São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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O elo dominicano

Reprodução
O guerrilheiro Carlos Marighella (1912 -1969), líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), 1964



Frei Betto conta como os dominicanos se envolveram com o maior grupo de luta armada e contesta versões sobre a morte de Marighella


da Redação

A história dos frades dominicanos no envolvimento com a ALN (Ação Libertadora Nacional) ainda está longe de ser completamente esclarecida. No que diz respeito à morte do líder guerrilheiro Carlos Marighella, a situação piora ainda mais.
Basicamente, há duas versões sobre o episódio: uma (do pesquisador Jacob Gorender, no livro "Combate nas Trevas", relançado no mês passado), diz que os dominicanos, depois de torturados, acabaram entregando aos policiais um encontro (com dia, hora e local) com Marighella que acabou provocando a morte do guerrilheiro. A outra (de Frei Betto, em "Batismo de Sangue") ameniza o caso, sem tirar a responsabilidade dos dominicanos, e diz que houve participação da CIA na captura de Marighella.
No mês passado, outro livro colocou mais tempero na discussão: o jornalista Emiliano José lançou o livro "Carlos Marighella - O Inimigo Número Um da Ditadura Militar". Nele, há um dado novo: teria sido o hoje economista Paulo de Tarso Venceslau quem delatou os dominicanos, os quais, por sua vez, entregaram um encontro com Marighella.
Venceslau nega veementemente o episódio (leia nesta página) e diz que vai processar José -também autor de "Lamarca - o Capitão da Guerrilha".
Na entrevista a seguir, frei Betto, um dos dominicanos presos em 69, explica por que alguns membros da ordem se aliaram à ALN e conta sua versão dos fatos. (LE)

