São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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O romance carnavalesco de Dickens

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

O escritor forte pode ser definido como aquele capaz de desafiar a própria contingência, isto é, sua dependência de um precursor. Existe, por outro lado, um número muito pequeno de autores, desde Homero e o Javista, capazes de serem fortes sem sofrer a pressão de um tal constrangimento. São os grandes originais: Shakespeare e Freud estão nesse grupo, como também Dickens.
Dickens não tem precursores reais; ou melhor, pode-se dizer que ele devora Tobias Smollett, do mesmo modo que Shakespeare devora Marlowe. A originalidade, uma liberdade autêntica diante das contingências, é a característica mais notável de Dickens como autor literário. Isto muito embora, para nós, hoje, à luz da influência enorme de sua obra, que se manifesta em escritores tão diversos como Dostoievski e Kafka, pareça difícil perceber o quanto ele é original.
Para todo romancista posterior, Dickens constitui-se numa contingência ou "facticidade" impossível de ser evitada ou transcendida, sem risco de automutilação. Veja-se a diferença entre dois mestres da ficção moderna, Henry James e James Joyce. A diferença entre eles não é exatamente Dickens? "Ulysses" consegue aceitá-lo e colhe o prêmio da exuberância. Leopold Bloom é maior do que qualquer personagem isolado em Dickens, mas tem qualidades reconhecidamente dickensianas. Bem ao contrário do Lambert Strether de James, em "Os Embaixadores", que se ressente dessa ausência. O mesmo sentido dickensiano da vida, para além da interioridade, fica faltando em "Retrato de uma Senhora" e até mesmo nos esplendores de "As Asas da Pomba" e "The Golden Bowl".
Resenhando "Our Mutual Friend", de Dickens, em 1865, Henry James chama "Bleak House" de "forçado", "Little Dorrit" de "artificial" e o novo romance "extraído à força, com pá e picareta". Mais ou menos na mesma época, ele também descartava Whitman como um autor de consciência fundamentalmente prosaica, querendo se elevar de qualquer jeito à poesia. Essa rejeição simultânea de alguns dos maiores trabalhos do romancista mais forte da língua inglesa e da obra integral do maior poeta americano estabelece um padrão de audácia crítica que ninguém até hoje foi capaz de superar -assim como ninguém superou Dickens como romancista, nem Whitman como poeta.
Pouco antes de James, em 1860, John Ruskin, o grande visionário da superfície, iluminador carismático do senso comum e incomum, chegava a uma conclusão bem diferente: "O valor essencial e a verdade dos escritos de Dickens foram insensatamente perdidos de vista por muitos leitores, mesmo os mais cuidadosos, simplesmente porque ele apresenta sua verdade em cores dramáticas ou caricaturais. Isto é insensato, porque as caricaturas de Dickens, muitas vezes até grosseiras, não estão jamais equivocadas. Aceita a maneira como ele diz as coisas, o que está dizendo é sempre verdade. (...) Não vamos desprezar as percepções e a inteligência viva de Dickens só porque escolheu falar como se estivesse num círculo de fogo de palco. Não há um livro em que ele perca o senso de direção e propósito; e todos eles -especialmente "Tempos Difíceis"- deveriam ser estudados com a maior atenção por quem tem interesse pelas questões sociais."
Dizer de Dickens que ele escolheu falar "como se estivesse num círculo de fogo de palco" é absolutamente correto: Dickens é o maior ator dos romancistas, o mestre mais refinado das projeções dramáticas. Ele mesmo um grande intérprete, nunca cessou de interpretar papéis teatrais nos seus romances, o que não é o menor de seus traços shakespearianos.
Assim como Shakespeare (em um de seus aspectos) e assim como Rabelais, Dickens é um autor do carnaval, tanto quanto do fogo de palco, e sua obra é uma espécie de festival infinito. O leitor vê-se no meio dessa festa, que é variada demais para ser compreendida em todos os seus aspectos, mesmo depois de muitas releituras. Alguma coisa sempre escapa ao nosso entendimento. A literatura "abarrotada de vida" de que falava o elisabetano Ben Johnson tem seu melhor exemplo aqui -mais até do que em Rabelais-, naquela plenitude quase shakespeariana que é a glória peculiar de Dickens.
