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+ história
Alforriando escravos, articulando sua fuga dos cativeiros e fazendo pregação política, as sociedades libertárias do norte do país impulsionaram a Abolição
A Abolição antes da Lei Áurea
Almino Affonso
especial para a Folha
Acrônica que evoca a campanha
abolicionista não parece ter espaço para fazer justiça aos que,
valendo-se da pressão social como instrumento de luta política, lograram romper os grilhões do cativeiro cinco anos antes que a Lei Áurea fosse assinada pela princesa Isabel, num gesto de
audácia que precisa ser lembrado, sobretudo pela lição que nos deixou. À frente
das Províncias, numa façanha pioneira,
está o Ceará. O próprio governo instituíra, em 1868, por meio da lei nº 1.254, um
"fundo especial de 15 contos de réis por
ano, para a manumissão de cem escravos
que fossem nascendo e levados à pia batismal, de preferência do sexo feminino".
E as organizações libertárias, que foram se constituindo, cumpriram um papel propulsor, como a "Sociedade Perseverança e Porvir", o "Centro Abolicionista 25 de Dezembro", a "Sociedade das
Senhoras Libertadoras". Por sua vez, a
"Sociedade Cearense Libertadora", fundada em 1880, se propunha, com enorme
audácia, libertar os escravos por todos os
meios ao seu alcance. As Sociedades Libertadoras, além da pregação política, se
entregavam à tarefa de obter a alforria de
escravos, pela pressão social junto aos escravocratas, pela campanha para angariar fundos e comprar escravos, ato contínuo libertando-os, e pela articulação da
fuga de escravos, dando-lhes guarida e
defesa, inclusive transferindo-os de uma
Província para outra.
O jornalista José Lino da Justa, na série
de artigos "Vultos da Abolição no Ceará"
(que remontam a 1938), revela quanto
ousava a ação libertadora: "Aqui, em
Fortaleza, chegavam até a arrebentar, de
bordo dos vapores, escravos que em
trânsito procediam do Norte".
Abolição em uma vila
Nesse contexto, não cabe estranhar que, a 27 de janeiro de 1881, os jangadeiros, tendo à
frente Francisco José do Nascimento, tenham assumido a responsabilidade histórica de proclamar: "No porto do Ceará
não se embarcam mais escravos!". O governo, por todos os meios, tentou esmagar o movimento. Mas tudo em vão: os
jangadeiros haviam abolido de fato o tráfico de escravos no Ceará.
Nada mais podia deter o movimento
emancipador. A "Sociedade Cearense Libertadora" decidira, num gesto emblemático, alforriar todos os escravos de
Aracape. Vale dizer -e aí a força do símbolo-, abolir a escravidão na pequena
vila... A comissão da "Libertadora",
composta de João Cordeiro, Almino Affonso, Antônio Martins e Frederico Borges, que visitara Acarape em novembro
de 1882 -incumbida da pregação-,
empolgou a cidadania.
Assim, quando se instalou o ato libertário, a 1º de janeiro de 1883, com a presença de José do Patrocínio (que viera do
Rio de Janeiro para o evento) e das mais
significativas lideranças do Ceará, foram
distribuídas as últimas cartas de alforria.
Assim, quando se instalou o ato libertário, a 1º de janeiro de 1883, com a presença de José do Patrocínio (que viera do
Rio de Janeiro para o evento) e das mais
significativas lideranças do Ceará, foram
distribuídas as últimas cartas de alforria.
Na pequenina vila, que logo mais se chamaria Redenção, todos se tornaram homens livres! Na verdade, rompera-se a
cadeia da escravatura no elo mais frágil...
Não obstante as dimensões de Acarape, a repercussão política daquela manhã foi enorme. Joaquim Nabuco, em
carta da Inglaterra, arrebata-se: "O Ceará
é maravilhoso. Parece incrível que essa
Província faça parte do Império. Acarape é mais do que um farol para todo o
país; é o começo de uma pátria livre".
Raul Pompéia, o grande romancista,
derrama-se em louvores: "O Acarape começa. Vai nascer o futuro". De volta ao
Rio de Janeiro, José do Patrocínio denomina o Ceará de "Terra da Luz".
Desafio à ordem
Na verdade, Acarape representou um desafio à ordem
constituída. E um exemplo a ser seguido.
Não tardou muito e Fortaleza, a 24 de
maio de 1883, também ousou libertar
seus escravos. Pelo interior afora, a correnteza abolicionista já não é contida. Cidade por cidade, todas se orgulham de
lavar-se do opróbrio escravagista. Até
que, a 25 de março de 1884, o presidente
da Província -dr. Sátiro de Oliveira
Dias- declara solenemente: "A Província do Ceará não possui mais escravos!".
