB-SP, ministro do Trabalho e da Previdência Social (governo João Goulart) e vice-governador do Estado de São Paulo (1983-85). É organizador do livro "Poliantéia - Almino Affonso, Tribuno da Abolição" (Senado Federal).


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