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"The Trust" conta a história da família por trás
do mais influente jornal do planeta, o "The New York Times"
O império da notícia
Mario Sergio Conti
da Reportagem Local
Mãe, advinha com quem eu almocei
hoje?", perguntou Arthur Ochs
Sulzberger a sua mãe. O acionista majoritário e editor do "The New York Times" correu para a sucursal do jornal em
Washington assim que saiu da Casa
Branca. Queria telefonar logo para a mãe
e, orgulhoso, contar que havia tido um
almoço privado com o presidente Ronald Reagan, o vice George Bush e o secretário de Estado George Schultz.
"Punch, isso é maravilhoso", comemorou Iphigene, usando o apelido pelo qual
todos o conheciam. A mãe fez uma pausa retórica e emendou a pergunta, para
ela óbvia: "O que eles queriam, filho?".
O almoço juntara duas instâncias de
poder da maior potência mundial. Subordinado às regras eleitorais, o poder
de Ronald Reagan era transitório por definição. O de Punch Sulzberger gozava
da perenidade das linhagens aristocráticas. Em 1976, a revista "U.S. News" publicou uma reportagem de capa, intitulada "Quem dirige a América?", com uma
pesquisa sobre os 30 líderes mais influentes dos EUA. O primeiro lugar coube ao presidente Gerald Ford, e Punch
ocupou a 13ª colocação na lista. Em 1982,
a revista repetiu a reportagem. O dirigente do "The New York Times" tornou
a aparecer em 13º lugar. Mas todos os nomes acima dele haviam mudado.
A mística do "Times"
Punch Sulzberger representava no almoço na Casa
Branca uma empresa que tem hoje 13 mil
funcionários, 22 jornais, três revistas, oito estações de televisão e duas de rádio.
Representava também gerações de repórteres e redatores que fizeram do "The
New York Times", com sua tiragem diária de 1,1 milhão de exemplares - 1,7
milhão aos domingos-, um dos maiores jornais do mundo. Representava,
ainda, uma mística: o "Times" é o mais
influente jornal do planeta. É ele quem
estabelece os parâmetros de qualidade
jornalística. Ao colocar determinados assuntos na primeira página, o jornal tem o
condão não apenas de definir o que é notícia, mas, em muitos casos, estabelecer o
que é a Verdade, assim mesmo, com
maiúscula. "Deu no "New York Times'"
não é uma expressão retórica; é o resumo
dessa mística.
O editor representava tudo isso no almoço e encarnava também uma família,
os Ochs-Sulzberger, que há 103 anos é
dona do jornal. Lançado nos Estados
Unidos no final do ano passado, "The
Trust - The Private and Powerful Family
Behind The New York Times" é a história desse clã. Ao contrário do que ocorre
no Brasil, livros sobre órgãos de imprensa são publicados às dúzias nos Estados
Unidos. Só sobre o "Times" há mais de
dez obras de primeira linha, entre eles os
excelentes "The Kingdom and the Power", de Gay Talese, e "Without Fear or
Favor", de Harrison Salisbury, ambos
com o foco na redação e nas notícias publicadas pelo jornal. Ainda assim, "The
Trust" tem novidades na apuração e no
enfoque.
Fatos incômodos
Na apuração: seus
autores, o casal de jornalistas Susan E.
Tifft e Alex S. Jones, tiveram livre acesso
aos arquivos do "Times" e dos Ochs-Sulzberger. Durante sete anos eles pesquisaram cartas, memorandos e relatórios econômico-financeiros e fizeram
550 entrevistas. Como não tiveram de
submeter seu trabalho aos Ochs-Sulzberger antes da publicação, "The Trust"
não é uma história oficial, autorizada.
Ele registra inúmeros fatos incômodos
para a família: adultérios, divórcios estrepitosos, uso de drogas, disputas corporativas, erros grosseiros, manipulação
dos livros contábeis da empresa, servilismo etc. O tom dos autores (às vezes maçante pelo detalhismo) é de admiração
pelos Ochs-Sulzberger. O que não os impediu de expor as entranhas de um clã
discreto e extremamente cioso de sua
imagem pública.
No enfoque: ao traçar a saga dos donos
do "The New York Times", o livro ilumina a teia de relações, sempre delicada e
muitas vezes explosiva, entre patrões e
jornalistas. Grosso modo, jornalistas
tendem a encarar o patronato como um
estorvo ou um mal inevitável. Os órgãos
de imprensa, nessa visão maniqueísta,
seriam muito melhores se seus donos
não existissem. Os donos, na caricatura
simetricamente oposta, acham que são
os primeiros, ou os únicos, responsáveis
pela qualidade dos jornais
e revistas que publicam.
Ao narrar os feitos de
quatro gerações dos
Ochs-Sulzberger à frente
do "Times", "The Trust"
não tem propriamente
uma tese a oferecer sobre
essas relações. O acúmulo
de informações e perfis dos membros da
família mostra, contudo, o papel decisivo da família na moldagem do jornal.
