São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009

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+(s)ociedade

Anatomia não é destino


Obra de referência sobre o feminismo, "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir, completa 60 anos

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que repercussão esperar da reedição brasileira do sexagenário "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir? Certamente não a mesma que acolheu o livro em 1949, na França: 22 mil exemplares do primeiro volume vendidos em uma semana, ultrapassados pelas vendas do segundo, meses depois.
A condenação do livro pelo Vaticano, na época, atesta o impacto das 936 páginas de análise e denúncia da condição feminina escritas por esta que nunca se limitou a ser a mulher e Jean-Paul Sartre.
Muito do frescor que "O Segundo Sexo" (ed. Nova Fronteira, tradução de Sérgio Milliet, R$ 109,90, 936 págs.) ainda conserva está na introdução. A inteligência crítica de Simone de Beauvoir se revela no modo como desarma, logo de saída, antigas convicções sobre a diferença entre os sexos.
"É sobre o alcance da palavra ser que precisamos nos entender", afirma, disposta a contestar a "natureza" de um objeto tão universal quanto a mulher, que pertence a um só tempo à ordem social, às ideologias, ao real (já que possui um corpo) e às formações do inconsciente.
Para isso resgata, sem mencionar seu autor, a conhecida afirmação de Freud: não se nasce mulher, torna-se mulher. "Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve", ironiza, em resposta à insistência masculina de que as mulheres não abandonem a feminilidade e "permaneçam mulheres".
O eterno feminino é invenção e interesse dos homens: ao longo da história, o homem sempre foi sujeito e a mulher, o outro sexo.

Esgotar o objeto
Beauvoir compartilha com Sartre o esforço progressista de escrever com clareza, na contramão dos grandes estilistas da língua francesa.
Revela, além disso, a mesma intenção de seu companheiro de esgotar seu objeto por meio da escrita, o que seria no mínimo tedioso, se fosse possível -vide os quatro volumes da biografia inacabada de Flaubert por Sartre.
Em sua obra mais importante, Beauvoir mobiliza uma erudição invejável como se pretendesse, por um lado, construir um ponto de vista indiscutível e por outro, talvez, mostrar ao mundo do que uma mulher é capaz.
E conseguiu. A obra tem sete partes. No primeiro volume, analisa o destino das mulheres traçado pela biologia, a psicanálise e o materialismo histórico. O último lhe permite afirmar que "na sociedade autenticamente democrática que profetiza Marx não há lugar para o Outro".
Ainda no primeiro volume, há uma extensa história da condição feminina seguida da análise do mito da mulher na obra de alguns grandes romancistas.
O ponto fraco da análise literária, assim como da psicanalítica, é que Beauvoir faz tábula rasa das formações do inconsciente, tanto no que diz respeito à confusão edipiana sobre a castração feminina quanto no que toca às representações imaginárias da mulher na cultura (Lacan).
Ao tomar ao pé da letra a fantasia, desconsidera também a ironia presente nas grandes obras do realismo francês, o que torna suas críticas frequentemente ingênuas.
O segundo volume é dedicado à situação da mulher: da formação, que consiste na longa adequação dessas que nascem fêmeas, ao seu "destino" social; a situação das mulheres (casada, mãe, prostituta, velha) e as justificativas ideológicas da desigualdade.

Caminho da libertação
A quarta parte esboça um "caminho da libertação" e apresenta o que seria a mulher independente.
Aqui, vale observar a objetividade de Beauvoir, ao priorizar a independência econômica das mulheres sobre a emancipação sexual: a segunda deveria ser consequência da primeira.
Se muitas das posições assumidas por Simone de Beauvoir parecem hoje superadas, isso se deve ao mérito do próprio livro, cuja recepção ao longo de décadas efetivamente cumpriu a função de "destronar o mito da feminilidade".
O que não impediu que nas décadas seguintes o mito do "outro sexo" retornasse, disfarçado de libertação, e de o corpo feminino voltar a ser reificado como suporte publicitário da sociedade do espetáculo.


MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta, autora de "O Tempo e o Cão" (Boitempo).


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