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O elo dominicano
Reprodução
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O guerrilheiro Carlos Marighella (1912 -1969), líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), 1964
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Frei Betto conta como os dominicanos se
envolveram com o maior grupo de luta armada
e contesta versões sobre a morte de Marighella
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da Redação
A história dos frades dominicanos no envolvimento com a ALN
(Ação Libertadora Nacional) ainda está longe de ser completamente esclarecida. No que diz respeito
à morte do líder guerrilheiro Carlos Marighella, a situação piora
ainda mais.
Basicamente, há duas versões
sobre o episódio: uma (do pesquisador Jacob Gorender, no livro
"Combate nas Trevas", relançado
no mês passado), diz que os dominicanos, depois de torturados,
acabaram entregando aos policiais
um encontro (com dia, hora e local) com Marighella que acabou
provocando a morte do guerrilheiro. A outra (de Frei Betto, em
"Batismo de Sangue") ameniza o
caso, sem tirar a responsabilidade
dos dominicanos, e diz que houve
participação da CIA na captura de
Marighella.
No mês passado, outro livro colocou mais tempero na discussão:
o jornalista Emiliano José lançou o
livro "Carlos Marighella - O Inimigo Número Um da Ditadura
Militar". Nele, há um dado novo:
teria sido o hoje economista Paulo
de Tarso Venceslau quem delatou
os dominicanos, os quais, por sua
vez, entregaram um encontro com
Marighella.
Venceslau nega veementemente
o episódio (leia nesta página) e diz
que vai processar José -também
autor de "Lamarca - o Capitão da
Guerrilha".
Na entrevista a seguir, frei Betto,
um dos dominicanos presos em
69, explica por que alguns membros da ordem se aliaram à ALN e
conta sua versão dos fatos.
(LE)
Folha - Nos anos 60, os frades dominicanos eram tidos como uma
vanguarda dentro da igreja. Por
que isso ocorria?
Frei Betto - Naquele período
que precedeu o golpe de 64, os dominicanos trabalhavam mais especificamente com o movimento
estudantil -secundaristas e universitários- , por meio da JEC
(Juventude Estudantil Católica) e
da JUC (Juventude Universitária
Católica). Muitos dirigentes dos
movimentos católicos se tornaram
depois militantes de oposição ao
regime militar. Então, os conventos dos dominicanos, sobretudo
os de Belo Horizonte e São Paulo,
eram frequentados por esses estudantes. Depois que começou o
processo de perseguição das lideranças, muitas vezes elas se abrigaram aqui, como José Dirceu e Vladimir Palmeira. Todos eles passaram pelo convento, e aqui se esconderam e tiveram convivência.
Ao mesmo tempo, nós sempre
tivemos uma atitude progressista,
e as missas aos domingos eram
uma espécie de respiradouro da
época do regime, especialmente a
missa das 11h, que lotava a igreja
São Domingos, aqui nas Perdizes,
em São Paulo. As pessoas podiam
ouvir algo, à luz do Evangelho, que
oferecesse a elas esperança naquele tempo de escuridão.
Isso levou posteriormente ao
apoio aos movimentos nos quais
esses estudantes se engajavam, os
movimentos guerrilheiros. Nunca
pegamos em armas, nunca participamos de operações militares. Porém, apoiamos no sentido de acolher, de dar fuga, de abrigar, de arrumar papéis para poderem sair
do país. Eu, especificamente,
montei um esquema no Rio Grande do Sul para ajudá-los a sair do
Brasil clandestinamente pela fronteira com o Uruguai e com a Argentina, inclusive tirei do país vários que participaram do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Então, foi tudo
isso que levou a uma brutal repressão contra os conventos de Belo
Horizonte e São Paulo. Alguns de
nós, inclusive, ficamos presos até
quatro anos.
Folha - O que atraía tanto nos
sermões dominicanos?
Frei Betto - Eles atraíam muita
gente porque nós tínhamos certa
isenção como igreja. Por exemplo,
o regime militar poderia nomear
coronéis e generais para todas as
instituições nacionais, menos para
a igreja. Não dava para nomear um
general da reserva para ser presidente da CNBB. Portanto, isso nos
abria um certo espaço de liberdade, de contestação. O discurso era
uma forma de incentivar as pessoas que estavam na luta contra a
ditadura, de mostrar que a ditadura era incompatível com os valores
do Evangelho, que o povo tinha direito à liberdade, à democracia.
Era nessa linha. Usavam-se muitas
metáforas, parábolas...
Folha - Como se deu a aproximação dos dominicanos com a ALN?
Frei Betto - Nós nos aproximamos porque éramos estudantes da
USP. Eu era jornalista. Embora
frade, todos os dias trabalhava na
"Folha da Tarde" (da empresa Folha da Manhã S/A). Isso nos aproximou daqueles envolvidos na luta
armada, especificamente o Carlos
Marighella (líder da ALN).
Folha - O sr. teve contato direto
com o Marighella...
Frei Betto - Eu conheci o Marighella. O primeiro contato dele
com os frades foi comigo e com o
frei Osvaldo Resende. Depois, várias vezes estive com ele no Rio de
Janeiro, mas nunca foram atividades guerrilheiras, eram conversas
e formas de apoio.
Folha - Qual era o posicionamento da Igreja Católica na época?
Frei Betto - A igreja era dividida
na época. Havia setores que nos
apoiavam e outros que eram avessos ao nosso tipo de engajamento.
Folha - A Igreja Católica não sabia, por exemplo, que vocês apoiavam o chileno Salvador Allende?
