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A última muralha
Jason Lee - 26.set.2005/Reuters
![](../images/m0705200601.jpg) |
Soldado chinês se perfila atrás de bandeira durante cerimônia em Pequim |
Nação onde a psicanálise é ainda
hoje uma "novidade radical", China tem o desafio de conciliar livre associação com censura política severa
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A China era o último continente virgem para a psicanálise. Mas os lacanianos
franceses estão tratando de
desbravar esse país imenso, ávido de
conhecimento e de cultura ocidental, sedento de novidades. Foi na
França que se formou Huo Datong,
único psicanalista apto a exercer a
psicanálise na China, o que faz dele
um analista com 1,3 bilhão de clientes potenciais.
Mas é possível exercer a psicanálise num regime totalitário? O sinólogo e psicanalista francês Rainier
Lanselle, "maître de conférences"
em civilização e literatura da China
clássica na Universidade de Paris 7,
que já participou de inúmeros colóquios de psicanálise em diversas cidades chinesas, considera que só o
futuro dirá se é possível fazer psicanálise na China.
Quem traduz Freud
e Lacan na China são pessoas
que nunca fizeram análise
nem conhecem
a teoria
psicanalítica
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Segundo Lanselle, a tradução da
obra de Freud e Lacan é o grande desafio para chineses e franceses, que
trabalham na criação de neologismos, recriando a língua chinesa para
dar conta de conceitos totalmente
novos. Mas a liberdade de expressão
num país totalitário pode vir a ser o
principal obstáculo para uma prática subversiva, que repousa sobre a
livre associação de idéias.
Os encontros entre chineses e
franceses de que Lanselle participou
na China foram promovidos pela associação Psicanálise na China, fundada em 2003 por lacanianos de Paris, tendo à frente Erik Porge, autor
de livros de psicanálise, analisando e
discípulo de Lacan.
(LDP)
Folha - Havia psicanálise na China?
Rainier Lanselle - Desde o início do
século 20, a China procura se ocidentalizar, com a importação maciça de conceitos ocidentais em todos
os campos. A modernização da China é a de um país totalitário que tem
uma tradição totalitária, mas, diferentemente da Rússia, não tinha nenhum contato com o que se insere
no domínio da psicologia e psicanálise. A psicanálise é uma novidade
radical para a China, e essa novidade
interessa aos chineses. Mas, como
chegou aos poucos, o essencial da
psicanálise não foi transmitido.
Folha - A psiquiatria chinesa não teve influência sobre a psicanálise?
Lanselle - A psiquiatria chinesa desenvolveu-se de maneira abrupta.
Foi trazida por missionários americanos, um deles instalado em Cantão, que introduziu a idéia de doença
mental, que não existia na China.
Depois, durante o período mais
duro da China Popular, até os anos
80, a psiquiatria foi essencialmente
soviética, preocupada com a ordem
pública, uma psiquiatria na qual fica
difícil separar a repressão do tratamento. Havia, pois, um tratamento
psiquiátrico muito pouco voltado
para a psicoterapia, uma psiquiatria
essencialmente medicamentosa, feita para dopar o paciente.
Depois, houve uma virada: a psiquiatria chinesa passou da influência soviética para a influência americana, isto é, para o DSM ["Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana], a
bíblia oficial da classificação das
doenças mentais. Os chineses prezam muito as classificações e soluções medicamentosas e o lado readaptativo, no qual nos últimos anos
começou-se a introduzir elementos
da tradição, mas naquilo que têm de
moralizante. Por exemplo: fala-se
das perversões em termos morais
-o perverso é visto como alguém
que deve ser reeducado.
Folha - O interesse dos chineses pela
psicanálise pode ser explicado pela
descoberta da individualidade num
país em que esta não tinha lugar até
bem pouco tempo?