Adolph S. Ochs, o judeu de origem alemã que comprou o "The New York Times" em setembro de 1896, colocou em
prática algumas idéias editoriais que lhe
deram personalidade e até hoje orientam
o seu comportamento. Ochs queria que
o seu diário fosse lido pela elite novaiorquina. Deliberadamente, pois, fugiu do
sensacionalismo e dos escândalos, característicos dos jornais de maior sucesso da
época, e deu um tom neutro e relatorial
às reportagens.
Da mesma forma, fez do "Times" um
jornal de "registro". Ou seja, que registrasse em profundidade tudo o que
aconteceu de importante no dia. Daí se
explica que o "Times" transcreva na íntegra discursos e documentos significativos. Cumpriu assim, na prática, a concepção de um outro dono de jornal, Philip Graham, do "The Washington Post".
A imprensa, na frase de Graham, deveria
ser "o primeiro esboço da história".
Desejo de assimilação
Tifft e Jones
vêem no empenho de Ochs em fazer um
jornal respeitável, útil para a elite, mais
do que uma estratégia comercial. Vindo
de uma família de imigrantes, cujo pai
faliu e beirou a pobreza, Ochs queria ser
assimilado pela elite anglo-saxã. Para
tanto, se não escondia suas origens judaicas, não as alardeava. Tanto que sempre evitou que o seu jornal esposasse
causas judaicas. Essa postura entrou na
cultura do "Times" e o levou a cometer
erros clamorosos. Ochs tinha plena
consciência do significado da ascensão
do nazismo na Alemanha. Maníaco-depressivo, mergulhou numa crise profunda, que acabaria por matá-lo em 1935,
quando Hitler tomou o poder. Nem por
isso o "Times" mudou substancialmente
sua cobertura de política internacional.
O sucessor de Ochs na direção do jornal, Arthur Hays Sulzberger, que casou
com sua filha única, Iphigene, manteve
essa postura. O "Times", por exemplo,
praticamente não noticiou o morticínio
de judeus na Segunda
Guerra Mundial. Na reportagem sobre a libertação do campo de extermínio de Dachau não há a
palavra "judeu". Só em
1943 o jornal, e ainda assim obrigado por uma
sentença judicial, deixou
de publicar anúncios de hotéis americanos que não permitiam a hospedagem
de judeus.
Não obstante, a cobertura do "The
New York Times" da Segunda Guerra
Mundial foi portentosa. Com 55 correspondentes espalhados pela Europa e pela
Ásia, o jornal deu a real dimensão do
conflito. Como havia racionamento de
papel, reza a lenda que Sulzberger determinou que o "Times" recusasse anúncios e, portanto, lucrasse menos, para
poder dar todas as notícias.
"The Trust" prova que a lenda é um
pouco mais complicada. Sulzberger de
fato restringiu as páginas de publicidade,
mas cortou ainda mais as dedicadas a
notícias. Em 1939, o jornal publicava
60% de suas páginas com notícias. Em
1944, menos de 50% do jornal estampava
notícias. Proporcionalmente, porém, o
"Times" dedicou mais espaço ao noticiário naqueles anos do que os seus competidores, que privilegiaram o lucro imediato. Resultado: o "Times" angariou
menos anunciantes e mais leitores, que
permaneceram fiéis ao jornal quando a
guerra terminou. Esse processo marcou
a derrocada do "Herald Tribune", o
maior concorrente do "The New York
Times". Por vias tortas, o "Times" se firmou.
Ao longo de "The Trust" há inúmeros
exemplos da interferência das "vias tortas". O acaso, a sorte, a força dos acontecimentos, o lance de dados da história e o
talento insuspeitado de determinadas
pessoas fizeram com que o "The New
York Times" se tornasse um modelo de
excelência jornalística. Punch Sulzberger, por exemplo, certa vez assistiu a um
desastre na corrida de Le Mans, na França, no qual carros saíram da pista, atropelaram e mataram 83 pessoas. Não lhe
ocorreu telefonar para o jornal e passar a
notícia. O mesmo Punch, porém, foi um
grande editor, que modernizou e deu a
atual fisionomia do "Times".
Um jornal é obra humana. Produto de
um trabalho coletivo, ele está sujeito a
forças às vezes misteriosas, às vezes incontroláveis. É produto da continuidade
de certos princípios estabelecidos pelos
seus donos. No caso do "The New York
Times", o princípio orientador está condensado numa expressão de seu fundador, Adolph Ochs: publicar as notícias
"sem medo ou favorecimento". Esse
princípio, cultivado e mantido pelos
Ochs-Sulzberger há mais de cem anos,
ajuda a entender o sucesso do jornal.
The Trust - The Private and Powerful Family Behind The New York Times
870 págs., US$ 29,95
de Susan E. Tifft e Alex S. Jones.
Little Brown & Company (Estados Unidos).
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