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A MUSA NÃO-DANIFICADA
Lançado nos EUA, "Martha Freud" lança luz sobre temores, dúvidas e mesquinhezas do criador da psicanálise a partir da vida reclusa de sua mulher
JENNY DISKI
Na lista de chamada da corporação de ofício de mulheres adoradoras e que
criaram condições para
seus maridos desenvolverem seus
trabalhos, o nome de Martha Freud
figura entre os maiores, ao lado da
sra. Noé, sra. Darwin, sra. Marx, sra.
Joyce, sra. Nabokov e sra. Clinton.
Mulheres, de um sexo ou de outro,
são o elemento que conserva o universo suficientemente calmo e ordeiro para que as grandes mentes
possam tecer suas reflexões, concluir suas viagens, escrever seus livros e transformar o mundo.
Martha Freud foi um modelo de
perfeição como cônjuge. Não há nada que mais liberte uma pessoa do
exaustivo e repetitivo trabalho doméstico e do sentimento de culpa
decorrente de evitá-lo do que dispor
de uma faxineira que adora fazer faxina, uma babá que se satisfaz em
cuidar das crianças, uma pessoa caseira que não deseja nada além de ficar em casa. E Martha foi tudo isso.
Precisamente porque ela foi tudo
isso é que seu marido pode ter sido
exatamente a pessoa indicada para
pesquisar. Mas Freud não era bobo e
sabia muito bem -quando era o caso- deixar tudo como estava nas
regiões mais obscuras de sua vida
pessoal -especialmente aquele
continente sombrio de sua mente
que dizia respeito às mulheres.
As misérias da vida
Ele mencionou de passagem, em
uma carta a seu amigo Wilhelm
Fliess (a quem escreveu que nenhuma mulher jamais havia substituído
um camarada homem em sua vida),
que, aos 34 anos, após o nascimento
de seu sexto filho em oito anos, Martha estava sofrendo do bloqueio de
escritora. É impossível imaginar por
quê. Mas, como muitos outros mistérios que cercam a vida de Martha,
este novo "Martha Freud - A Biography" [Martha Freud - Uma Biografia, Polity Press, 206 págs., US$
30, R$ 63], de Katja Behling, não entra em detalhes sobre o que ela possivelmente quisesse escrever.
A grande idéia da biografia parece
ser a de que devemos valorizar a
contribuição dela ao desenvolvimento da psicanálise, pelo fato de ter
garantido uma vida doméstica pacífica ao fundador da disciplina.
Na biografia de Freud que escreveu, Peter Gay cita a resposta enviada por Martha a uma carta de condolências que recebeu após a morte
de Freud, na qual disse que "é um
consolo pequeno saber que, em nossos 53 anos de casamento, nunca
houve uma única palavra irada trocada entre nós, e sempre me esforcei
ao máximo para afastar de seu caminho a "misère" da vida cotidiana".
Só podemos ler e nos surpreender
pela sorte de que um tenha encontrado o outro em sua vida. Quem de
nós não ansiaria por uma Martha
própria para cuidar da "misère" de
nossa vida diária, enquanto ficamos
sentados em nossas salas de estudo,
deixando fluir idéias que irão iluminar o mundo? Ou, por outro lado,
quem de nós poderia querer ser
Martha, por mais essencial sua biógrafa possa afirmar que ela tenha sido para a produção de uma idéia
grandiosa? Ser musa ou fonte de inspiração pode ter suas atrações, suponho -mas ser a governanta de uma
teoria que transformou o mundo
não é exatamente a mesma coisa.
Mantendo as aparências
À luz de 53 anos de evidências, não
adianta fazer de conta que houve
uma grande pensadora oculta dentro de Martha, lutando para vir à tona. Mas não podemos deixar de tentar imaginar como é possível que ela
desejasse apenas isso para si -uma
mulher que, quando se casou, não
era destituída de pensamentos, nem
alguém que se auto-apagava por
completo. Era leitora voraz de Stuart
Mill, Dickens e Cervantes, embora
seu futuro marido lhe desaconselhasse os trechos mais rudes de
"Dom Quixote", não apropriados
para uma mulher. Interessava-se
por música e pintura, e não lhe faltavam pretendentes.
O que Sigmund e Martha tinham
em comum eram famílias envoltas
em escândalos financeiros escusos.
O tio de Freud foi preso por negociar
rublos falsificados, e rumores davam conta do envolvimento de seu
pai no escândalo. Para lidarem com
o desconforto da vergonha pública,
os dois aderiram a uma vida burguesa perfeita ao estilo do século 19, desde que não se levem em conta os
pensamentos incessantes de Sigmund sobre sexualidade infantil, a
teoria da sedução, o complexo de
Édipo e a inveja do pênis.
Presume-se que tenha sido essa
superfície burguesa exemplar -os
ternos formais, a mobília bem polida, os modos corretos à mesa, o
quarto das crianças bem ordenado,
a regularidade ocupada da vida-
que tenha possibilitado que fossem
nutridos aqueles pensamentos mais
profundos, mal cogitáveis, e que eles
tenham se desenvolvido até se transformar em algo que se assemelhava
a uma teoria científica.