Os canhões da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção reboaram, os sinos
repicaram: "É indescritível então o que
se passou!".
Segundo Manoel Onofre, os matutinos, em suas edições especiais, teceram
"homenagens aos vultos abolicionistas
mais atuantes, notando-se o relevo dado
à personalidade de João Cordeiro e à de
Almino Affonso, entre os primeiros e outros denodados companheiros". Raimundo Nonato, por sua vez, destaca a
contribuição do combativo rio-grandense-do-norte: "Fato que não padece dúvida é que toda a campanha abolicionista
do Ceará teve na palavra de Almino Affonso um dos seus elementos decisivos,
senão sua principal figura pelo entusiasmo com que empolgava a Terra da Luz".
Efeito moral e político
Vale insistir: quatro anos antes da Lei Áurea, a
Província do Ceará, pela vontade política
e social de seu povo, tornou-se pioneira
na abolição da escravatura. Joaquim Nabuco em Paris, em 1900, fez justiça a essa
raça de lutadores: "A emancipação do
Ceará foi o acontecimento decisivo para
a causa abolicionista. O efeito moral da
existência de uma Província livre, resgatada e desde então fechada para a escravidão foi imenso; o efeito político, imediato!". Ao impulso da maçonaria, fora
organizada em Mossoró (RN), a Sociedade Libertadora Mossoroense, sob a liderança de Joaquim Bezerra da Costa
Menezes, Romualdo Lopes Galvão, Miguel Faustino do Monte e Francisco Romão Figueira.
Ainda se ouviam as ressonâncias de
Acarape e Fortaleza quando Mossoró, a
30 de setembro de 1883, também engalanou-se para declarar-se livre da escravidão. Foram sete dias de festa. Com a presença de Almino Affonso, que viera de
Fortaleza para compartir com seus conterrâneos aquele momento de grandeza,
o presidente da Sociedade Libertadora
Mossoroense -Joaquim Bezerra da
Costa Mendes- fez a declaração histórica: "Mossoró está livre: aqui não há mais
escravos!".
Sem desmerecer a contribuição de tantas outras lideranças, os que se têm dedicado à história da Abolição em Mossoró
são unânimes em reconhecer em Almino Affonso o condutor daquela jornada,
sobretudo pela sua palavra dominadora.
Câmara Cascudo, por exemplo, na sua
"História do Rio Grande do Norte", interpreta esse fascínio coletivo: "Almino
Affonso surgia para a multidão como seu
predestinado, um super-homem, um semideus". E linhas adiante: "Na abolição
de Mossoró, Almino, que fora para magna cearense, passara a fronteira e conquistara a idolatria com sua voz estentórica, reboante e vastíssima".
A irradiação do movimento abolicionista também se antecipara na Província
do Amazonas. A Sociedade Emancipadora Amazonense, fundada em 1870, da
qual foi presidente Tenreiro Aranha, de
longe cumpria o seu papel de proselitismo. E o próprio governo, amparado na
lei de 24 de abril de 1884, "consignou a
quantia de 30 contos de réis, num orçamento de 2.500 contos, para completar
as alforrias, ao mesmo tempo proibindo
a entrada de novos escravos na Província
do Amazonas".
A 1º de maio de 1884, fora constituída,
em Manaus, a "Sociedade Emancipadora 25 de Março". Almino Affonso, que há
pouco chegara do Ceará, incorpora-se à
campanha abolicionista no Amazonas,
ao lado de figuras proeminentes da Província, como Lima Bacury José Paranaguá, Leonardo Malcher.
A 24 de maio de 1884, Manaus libertou
seus escravos. Segundo Robério Braga,
jovem e brilhante historiador amazonense, foi "da maior relevância o desempenho de Almino Affonso e Gentil Rodrigues de Souza", inclusive na obtenção
de recursos para alforriar os escravos
que ainda restavam nas senzalas.
Por fim, a 10 de julho de 1884, o presidente da Província, dr. Theodureto Souto, proclama a emancipação dos escravos no Amazonas: "Ficando assim, e de
hoje para sempre, abolida a escravidão e
proclamada a igualdade dos direitos de
todos os seus habitantes".
Antecipando-se às demais Províncias,
o Ceará, o Amazonas e o Rio Grande do
Norte souberam plantar a sementeira da
igualdade social, muito antes que a Lei
Áurea ousasse fazê-lo. É hora de reconhecer-lhes essa façanha histórica.
Almino Affonso é advogado. Foi deputado federal
pelo PSB-SP, ministro do Trabalho e da Previdência Social (governo João Goulart) e vice-governador do Estado de São Paulo (1983-85). É organizador do livro "Poliantéia - Almino Affonso, Tribuno da Abolição" (Senado Federal).
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