São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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A última muralha

Jason Lee - 26.set.2005/Reuters
Soldado chinês se perfila atrás de bandeira durante cerimônia em Pequim


Nação onde a psicanálise é ainda hoje uma "novidade radical", China tem o desafio de conciliar livre associação com censura política severa

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A China era o último continente virgem para a psicanálise. Mas os lacanianos franceses estão tratando de desbravar esse país imenso, ávido de conhecimento e de cultura ocidental, sedento de novidades. Foi na França que se formou Huo Datong, único psicanalista apto a exercer a psicanálise na China, o que faz dele um analista com 1,3 bilhão de clientes potenciais.
Mas é possível exercer a psicanálise num regime totalitário? O sinólogo e psicanalista francês Rainier Lanselle, "maître de conférences" em civilização e literatura da China clássica na Universidade de Paris 7, que já participou de inúmeros colóquios de psicanálise em diversas cidades chinesas, considera que só o futuro dirá se é possível fazer psicanálise na China.


Quem traduz Freud e Lacan na China são pessoas que nunca fizeram análise nem conhecem a teoria psicanalítica


Segundo Lanselle, a tradução da obra de Freud e Lacan é o grande desafio para chineses e franceses, que trabalham na criação de neologismos, recriando a língua chinesa para dar conta de conceitos totalmente novos. Mas a liberdade de expressão num país totalitário pode vir a ser o principal obstáculo para uma prática subversiva, que repousa sobre a livre associação de idéias.
Os encontros entre chineses e franceses de que Lanselle participou na China foram promovidos pela associação Psicanálise na China, fundada em 2003 por lacanianos de Paris, tendo à frente Erik Porge, autor de livros de psicanálise, analisando e discípulo de Lacan. (LDP)
 

Folha - Havia psicanálise na China?
Rainier Lanselle -
Desde o início do século 20, a China procura se ocidentalizar, com a importação maciça de conceitos ocidentais em todos os campos. A modernização da China é a de um país totalitário que tem uma tradição totalitária, mas, diferentemente da Rússia, não tinha nenhum contato com o que se insere no domínio da psicologia e psicanálise. A psicanálise é uma novidade radical para a China, e essa novidade interessa aos chineses. Mas, como chegou aos poucos, o essencial da psicanálise não foi transmitido.

Folha - A psiquiatria chinesa não teve influência sobre a psicanálise?
Lanselle -
A psiquiatria chinesa desenvolveu-se de maneira abrupta. Foi trazida por missionários americanos, um deles instalado em Cantão, que introduziu a idéia de doença mental, que não existia na China.
Depois, durante o período mais duro da China Popular, até os anos 80, a psiquiatria foi essencialmente soviética, preocupada com a ordem pública, uma psiquiatria na qual fica difícil separar a repressão do tratamento. Havia, pois, um tratamento psiquiátrico muito pouco voltado para a psicoterapia, uma psiquiatria essencialmente medicamentosa, feita para dopar o paciente.
Depois, houve uma virada: a psiquiatria chinesa passou da influência soviética para a influência americana, isto é, para o DSM ["Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana], a bíblia oficial da classificação das doenças mentais. Os chineses prezam muito as classificações e soluções medicamentosas e o lado readaptativo, no qual nos últimos anos começou-se a introduzir elementos da tradição, mas naquilo que têm de moralizante. Por exemplo: fala-se das perversões em termos morais -o perverso é visto como alguém que deve ser reeducado.

Folha - O interesse dos chineses pela psicanálise pode ser explicado pela descoberta da individualidade num país em que esta não tinha lugar até bem pouco tempo?
Lanselle -
Vê-se realmente um interesse pela psicanálise no momento em que, sintomaticamente, vê-se surgir uma outra percepção do indivíduo na sociedade chinesa, sobretudo no direito. A China está organizando um Código Civil, um código dos direitos do cidadão, que corresponde às mutações por que passa o país nos últimos 25 anos, desde que se abriu para o mundo -o que fez surgir uma burguesia urbana, um enriquecimento geral, uma vida moderna, com todas as suas questões.
Tudo isso, somado a certas especificidades chinesas como o filho único, a cobrança particular de sucesso nos estudos, na universidade e uma enorme pressão profissional sobre o indivíduo, como existe no Extremo Oriente em geral. Há um enorme número de suicídios na faixa etária entre 15 e 35 anos.

Folha - O indivíduo na China é totalmente livre para fazer uma análise sem temer a censura ou o Estado onipresente?
Lanselle -
Hoje, a psicanálise não é vista na China como uma ameaça. Não há ainda psicanalistas exercendo o trabalho como profissionais liberais. Há a questão do pagamento, do contexto institucional, da neutralidade, problemas profundos que se colocam para a psicanálise.
Se ela é um exercício no qual as associações de idéias devem ser totalmente livres e desinibidas, o que vai se passar num país onde, queira ou não, pode existir o medo da palavra totalmente livre? Será possível criticar tudo? Como fazer uma livre associação se alguém tem nem que seja 0,1% de suspeita que a pessoa que o escuta pode contar a alguém?
Nesse espírito, não há livre associação. Esse é o problema mais profundo da psicanálise.

Folha - O sr. diz que a China é o último grande continente a conquistar para a psicanálise. E essa conquista é um trabalho de titãs, a começar da tradução das obras de Freud e Lacan. Por que a tradução é um desafio enorme para os psicanalistas?
Lanselle -
A China moderna já está marcada pelo surgimento de milhares e milhares de neologismos para enriquecer o contexto conceitual teórico da língua chinesa. A psicanálise também precisa criar neologismos. Mas o vocabulário já existente é muitas vezes impróprio. O problema é que os neologismos foram concebidos há muito tempo e fazem parte da linguagem corrente, mesmo comportando ambigüidades.

Folha - E o que falta para que compreendam?
Lanselle -
Precisam fazer análise para que compreendam o aspecto estrutural do inconsciente e o aspecto estrutural do vocabulário que deve descrevê-lo. Hoje, quem traduz Freud e Lacan são pessoas que nunca fizeram análise nem conhecem a teoria psicanalítica e que se aventuram em traduções catastróficas.

Folha - O chinês é bastante plástico para a criação de neologismos?
Lanselle -
O problema é que é plástico até demais. Mas criar neologismos pressupõe que possam ser compreendidos. Por exemplo, existem três palavras para designar o autismo. As pessoas não chegam a ver que existe um só conceito por trás dessas três palavras.

Folha - Na China, criticar os pais e os ancestrais é impensável. Como "matar" o pai simbolicamente, como fazer uma análise de fato em um contexto cultural tão distante do ocidental?
Lanselle -
Realmente, não se sabe ainda se haverá condições de fazer psicanálise na China. Hoje, ela está em estado muito embrionário. O que é certo é que a gente encontra pessoas que têm vontade de falar de seus desejos, falar de si, o que é muito importante.
Mas não se pode saber se o que Datong faz é exatamente psicanálise. Penso que é algo que não se pode afirmar. Acho que ele tem uma posição de mestre em relação a seus discípulos, que são também seus analisandos. Pode-se sair do esquema tradicional da relação mestre-discípulo? Ora, a psicanálise subverteu isso. Lacan mostrou bem isso, o discurso do analista não é o discurso do mestre.
Logo, que se tenha vontade de dizer algo, que se tenha vontade de exteriorizar algo não quer dizer necessariamente que se faça psicanálise.


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