São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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A MUSA NÃO-DANIFICADA

Lançado nos EUA, "Martha Freud" lança luz sobre temores, dúvidas e mesquinhezas do criador da psicanálise a partir da vida reclusa de sua mulher

JENNY DISKI

Na lista de chamada da corporação de ofício de mulheres adoradoras e que criaram condições para seus maridos desenvolverem seus trabalhos, o nome de Martha Freud figura entre os maiores, ao lado da sra. Noé, sra. Darwin, sra. Marx, sra. Joyce, sra. Nabokov e sra. Clinton. Mulheres, de um sexo ou de outro, são o elemento que conserva o universo suficientemente calmo e ordeiro para que as grandes mentes possam tecer suas reflexões, concluir suas viagens, escrever seus livros e transformar o mundo.
Martha Freud foi um modelo de perfeição como cônjuge. Não há nada que mais liberte uma pessoa do exaustivo e repetitivo trabalho doméstico e do sentimento de culpa decorrente de evitá-lo do que dispor de uma faxineira que adora fazer faxina, uma babá que se satisfaz em cuidar das crianças, uma pessoa caseira que não deseja nada além de ficar em casa. E Martha foi tudo isso.
Precisamente porque ela foi tudo isso é que seu marido pode ter sido exatamente a pessoa indicada para pesquisar. Mas Freud não era bobo e sabia muito bem -quando era o caso- deixar tudo como estava nas regiões mais obscuras de sua vida pessoal -especialmente aquele continente sombrio de sua mente que dizia respeito às mulheres.

As misérias da vida
Ele mencionou de passagem, em uma carta a seu amigo Wilhelm Fliess (a quem escreveu que nenhuma mulher jamais havia substituído um camarada homem em sua vida), que, aos 34 anos, após o nascimento de seu sexto filho em oito anos, Martha estava sofrendo do bloqueio de escritora. É impossível imaginar por quê. Mas, como muitos outros mistérios que cercam a vida de Martha, este novo "Martha Freud - A Biography" [Martha Freud - Uma Biografia, Polity Press, 206 págs., US$ 30, R$ 63], de Katja Behling, não entra em detalhes sobre o que ela possivelmente quisesse escrever.
A grande idéia da biografia parece ser a de que devemos valorizar a contribuição dela ao desenvolvimento da psicanálise, pelo fato de ter garantido uma vida doméstica pacífica ao fundador da disciplina.
Na biografia de Freud que escreveu, Peter Gay cita a resposta enviada por Martha a uma carta de condolências que recebeu após a morte de Freud, na qual disse que "é um consolo pequeno saber que, em nossos 53 anos de casamento, nunca houve uma única palavra irada trocada entre nós, e sempre me esforcei ao máximo para afastar de seu caminho a "misère" da vida cotidiana".
Só podemos ler e nos surpreender pela sorte de que um tenha encontrado o outro em sua vida. Quem de nós não ansiaria por uma Martha própria para cuidar da "misère" de nossa vida diária, enquanto ficamos sentados em nossas salas de estudo, deixando fluir idéias que irão iluminar o mundo? Ou, por outro lado, quem de nós poderia querer ser Martha, por mais essencial sua biógrafa possa afirmar que ela tenha sido para a produção de uma idéia grandiosa? Ser musa ou fonte de inspiração pode ter suas atrações, suponho -mas ser a governanta de uma teoria que transformou o mundo não é exatamente a mesma coisa.

Mantendo as aparências
À luz de 53 anos de evidências, não adianta fazer de conta que houve uma grande pensadora oculta dentro de Martha, lutando para vir à tona. Mas não podemos deixar de tentar imaginar como é possível que ela desejasse apenas isso para si -uma mulher que, quando se casou, não era destituída de pensamentos, nem alguém que se auto-apagava por completo. Era leitora voraz de Stuart Mill, Dickens e Cervantes, embora seu futuro marido lhe desaconselhasse os trechos mais rudes de "Dom Quixote", não apropriados para uma mulher. Interessava-se por música e pintura, e não lhe faltavam pretendentes.
O que Sigmund e Martha tinham em comum eram famílias envoltas em escândalos financeiros escusos. O tio de Freud foi preso por negociar rublos falsificados, e rumores davam conta do envolvimento de seu pai no escândalo. Para lidarem com o desconforto da vergonha pública, os dois aderiram a uma vida burguesa perfeita ao estilo do século 19, desde que não se levem em conta os pensamentos incessantes de Sigmund sobre sexualidade infantil, a teoria da sedução, o complexo de Édipo e a inveja do pênis.
Presume-se que tenha sido essa superfície burguesa exemplar -os ternos formais, a mobília bem polida, os modos corretos à mesa, o quarto das crianças bem ordenado, a regularidade ocupada da vida- que tenha possibilitado que fossem nutridos aqueles pensamentos mais profundos, mal cogitáveis, e que eles tenham se desenvolvido até se transformar em algo que se assemelhava a uma teoria científica.
Pelo fato de encerar aqueles móveis e conservar os relógios batendo em sincronia, Martha foi tão essencial para o desenvolvimento do pensamento freudiano quanto Dora ou o Homem dos Ratos. Mas Sigmund nunca se deu ao trabalho de perguntar a razão de tanto encerar, tanto obedecer aos horários.
Em 1936, Freud falou com Marie Bonaparte sobre sua vida de casado: "Não foi realmente uma solução ruim da questão do casamento, e ela é ainda hoje terna, saudável e ativa".
Para seu genro Max Halberstadt, ele expressou seu alívio pelo fato de "as crianças terem se saído tão bem e pelo fato de ela" -Martha- "não ter sido muito anormal, nem ter estado doente com muita freqüência".
No mundo de distorções psíquicas em que Freud se movimentava, Martha representava aquilo no qual ninguém que leva as obras de Freud realmente a sério jamais poderia acreditar: o espécime comum, não-danificado.
Vale tentar imaginar o que teria acontecido se a análise freudiana tivesse tomado o caminho inverso, se o mestre tivesse estudado a normalidade -que, aparentemente, tinha tão perto de si- ao invés de debruçar-se sobre suas deformações.
Behling sugere que o maior valor de Martha para Freud tenha sido sua própria existência, que o impediu de deprimir-se demais com a natureza da natureza humana. Ele pôde enxergar nela "alguém que se diferenciava daquilo que ele aprendera sobre a humanidade de maneira geral". Assim, Freud não apenas não a estudou como não comunicou a ela nenhuma de suas reflexões profissionais. "Freud não desejava compartilhar com Martha as profundezas mais negras de seu conhecimento, mas, pelo contrário, protegê-la delas", escreve Behling.