Lanselle - Vê-se realmente um interesse pela psicanálise no momento
em que, sintomaticamente, vê-se
surgir uma outra percepção do indivíduo na sociedade chinesa, sobretudo no direito. A China está organizando um Código Civil, um código
dos direitos do cidadão, que corresponde às mutações por que passa o
país nos últimos 25 anos, desde que
se abriu para o mundo -o que fez
surgir uma burguesia urbana, um
enriquecimento geral, uma vida moderna, com todas as suas questões.
Tudo isso, somado a certas especificidades chinesas como o filho único, a cobrança particular de sucesso
nos estudos, na universidade e uma
enorme pressão profissional sobre o
indivíduo, como existe no Extremo
Oriente em geral. Há um enorme
número de suicídios na faixa etária
entre 15 e 35 anos.
Folha - O indivíduo na China é totalmente livre para fazer uma análise
sem temer a censura ou o Estado onipresente?
Lanselle - Hoje, a psicanálise não é
vista na China como uma ameaça.
Não há ainda psicanalistas exercendo o trabalho como profissionais liberais. Há a questão do pagamento,
do contexto institucional, da neutralidade, problemas profundos que se
colocam para a psicanálise.
Se ela é um exercício no qual as associações de idéias devem ser totalmente livres e desinibidas, o que vai
se passar num país onde, queira ou
não, pode existir o medo da palavra
totalmente livre? Será possível criticar tudo? Como fazer uma livre associação se alguém tem nem que seja 0,1% de suspeita que a pessoa que
o escuta pode contar a alguém?
Nesse espírito, não há livre associação. Esse é o problema mais profundo da psicanálise.
Folha - O sr. diz que a China é o último grande continente a conquistar
para a psicanálise. E essa conquista é
um trabalho de titãs, a começar da
tradução das obras de Freud e Lacan.
Por que a tradução é um desafio enorme para os psicanalistas?
Lanselle - A China moderna já está
marcada pelo surgimento de milhares e milhares de neologismos para
enriquecer o contexto conceitual
teórico da língua chinesa. A psicanálise também precisa criar neologismos. Mas o vocabulário já existente
é muitas vezes impróprio. O problema é que os neologismos foram concebidos há muito tempo e fazem
parte da linguagem corrente, mesmo comportando ambigüidades.
Folha - E o que falta para que compreendam?
Lanselle - Precisam fazer análise
para que compreendam o aspecto
estrutural do inconsciente e o aspecto estrutural do vocabulário que deve descrevê-lo. Hoje, quem traduz
Freud e Lacan são pessoas que nunca fizeram análise nem conhecem a
teoria psicanalítica e que se aventuram em traduções catastróficas.
Folha - O chinês é bastante plástico
para a criação de neologismos?
Lanselle - O problema é que é plástico até demais. Mas criar neologismos pressupõe que possam ser
compreendidos. Por exemplo, existem três palavras para designar o autismo. As pessoas não chegam a ver
que existe um só conceito por trás
dessas três palavras.
Folha - Na China, criticar os pais e os
ancestrais é impensável. Como "matar" o pai simbolicamente, como fazer
uma análise de fato em um contexto
cultural tão distante do ocidental?
Lanselle - Realmente, não se sabe
ainda se haverá condições de fazer
psicanálise na China. Hoje, ela está
em estado muito embrionário. O
que é certo é que a gente encontra
pessoas que têm vontade de falar de
seus desejos, falar de si, o que é muito importante.
Mas não se pode saber se o que Datong faz é exatamente psicanálise.
Penso que é algo que não se pode
afirmar. Acho que ele tem uma posição de mestre em relação a seus discípulos, que são também seus analisandos. Pode-se sair do esquema
tradicional da relação mestre-discípulo? Ora, a psicanálise subverteu isso. Lacan mostrou bem isso, o discurso do analista não é o discurso do
mestre.
Logo, que se tenha vontade de dizer algo, que se tenha vontade de exteriorizar algo não quer dizer necessariamente que se faça psicanálise.
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