São Paulo, domingo, 07 de maio de 2000


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"The Trust" conta a história da família por trás do mais influente jornal do planeta, o "The New York Times"
O império da notícia

Mario Sergio Conti
da Reportagem Local

Mãe, advinha com quem eu almocei hoje?", perguntou Arthur Ochs Sulzberger a sua mãe. O acionista majoritário e editor do "The New York Times" correu para a sucursal do jornal em Washington assim que saiu da Casa Branca. Queria telefonar logo para a mãe e, orgulhoso, contar que havia tido um almoço privado com o presidente Ronald Reagan, o vice George Bush e o secretário de Estado George Schultz. "Punch, isso é maravilhoso", comemorou Iphigene, usando o apelido pelo qual todos o conheciam. A mãe fez uma pausa retórica e emendou a pergunta, para ela óbvia: "O que eles queriam, filho?". O almoço juntara duas instâncias de poder da maior potência mundial. Subordinado às regras eleitorais, o poder de Ronald Reagan era transitório por definição. O de Punch Sulzberger gozava da perenidade das linhagens aristocráticas. Em 1976, a revista "U.S. News" publicou uma reportagem de capa, intitulada "Quem dirige a América?", com uma pesquisa sobre os 30 líderes mais influentes dos EUA. O primeiro lugar coube ao presidente Gerald Ford, e Punch ocupou a 13ª colocação na lista. Em 1982, a revista repetiu a reportagem. O dirigente do "The New York Times" tornou a aparecer em 13º lugar. Mas todos os nomes acima dele haviam mudado.

A mística do "Times"
Punch Sulzberger representava no almoço na Casa Branca uma empresa que tem hoje 13 mil funcionários, 22 jornais, três revistas, oito estações de televisão e duas de rádio. Representava também gerações de repórteres e redatores que fizeram do "The New York Times", com sua tiragem diária de 1,1 milhão de exemplares - 1,7 milhão aos domingos-, um dos maiores jornais do mundo. Representava, ainda, uma mística: o "Times" é o mais influente jornal do planeta. É ele quem estabelece os parâmetros de qualidade jornalística. Ao colocar determinados assuntos na primeira página, o jornal tem o condão não apenas de definir o que é notícia, mas, em muitos casos, estabelecer o que é a Verdade, assim mesmo, com maiúscula. "Deu no "New York Times'" não é uma expressão retórica; é o resumo dessa mística. O editor representava tudo isso no almoço e encarnava também uma família, os Ochs-Sulzberger, que há 103 anos é dona do jornal. Lançado nos Estados Unidos no final do ano passado, "The Trust - The Private and Powerful Family Behind The New York Times" é a história desse clã. Ao contrário do que ocorre no Brasil, livros sobre órgãos de imprensa são publicados às dúzias nos Estados Unidos. Só sobre o "Times" há mais de dez obras de primeira linha, entre eles os excelentes "The Kingdom and the Power", de Gay Talese, e "Without Fear or Favor", de Harrison Salisbury, ambos com o foco na redação e nas notícias publicadas pelo jornal. Ainda assim, "The Trust" tem novidades na apuração e no enfoque.

Fatos incômodos
Na apuração: seus autores, o casal de jornalistas Susan E. Tifft e Alex S. Jones, tiveram livre acesso aos arquivos do "Times" e dos Ochs-Sulzberger. Durante sete anos eles pesquisaram cartas, memorandos e relatórios econômico-financeiros e fizeram 550 entrevistas. Como não tiveram de submeter seu trabalho aos Ochs-Sulzberger antes da publicação, "The Trust" não é uma história oficial, autorizada. Ele registra inúmeros fatos incômodos para a família: adultérios, divórcios estrepitosos, uso de drogas, disputas corporativas, erros grosseiros, manipulação dos livros contábeis da empresa, servilismo etc. O tom dos autores (às vezes maçante pelo detalhismo) é de admiração pelos Ochs-Sulzberger. O que não os impediu de expor as entranhas de um clã discreto e extremamente cioso de sua imagem pública. No enfoque: ao traçar a saga dos donos do "The New York Times", o livro ilumina a teia de relações, sempre delicada e muitas vezes explosiva, entre patrões e jornalistas. Grosso modo, jornalistas tendem a encarar o patronato como um estorvo ou um mal inevitável. Os órgãos de imprensa, nessa visão maniqueísta, seriam muito melhores se seus donos não existissem. Os donos, na caricatura simetricamente oposta, acham que são os primeiros, ou os únicos, responsáveis pela qualidade dos jornais e revistas que publicam. Ao narrar os feitos de quatro gerações dos Ochs-Sulzberger à frente do "Times", "The Trust" não tem propriamente uma tese a oferecer sobre essas relações. O acúmulo de informações e perfis dos membros da família mostra, contudo, o papel decisivo da família na moldagem do jornal. Adolph S. Ochs, o judeu de origem alemã que comprou o "The New York Times" em setembro de 1896, colocou em prática algumas idéias editoriais que lhe deram personalidade e até hoje orientam o seu comportamento. Ochs queria que o seu diário fosse lido pela elite novaiorquina. Deliberadamente, pois, fugiu do sensacionalismo e dos escândalos, característicos dos jornais de maior sucesso da época, e deu um tom neutro e relatorial às reportagens. Da mesma forma, fez do "Times" um jornal de "registro". Ou seja, que registrasse em profundidade tudo o que aconteceu de importante no dia. Daí se explica que o "Times" transcreva na íntegra discursos e documentos significativos. Cumpriu assim, na prática, a concepção de um outro dono de jornal, Philip Graham, do "The Washington Post". A imprensa, na frase de Graham, deveria ser "o primeiro esboço da história".