Ciúmes da noiva
A natureza alegre de Martha, tão diferente, aparentemente, da natureza humana, foi cuidadosamente fomentada por seu noivo durante os quatro épicos anos que durou o noivado. Parece ter sido essa a única investida de Freud no terreno da paixão, e ele mergulhou nela com toda a disposição de um filho adorado.
Ele ele fervia de ciúmes à menção de outros homens, exigindo, por exemplo, que Martha parasse de chamar pelo primeiro nome seu interessante primo pintor. "Querida Martha, como você mudou minha vida", ele lhe disse na primeira carta que lhe escreveu. E, quando estavam noivos e ele estava combatendo a mãe dela para conquistá-la, ele explicou: "Marty, você não pode lutar contra isso; é que, por mais que eles a amem, não vou deixá-la para ninguém, e ninguém mais a merece: o amor de nenhuma outra pessoa por você se compara ao meu".
Após a morte do marido, Martha não se soltou, mas passou a ficar sentada no patamar entre o primeiro e o segundo andares da casa em Maresfield Gardens. Voltou a ler, embora, como assegurou a um correspondente, para o caso de ser acusada de ócio, apenas o fizesse à noite.
A vida, disse, perdera "todo sentido e significado" sem seu marido, mas ela demonstrava prazer em receber os visitantes importantes que vinham à casa prestar homenagem.

Uma pitada de coca
Freud culpou Martha por impedi-lo de conquistar reconhecimento precoce no mundo da ciência médica. Ele escreveu em seu auto-retrato: "Posso relatar aqui que, fazendo uma retrospectiva, foi culpa de minha noiva o fato de eu não ter ficado famoso naqueles primeiros anos". Os experimentos que fez com cocaína na década de 1880 foram retomados e aprofundados por outros.
Constatou-se que aquilo que a finada princesa Margaret conhecia como "sal safado" apresentava efeitos benéficos como anestésico local -uma utilização da qual Freud, inexplicavelmente, não tomara nota e que deixara de mencionar em seu artigo "Sobre a Coca". Foi uma oportunidade inesperada de fazer uma visita a Martha, que o impedira de explorar plenamente o potencial de sua descoberta, disse na velhice.
Mas vale fazer uma observação aqui e mencionar algo que talvez constitua uma chave até agora não cogitada para a compreensão de Martha. Na época em que Freud estava fazendo suas experiências com cocaína, ele enviou vários frascos da substância a sua noiva, louvando o efeito dela sobre a vitalidade e incluindo instruções sobre como dividir e administrar as doses.
Martha lhe escreveu e agradeceu, dizendo que, embora não achasse que precisasse daquilo, ela tomaria um pouco, atendendo a sua sugestão. Ela informou a seu noivo que achara a cocaína útil em momentos de tensão emocional.
De tempos em tempos, diz Behling, Martha "aumentava seu senso de bem-estar com uma pitada revigorante de cocaína". Não se sabe por quanto tempo ela continuou a fazê-lo, mas essa informação de fato sugere uma maneira inteiramente outra de enxergarmos a dedicada e domesticamente movida Martha Freud, que durante meio século se ocupou de sua agitada e ocupada ronda diária de faxina, organização, administração e supervisão de todas as minúcias da vida de seu marido, sempre com um sorriso fixo e incansável estampado no rosto.


Jenny Diski é escritora.
A íntegra deste texto foi publicada no "London Review of Books".
Tradução de Clara Allain.


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