Pelo fato de encerar aqueles móveis e conservar os relógios batendo
em sincronia, Martha foi tão essencial para o desenvolvimento do pensamento freudiano quanto Dora ou
o Homem dos Ratos. Mas Sigmund
nunca se deu ao trabalho de perguntar a razão de tanto encerar, tanto
obedecer aos horários.
Em 1936, Freud falou com Marie
Bonaparte sobre sua vida de casado:
"Não foi realmente uma solução
ruim da questão do casamento, e ela
é ainda hoje terna, saudável e ativa".
Para seu genro Max Halberstadt,
ele expressou seu alívio pelo fato de
"as crianças terem se saído tão bem e
pelo fato de ela" -Martha- "não
ter sido muito anormal, nem ter estado doente com muita freqüência".
No mundo de distorções psíquicas
em que Freud se movimentava,
Martha representava aquilo no qual
ninguém que leva as obras de Freud
realmente a sério jamais poderia
acreditar: o espécime comum, não-danificado.
Vale tentar imaginar o que teria
acontecido se a análise freudiana tivesse tomado o caminho inverso, se
o mestre tivesse estudado a normalidade -que, aparentemente, tinha
tão perto de si- ao invés de debruçar-se sobre suas deformações.
Behling sugere que o maior valor
de Martha para Freud tenha sido sua
própria existência, que o impediu de
deprimir-se demais com a natureza
da natureza humana. Ele pôde enxergar nela "alguém que se diferenciava daquilo que ele aprendera sobre a humanidade de maneira geral". Assim, Freud não apenas não a
estudou como não comunicou a ela
nenhuma de suas reflexões profissionais. "Freud não desejava compartilhar com Martha as profundezas mais negras de seu conhecimento, mas, pelo contrário, protegê-la
delas", escreve Behling.
Ciúmes da noiva
A natureza alegre de Martha, tão
diferente, aparentemente, da natureza humana, foi cuidadosamente
fomentada por seu noivo durante os
quatro épicos anos que durou o noivado. Parece ter sido essa a única investida de Freud no terreno da paixão, e ele mergulhou nela com toda a
disposição de um filho adorado.
Ele ele fervia de ciúmes à menção
de outros homens, exigindo, por
exemplo, que Martha parasse de
chamar pelo primeiro nome seu interessante primo pintor. "Querida
Martha, como você mudou minha
vida", ele lhe disse na primeira carta
que lhe escreveu. E, quando estavam
noivos e ele estava combatendo a
mãe dela para conquistá-la, ele explicou: "Marty, você não pode lutar
contra isso; é que, por mais que eles
a amem, não vou deixá-la para ninguém, e ninguém mais a merece: o
amor de nenhuma outra pessoa por
você se compara ao meu".
Após a morte do marido, Martha
não se soltou, mas passou a ficar
sentada no patamar entre o primeiro e o segundo andares da casa em
Maresfield Gardens. Voltou a ler,
embora, como assegurou a um correspondente, para o caso de ser acusada de ócio, apenas o fizesse à noite.
A vida, disse, perdera "todo sentido e significado" sem seu marido,
mas ela demonstrava prazer em receber os visitantes importantes que
vinham à casa prestar homenagem.
Uma pitada de coca
Freud culpou Martha por impedi-lo de conquistar reconhecimento
precoce no mundo da ciência médica. Ele escreveu em seu auto-retrato:
"Posso relatar aqui que, fazendo
uma retrospectiva, foi culpa de minha noiva o fato de eu não ter ficado
famoso naqueles primeiros anos".
Os experimentos que fez com cocaína na década de 1880 foram retomados e aprofundados por outros.
Constatou-se que aquilo que a finada princesa Margaret conhecia
como "sal safado" apresentava efeitos benéficos como anestésico local
-uma utilização da qual Freud,
inexplicavelmente, não tomara nota
e que deixara de mencionar em seu
artigo "Sobre a Coca". Foi uma
oportunidade inesperada de fazer
uma visita a Martha, que o impedira
de explorar plenamente o potencial
de sua descoberta, disse na velhice.
Mas vale fazer uma observação
aqui e mencionar algo que talvez
constitua uma chave até agora não
cogitada para a compreensão de
Martha. Na época em que Freud estava fazendo suas experiências com
cocaína, ele enviou vários frascos da
substância a sua noiva, louvando o
efeito dela sobre a vitalidade e incluindo instruções sobre como dividir e administrar as doses.
Martha lhe escreveu e agradeceu,
dizendo que, embora não achasse
que precisasse daquilo, ela tomaria
um pouco, atendendo a sua sugestão. Ela informou a seu noivo que
achara a cocaína útil em momentos
de tensão emocional.
De tempos em tempos, diz Behling, Martha "aumentava seu senso
de bem-estar com uma pitada revigorante de cocaína". Não se sabe por
quanto tempo ela continuou a fazê-lo, mas essa informação de fato sugere uma maneira inteiramente outra de enxergarmos a dedicada e domesticamente movida Martha
Freud, que durante meio século se
ocupou de sua agitada e ocupada
ronda diária de faxina, organização,
administração e supervisão de todas
as minúcias da vida de seu marido,
sempre com um sorriso fixo e incansável estampado no rosto.
Jenny Diski é escritora.
A íntegra deste texto foi publicada no "London Review of Books".
Tradução de Clara Allain.
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