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+(s)ociedade
Anatomia não é destino
Obra de referência sobre o feminismo, "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir, completa 60 anos
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MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Que repercussão esperar da reedição
brasileira do sexagenário "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir?
Certamente não a mesma
que acolheu o livro em 1949, na
França: 22 mil exemplares do
primeiro volume vendidos em
uma semana, ultrapassados pelas vendas do segundo, meses
depois.
A condenação do livro pelo
Vaticano, na época, atesta o impacto das 936 páginas de análise e denúncia da condição feminina escritas por esta que
nunca se limitou a ser a mulher
e Jean-Paul Sartre.
Muito do frescor que "O Segundo Sexo" (ed. Nova Fronteira, tradução de Sérgio Milliet, R$ 109,90, 936 págs.) ainda conserva está na introdução.
A inteligência crítica de Simone de Beauvoir se revela no
modo como desarma, logo de
saída, antigas convicções sobre
a diferença entre os sexos.
"É sobre o alcance da palavra
ser que precisamos nos entender", afirma, disposta a contestar a "natureza" de um objeto
tão universal quanto a mulher,
que pertence a um só tempo à
ordem social, às ideologias, ao
real (já que possui um corpo) e
às formações do inconsciente.
Para isso resgata, sem mencionar seu autor, a conhecida
afirmação de Freud: não se
nasce mulher, torna-se mulher. "Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve", ironiza, em resposta à insistência masculina de que as
mulheres não abandonem a feminilidade e "permaneçam
mulheres".
O eterno feminino é invenção e interesse dos homens: ao
longo da história, o homem
sempre foi sujeito e a mulher, o
outro sexo.
Esgotar o objeto
Beauvoir compartilha com
Sartre o esforço progressista de
escrever com clareza, na contramão dos grandes estilistas
da língua francesa.
Revela, além disso, a mesma
intenção de seu companheiro
de esgotar seu objeto por meio
da escrita, o que seria no mínimo tedioso, se fosse possível
-vide os quatro volumes da
biografia inacabada de Flaubert por Sartre.
Em sua obra mais importante, Beauvoir mobiliza uma erudição invejável como se pretendesse, por um lado, construir
um ponto de vista indiscutível e
por outro, talvez, mostrar ao
mundo do que uma mulher é
capaz.
E conseguiu. A obra tem sete
partes. No primeiro volume,
analisa o destino das mulheres
traçado pela biologia, a psicanálise e o materialismo histórico. O último lhe permite afirmar que "na sociedade autenticamente democrática que profetiza Marx não há lugar para o
Outro".
Ainda no primeiro volume,
há uma extensa história da condição feminina seguida da análise do mito da mulher na obra
de alguns grandes romancistas.
O ponto fraco da análise literária, assim como da psicanalítica, é que Beauvoir faz tábula
rasa das formações do inconsciente, tanto no que diz respeito à confusão edipiana sobre a
castração feminina quanto no
que toca às representações
imaginárias da mulher na cultura (Lacan).
Ao tomar ao pé da letra a fantasia, desconsidera também a
ironia presente nas grandes
obras do realismo francês, o
que torna suas críticas frequentemente ingênuas.
O segundo volume é dedicado à situação da mulher: da formação, que consiste na longa
adequação dessas que nascem
fêmeas, ao seu "destino" social;
a situação das mulheres (casada, mãe, prostituta, velha) e as
justificativas ideológicas da desigualdade.
Caminho da libertação
A quarta parte esboça um
"caminho da libertação" e apresenta o que seria a mulher independente.
Aqui, vale observar a objetividade de Beauvoir, ao priorizar a independência econômica
das mulheres sobre a emancipação sexual: a segunda deveria
ser consequência da primeira.
Se muitas das posições assumidas por Simone de Beauvoir
parecem hoje superadas, isso se
deve ao mérito do próprio livro,
cuja recepção ao longo de décadas efetivamente cumpriu a
função de "destronar o mito da
feminilidade".
O que não impediu que nas
décadas seguintes o mito do
"outro sexo" retornasse, disfarçado de libertação, e de o corpo
feminino voltar a ser reificado
como suporte publicitário da
sociedade do espetáculo.
MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta,
autora de "O Tempo e o Cão" (Boitempo).
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