Folha - Nos anos 60, os frades dominicanos eram tidos como uma vanguarda dentro da igreja. Por que isso ocorria?
Frei Betto -
Naquele período que precedeu o golpe de 64, os dominicanos trabalhavam mais especificamente com o movimento estudantil -secundaristas e universitários- , por meio da JEC (Juventude Estudantil Católica) e da JUC (Juventude Universitária Católica). Muitos dirigentes dos movimentos católicos se tornaram depois militantes de oposição ao regime militar. Então, os conventos dos dominicanos, sobretudo os de Belo Horizonte e São Paulo, eram frequentados por esses estudantes. Depois que começou o processo de perseguição das lideranças, muitas vezes elas se abrigaram aqui, como José Dirceu e Vladimir Palmeira. Todos eles passaram pelo convento, e aqui se esconderam e tiveram convivência.
Ao mesmo tempo, nós sempre tivemos uma atitude progressista, e as missas aos domingos eram uma espécie de respiradouro da época do regime, especialmente a missa das 11h, que lotava a igreja São Domingos, aqui nas Perdizes, em São Paulo. As pessoas podiam ouvir algo, à luz do Evangelho, que oferecesse a elas esperança naquele tempo de escuridão.
Isso levou posteriormente ao apoio aos movimentos nos quais esses estudantes se engajavam, os movimentos guerrilheiros. Nunca pegamos em armas, nunca participamos de operações militares. Porém, apoiamos no sentido de acolher, de dar fuga, de abrigar, de arrumar papéis para poderem sair do país. Eu, especificamente, montei um esquema no Rio Grande do Sul para ajudá-los a sair do Brasil clandestinamente pela fronteira com o Uruguai e com a Argentina, inclusive tirei do país vários que participaram do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Então, foi tudo isso que levou a uma brutal repressão contra os conventos de Belo Horizonte e São Paulo. Alguns de nós, inclusive, ficamos presos até quatro anos.
Folha - O que atraía tanto nos sermões dominicanos?
Frei Betto -
Eles atraíam muita gente porque nós tínhamos certa isenção como igreja. Por exemplo, o regime militar poderia nomear coronéis e generais para todas as instituições nacionais, menos para a igreja. Não dava para nomear um general da reserva para ser presidente da CNBB. Portanto, isso nos abria um certo espaço de liberdade, de contestação. O discurso era uma forma de incentivar as pessoas que estavam na luta contra a ditadura, de mostrar que a ditadura era incompatível com os valores do Evangelho, que o povo tinha direito à liberdade, à democracia. Era nessa linha. Usavam-se muitas metáforas, parábolas...
Folha - Como se deu a aproximação dos dominicanos com a ALN?
Frei Betto -
Nós nos aproximamos porque éramos estudantes da USP. Eu era jornalista. Embora frade, todos os dias trabalhava na "Folha da Tarde" (da empresa Folha da Manhã S/A). Isso nos aproximou daqueles envolvidos na luta armada, especificamente o Carlos Marighella (líder da ALN).
Folha - O sr. teve contato direto com o Marighella...
Frei Betto -
Eu conheci o Marighella. O primeiro contato dele com os frades foi comigo e com o frei Osvaldo Resende. Depois, várias vezes estive com ele no Rio de Janeiro, mas nunca foram atividades guerrilheiras, eram conversas e formas de apoio.
Folha - Qual era o posicionamento da Igreja Católica na época?
Frei Betto -
A igreja era dividida na época. Havia setores que nos apoiavam e outros que eram avessos ao nosso tipo de engajamento.
Folha - A Igreja Católica não sabia, por exemplo, que vocês apoiavam o chileno Salvador Allende?
Frei Betto -
Não, isso não. Não sabiam. Nossos superiores no Brasil sabiam que estávamos envolvidos no apoio ao movimento estudantil de resistência aos militares.
Folha - As prisões, como foram?
Frei Betto -
Fomos presos em períodos diferentes. Dois foram presos no Rio no dia 2 de novembro de 69 (frei Fernando e frei Ivo); depois, o frei Roberto, frei Georgio, frei Maurício e frei Tito foram presos no dia 3 ou 4, em São Paulo. Eu iria ser preso no dia 2, mas consegui escapar. Só fui preso no dia 9, na Grande Porto Alegre.
Folha - Por que os dominicanos foram presos? Alguém os delatou?
Frei Betto -
Os dominicanos foram presos porque se desencadeou uma repressão brutal à ALN a partir da queda dos sequestradores do embaixador norte-americano Charles Elbrick e então a polícia chegou até nós. E a polícia sabia havia tempos de nosso envolvimento. Agora, se houve alguém que delatou, eu não sei. Há várias versões. Eu coloquei a minha no "Batismo de Sangue".
Folha - No livro de Emiliano José, "Carlos Marighella - O Inimigo Número Um da Ditadura Militar", o autor diz que foi Paulo de Tarso Venceslau quem entregou os dominicanos. O que o sr. acha?
Frei Betto -
Eu ainda não li este livro. Eu não atribuo a responsabilidade ao Paulo de Tarso. Nós achamos que nossa prisão foi resultado de um processo.
Folha - O livro de Jacob Gorender, "Combate nas Trevas" apresenta uma versão diferente da sua sobre a morte de Marighella. Segundo ele, frei Ivo e frei Fernando foram presos, torturados e acabaram entregando Marighella. Diz ainda que frei Fernando foi, sob pressão dos policiais, à Livraria Duas Cidades para confirmar um encontro com o líder da ALN. A sua versão é diferente.
Frei Betto -
Eu contesto frontalmente essa versão. O Gorender não me responde às seguintes perguntas: primeiro, como é que eu, no Rio Grande do Sul, a não sei quantos quilômetros de São Paulo, fiquei sabendo da prisão de Ivo e Fernando no Rio, antes de eles virem para São Paulo? Como fiquei sabendo disso e fugi? E como o Marighella não ficou sabendo?
Eles foram presos no dia 2. A morte de Marighella foi no dia 4. Para quem está preso e sendo torturado, é muito tempo.
Segunda pergunta: o Gorender, que pertenceu ao Partidão (PCB), sabe que um dirigente da experiência e responsabilidade do Marighella não diz para você assim: "Olha, eu vou te encontrar no dia tal, você pode me chamar pelo telefone tal ou eu moro na rua tal...". Não existe isso. O Fernando e o Ivo eram procurados pelo Marighella. Como o Fernando trabalhava na Livraria Duas Cidades, o Marighella poderia ligar para lá no dia 2, 3, ou 9. Então, por que a polícia leva o Fernando à livraria exatamente naquele momento pré-marcado?
Folha - Mas, segundo Gorender, havia um horário marcado.
Frei Betto -
Eu contesto isso. Não existia horário marcado. O Fernando falou para a polícia: "Olha, o Marighella me liga, eu não sei como encontrar o Marighella". Aí de repente o Fleury (delegado Sérgio Paranhos Fleury) pega o Fernando e o leva para a livraria. Até hoje não se sabe bem quem ligou para ele. É uma coisa meio no ar até hoje.
Outra coisa: por que o Henry Kissinger libera a ALN para fazer o sequestro do vôo da Cruzeiro do Sul para Buenos Aires, rumo a Cuba, já que a CIA tinha todo o controle do sequestro, sabia de tudo e pediu autorização ao Conselho de Segurança dos EUA para intervir no sequestro? O Kissinger falou: "Não, nós estamos chegando ao "cabeça'. Se vocês fizeram isso, vamos perder o grande líder". O "cabeça" era Marighella.
Folha - Mas por que impedir o sequestro poderia ser uma ameaça para pegar Marighella?
Frei Betto -
Seria um sinal claro de que a CIA estava de tal maneira cercando a luta armada, que até impediram um sequestro. O impedimento espantaria a operação. Eu acho que havia infiltração de pessoas que dominavam esses contatos que o Marighella tinha... Mas veja só, eu tenho essa versão, mas em nenhum momento eu eximo a cota de responsabilidade que o Fernando e o Ivo tiveram na captura do Marighella. O que eu discordo do Gorender é que ele culpabiliza o Fernando e o Ivo e coloca os dois no pelourinho.
Folha - Antes da prisão, a Igreja Católica não sabia do envolvimento que vocês tinham com a ALN, só das lutas ao lado dos movimentos estudantis. Só esse aspecto -a ligação com os estudantes de esquerda- não foi suficiente para a instituição fazer algum tipo de pressão contra os dominicanos?
Frei Betto -
Veja bem, a igreja tem uma tradição de apoio a resistências de regimes ditatoriais. Na França, a igreja participou da Resistência, movimento contra o nazismo. Na Itália, a igreja foi contra Benito Mussolini... Então, dentro da cultura eclesiástica, a igreja tem tradição de solidariedade àqueles que lutam contra esses regimes.
Folha - E depois das prisões?
Frei Betto -
Depois, o apoio da igreja cresceu cada vez mais. Recebemos um monte de correspondências, vários setores da igreja nos apoiaram.



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