Frei Betto - Não, isso não. Não
sabiam. Nossos superiores no Brasil sabiam que estávamos envolvidos no apoio ao movimento estudantil de resistência aos militares.
Folha - As prisões, como foram?
Frei Betto - Fomos presos em
períodos diferentes. Dois foram
presos no Rio no dia 2 de novembro de 69 (frei Fernando e frei Ivo);
depois, o frei Roberto, frei Georgio, frei Maurício e frei Tito foram
presos no dia 3 ou 4, em São Paulo.
Eu iria ser preso no dia 2, mas consegui escapar. Só fui preso no dia 9,
na Grande Porto Alegre.
Folha - Por que os dominicanos
foram presos? Alguém os delatou?
Frei Betto - Os dominicanos foram presos porque se desencadeou uma repressão brutal à ALN
a partir da queda dos sequestradores do embaixador norte-americano Charles Elbrick e então a polícia
chegou até nós. E a polícia sabia
havia tempos de nosso envolvimento. Agora, se houve alguém
que delatou, eu não sei. Há várias
versões. Eu coloquei a minha no
"Batismo de Sangue".
Folha - No livro de Emiliano José,
"Carlos Marighella - O Inimigo Número Um da Ditadura Militar", o
autor diz que foi Paulo de Tarso
Venceslau quem entregou os dominicanos. O que o sr. acha?
Frei Betto - Eu ainda não li este
livro. Eu não atribuo a responsabilidade ao Paulo de Tarso. Nós
achamos que nossa prisão foi resultado de um processo.
Folha - O livro de Jacob Gorender, "Combate nas Trevas" apresenta uma versão diferente da sua
sobre a morte de Marighella. Segundo ele, frei Ivo e frei Fernando
foram presos, torturados e acabaram entregando Marighella. Diz
ainda que frei Fernando foi, sob
pressão dos policiais, à Livraria
Duas Cidades para confirmar um
encontro com o líder da ALN. A sua
versão é diferente.
Frei Betto - Eu contesto frontalmente essa versão. O Gorender
não me responde às seguintes perguntas: primeiro, como é que eu,
no Rio Grande do Sul, a não sei
quantos quilômetros de São Paulo,
fiquei sabendo da prisão de Ivo e
Fernando no Rio, antes de eles virem para São Paulo? Como fiquei
sabendo disso e fugi? E como o
Marighella não ficou sabendo?
Eles foram presos no dia 2. A
morte de Marighella foi no dia 4.
Para quem está preso e sendo torturado, é muito tempo.
Segunda pergunta: o Gorender,
que pertenceu ao Partidão (PCB),
sabe que um dirigente da experiência e responsabilidade do Marighella não diz para você assim:
"Olha, eu vou te encontrar no dia
tal, você pode me chamar pelo telefone tal ou eu moro na rua tal...".
Não existe isso. O Fernando e o Ivo
eram procurados pelo Marighella.
Como o Fernando trabalhava na
Livraria Duas Cidades, o Marighella poderia ligar para lá no dia
2, 3, ou 9. Então, por que a polícia
leva o Fernando à livraria exatamente naquele momento
pré-marcado?
Folha - Mas, segundo Gorender,
havia um horário marcado.
Frei Betto - Eu contesto isso.
Não existia horário marcado. O
Fernando falou para a polícia:
"Olha, o Marighella me liga, eu
não sei como encontrar o Marighella". Aí de repente o Fleury (delegado Sérgio Paranhos Fleury)
pega o Fernando e o leva para a livraria. Até hoje não se sabe bem
quem ligou para ele. É uma coisa
meio no ar até hoje.
Outra coisa: por que o Henry
Kissinger libera a ALN para fazer o
sequestro do vôo da Cruzeiro do
Sul para Buenos Aires, rumo a Cuba, já que a CIA tinha todo o controle do sequestro, sabia de tudo e
pediu autorização ao Conselho de
Segurança dos EUA para intervir
no sequestro? O Kissinger falou:
"Não, nós estamos chegando ao
"cabeça'. Se vocês fizeram isso,
vamos perder o grande líder". O
"cabeça" era Marighella.
Folha - Mas por que impedir o sequestro poderia ser uma ameaça
para pegar Marighella?
Frei Betto - Seria um sinal claro
de que a CIA estava de tal maneira
cercando a luta armada, que até
impediram um sequestro. O impedimento espantaria a operação. Eu
acho que havia infiltração de pessoas que dominavam esses contatos que o Marighella tinha... Mas
veja só, eu tenho essa versão, mas
em nenhum momento eu eximo a
cota de responsabilidade que o
Fernando e o Ivo tiveram na captura do Marighella. O que eu discordo do Gorender é que ele culpabiliza o Fernando e o Ivo e coloca os dois no pelourinho.
Folha - Antes da prisão, a Igreja
Católica não sabia do envolvimento que vocês tinham com a ALN, só
das lutas ao lado dos movimentos
estudantis. Só esse aspecto -a ligação com os estudantes de esquerda- não foi suficiente para a
instituição fazer algum tipo de
pressão contra os dominicanos?
Frei Betto - Veja bem, a igreja
tem uma tradição de apoio a resistências de regimes ditatoriais. Na
França, a igreja participou da Resistência, movimento contra o nazismo. Na Itália, a igreja foi contra
Benito Mussolini... Então, dentro
da cultura eclesiástica, a igreja tem
tradição de solidariedade àqueles
que lutam contra esses regimes.
Folha - E depois das prisões?
Frei Betto - Depois, o apoio da
igreja cresceu cada vez mais. Recebemos um monte de correspondências, vários setores da igreja
nos apoiaram.
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