Será possível definir essa plenitude a ponto de ter validade crítica? A apresentação shakespeariana não chega a ser uma pedra de toque para Dickens, nem para qualquer outro autor, pois, acima de qualquer outra forma de representação, ela se volta para as mudanças interiores de personagens que se escutam a si mesmos falando. Dickens não é capaz de tanto. Seus vilões são grandiosos, mas não há entre ele um Iago ou um Edmund. O teste mais relevante e mais difícil, em que Dickens não pode mesmo ser bem-sucedido (sem nenhum demérito), é Falstaff, uma figura com a capacidade não só de engendrar seu próprio sentido, mas o de muitos outros também, dentro e fora dos livros.
Outro teste pior ainda é Shylock, a mais dickensiana de todas as personagens em Shakespeare -ao contrário do Shylock de Dickens, Fagin (em "Oliver Twist"), sobre quem não se pode dizer que tenha muito de shakespeariano. Fagin é um exemplo maravilhoso do grotesco, mas não se agitam nele os ventos da vontade, enquanto em Shylock eles continuam soprando infernalmente e para sempre.
Era T.S. Eliot quem dizia que "as personagens de Dickens são verdadeiras porque nunca houve no mundo ninguém igual a elas". Isto não soa inteiramente certo: elas são verdadeiras porque não há uma que seja igual a outra, embora às vezes tenham mais de nós do que delas mesmas. Talvez seja o acaso que a vontade humana só permita variações de grau, não de gênero. O segredo de Dickens, então, parece ser o de uma diferença de "tipos da vontade" entre seus heróis, heroínas, vilões, excêntricos e coadjuvantes. Uma vez que isso não parece possível para nós, seres humanos, o efeito resultante em seus romances é o de uma ausência de realidade.
É um preço alto a pagar, mas ainda é bem menos que tudo, e Dickens acabou levando mais do que a encomenda. Nós também recebemos muito mais do que o que se dá em troca, quando lemos Dickens. Essa talvez seja, de fato, sua característica mais shakespeariana e, quem sabe, também a imagem analítica que estávamos procurando. Henry James e Proust nos fazem sofrer muito mais do que ele e esse sofrimento é o próprio sentido, ou boa parte do sentido, do que escrevem. Já o que nos machuca em Dickens nunca tem muito a ver com o significado, porque não se pode ter uma poética da dor onde a vontade deixou de ser compartilhada, ou é tristemente homogênea.
O que ele nos dá é uma poética do prazer, o que com certeza vale o desconforto secundário que cada um de nós experimenta diante da sua recusa em nos oferecer uma representação mais acurada da vontade humana. Ele está sempre escrevendo o livro dos instintos, o que explica, aliás, o fracasso tedioso das leituras freudianas de Dickens. A metáfora conceitual sugerida por suas representações de caráter e personalidade não é nem o "espelho" shakespeariano, nem a "lamparina" romântica, nem o carnaval de Rabelais, nem o campo aberto de Fielding. "Fogo de palco" é perfeito, porque "palco" abstrai alguma coisa da realidade da vontade, mas o substantivo permanece sendo "fogo". Dickens é o poeta do fogo dos instintos, o verdadeiro sacerdote do mito freudiano dos conceitos limítrofes, daquele domínio que fica na fronteira entre a psique e o corpo: uma queda na matéria, sem perder a realidade de um e outro.


Harold Bloom é crítico literário e professor nas universidades de Yale e Nova York. Publicou "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva), entre outros. Escreve mensalmente.
Tradução de Arthur Nestrovski.

Sai 'Grandes Esperanças'

da Redação

Aproveitando a estréia do filme no Brasil, está sendo relançado o romance "Grandes Esperanças" (382 págs., R$ 22,00), de Charles Dickens, pela Ediouro (caixa postal 1.880, CEP 20001-970, RJ).



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