Desejo de assimilação
Tifft e Jones vêem no empenho de Ochs em fazer um jornal respeitável, útil para a elite, mais do que uma estratégia comercial. Vindo de uma família de imigrantes, cujo pai faliu e beirou a pobreza, Ochs queria ser assimilado pela elite anglo-saxã. Para tanto, se não escondia suas origens judaicas, não as alardeava. Tanto que sempre evitou que o seu jornal esposasse causas judaicas. Essa postura entrou na cultura do "Times" e o levou a cometer erros clamorosos. Ochs tinha plena consciência do significado da ascensão do nazismo na Alemanha. Maníaco-depressivo, mergulhou numa crise profunda, que acabaria por matá-lo em 1935, quando Hitler tomou o poder. Nem por isso o "Times" mudou substancialmente sua cobertura de política internacional.
O sucessor de Ochs na direção do jornal, Arthur Hays Sulzberger, que casou com sua filha única, Iphigene, manteve essa postura. O "Times", por exemplo, praticamente não noticiou o morticínio de judeus na Segunda Guerra Mundial. Na reportagem sobre a libertação do campo de extermínio de Dachau não há a palavra "judeu". Só em 1943 o jornal, e ainda assim obrigado por uma sentença judicial, deixou de publicar anúncios de hotéis americanos que não permitiam a hospedagem de judeus.
Não obstante, a cobertura do "The New York Times" da Segunda Guerra Mundial foi portentosa. Com 55 correspondentes espalhados pela Europa e pela Ásia, o jornal deu a real dimensão do conflito. Como havia racionamento de papel, reza a lenda que Sulzberger determinou que o "Times" recusasse anúncios e, portanto, lucrasse menos, para poder dar todas as notícias.
"The Trust" prova que a lenda é um pouco mais complicada. Sulzberger de fato restringiu as páginas de publicidade, mas cortou ainda mais as dedicadas a notícias. Em 1939, o jornal publicava 60% de suas páginas com notícias. Em 1944, menos de 50% do jornal estampava notícias. Proporcionalmente, porém, o "Times" dedicou mais espaço ao noticiário naqueles anos do que os seus competidores, que privilegiaram o lucro imediato. Resultado: o "Times" angariou menos anunciantes e mais leitores, que permaneceram fiéis ao jornal quando a guerra terminou. Esse processo marcou a derrocada do "Herald Tribune", o maior concorrente do "The New York Times". Por vias tortas, o "Times" se firmou.
Ao longo de "The Trust" há inúmeros exemplos da interferência das "vias tortas". O acaso, a sorte, a força dos acontecimentos, o lance de dados da história e o talento insuspeitado de determinadas pessoas fizeram com que o "The New York Times" se tornasse um modelo de excelência jornalística. Punch Sulzberger, por exemplo, certa vez assistiu a um desastre na corrida de Le Mans, na França, no qual carros saíram da pista, atropelaram e mataram 83 pessoas. Não lhe ocorreu telefonar para o jornal e passar a notícia. O mesmo Punch, porém, foi um grande editor, que modernizou e deu a atual fisionomia do "Times".
Um jornal é obra humana. Produto de um trabalho coletivo, ele está sujeito a forças às vezes misteriosas, às vezes incontroláveis. É produto da continuidade de certos princípios estabelecidos pelos seus donos. No caso do "The New York Times", o princípio orientador está condensado numa expressão de seu fundador, Adolph Ochs: publicar as notícias "sem medo ou favorecimento". Esse princípio, cultivado e mantido pelos Ochs-Sulzberger há mais de cem anos, ajuda a entender o sucesso do jornal.



The Trust - The Private and Powerful Family Behind The New York Times
870 págs., US$ 29,95 de Susan E. Tifft e Alex S. Jones. Little Brown & Company (Estados Unidos).




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