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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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AS INSATISFAÇÕES DE HAROLD BLOOM

O CRÍTICO EXPLICA POR QUE VOLTOU A DISCUTIR "HAMLET", RECORDA SUAS CONVERSAS COM PAUL DE MAN E COMENTA AS REPERCUSSÕES DE SEU ATAQUE À SÉRIE "HARRY POTTER"

Jennie Rothenberg
do "Atlantic Unbound"

No último meio século o crítico Harold Bloom tem sido uma espécie de guerreiro solitário no mundo literário. Nos anos 1950 ele combateu a "nova crítica" de T.S. Eliot, então a tendência prevalecente nas aulas de literatura. Na década de 1970, se bateu com os desconstrucionistas, um grupo de intelectuais em sua maioria europeus para o qual a linguagem era, essencialmente, destituída de sentido. Nos anos 1990, depois de publicar seu livro "O Cânone Ocidental" (ed. Objetiva), Bloom se viu em confronto com multiculturalistas e feministas literárias. Recentemente, ele provocou a ira dos fãs de Harry Potter ao expressar seu desprezo pelo aprendiz de feiticeiro nas páginas do "Wall Street Journal". Dependendo da ideologia de quem o analisa, Bloom pode ser apreendido de uma entre duas maneiras: como um Dom Quixote que se bate contra as lâminas giratórias do progresso social ou como um nobre sir Lancelot, defendendo um reino literário cuja aristocracia inclui Homero, Milton e Dante. Nesse segundo paradigma, o rei Arthur de Bloom é sem dúvida alguma William Shakespeare, o escritor a quem ele se refere, em tom reverente, como "meu deus mortal". O livro mais recente de Bloom, "Hamlet - Poem Unlimited" [ed. Riverhead, 154 págs., US$ 19,95], é em essência uma declaração de amor a Shakespeare e a sua criação mais famosa. O livro nasceu da insatisfação do crítico com seu "Shakespeare - A Invenção do Humano" (Objetiva), de 1999. Depois de dedicar um longo capítulo aos temas e origens de "Hamlet", Bloom percebeu que o livro não refletia seus verdadeiros sentimentos acerca da peça. Para consertar o erro, ele escreveu "Poem Unlimited", um volume fino que descasca camadas de história e teoria para trazer à tona as reações mais pessoais de Bloom à sua obra literária favorita. É dela, entre outros assuntos, que ele fala a seguir.
Existe um trecho no primeiro capítulo de seu novo livro "Hamlet - Poema Ilimitado", que parece resumir perfeitamente sua abordagem da literatura: ""Acho recomendável abordarmos tanto a peça quanto o príncipe com respeito e um senso de maravilhamento, porque eles sabem mais do que nós". Como crítico literário, como o sr. é capaz de analisar um texto com esse tipo de humildade, em lugar de assumir um tom frio e superior, como fazem alguns de seus colegas?
Superior? A William Shakespeare? Sabe, estou neste ramo há tanto tempo, querida! Fiz 73 anos em julho. Este ano foi o 50º consecutivo que passo lecionando na Universidade Yale. Mas comecei muito cedo. Eu já era leitor contumaz dos grandes poetas e grandes escritores quando mal tinha tamanho suficiente para levar os livros da biblioteca para casa. Minhas três irmãs mais velhas, caridosas, os carregavam para mim. Se você passa toda sua vida lendo, lecionando e escrevendo, acho que a atitude apropriada a assumir em relação a Shakespeare, a Dante, a Cervantes, a Geoffrey Chaucer, a Tolstói, a Platão -os grandes- é, de fato, uma de respeito, maravilhamento, gratidão, apreciação profunda. Não compreendo nenhuma outra atitude para com eles. Afinal, eles formaram nossas mentes. E "Hamlet" é o mais especial dos casos especiais. Já fui acusado de "bardolatria" tantas vezes que já transformei isso em piada. Como sou uma espécie de dinossauro, dei a mim mesmo o nome de Bloom Brontosaurus Bardolator.
Essa atitude de reverência é o que o distingue de muitos de seus colegas. O sr. não parece fazer parte de nenhuma escola específica de crítica literária.
É uma coisa complexa. Deixei o departamento de inglês há 26 anos. Simplesmente me divorciei dele e, como gosto de dizer, me tornei professor de Absolutamente Nada. Os estudos literários foram substituídos, em medida considerável, por aquele absurdo inacreditável conhecido como estudos culturais, que, pelo que posso perceber, não são culturais nem tampouco estudos. Mas acho que a arrogância dos semi-eruditos é algo que sempre existiu. Você sabe que o termo "filologia", originalmente, significava o amor pelo aprender -o amor pela palavra, o amor pela literatura. Acho que, quanto mais profundamente as pessoas amam e compreendem a literatura, menor será sua tendência de serem soberbas, de sentirem que, de alguma maneira, elas sabem mais do que sabem os poemas, as histórias, os romances e os épicos. E, é claro, temos a bobagem conhecida como "Teoria" com "t" maiúsculo, em sua maioria importada da França e que agora, infelizmente, deitou raízes no mundo de língua inglesa.
Quando o sr. diz "teoria", quer dizer que isso remete à "nova crítica"? Em sua época de estudante, o sr. ficou conhecido por opor resistência a esse movimento, que achava demasiado cerebral e analítico. Seus primeiros livros glorificavam os poetas românticos e iam contra quase tudo o que T.S. Eliot e os outros "novos críticos" ensinavam em matéria de literatura.
Bem, você sabe, sempre ocupei uma posição esdrúxula. Quando eu era jovem, recém-formado e começando a lecionar aqui em Yale, a chamada "nova crítica" era a ortodoxia prevalecente. Ela era exemplificada, aqui em Yale, por alguém que acabou por se tornar um de meus melhores amigos, embora não tenhamos começado assim: o romancista Robert Penn Warren. Então, depois de combater a "nova crítica" incansavelmente, de repente me vi combatendo os desconstrucionistas, outro grupo formado por pessoas que eram e são minhas amigas pessoais. Com a exceção de uma -não falo mais com Derrida, por várias razões pessoais complicadas que não quero mencionar aqui. Mas continuo a sentir muita saudade de Paul de Man, que eu amo profundamente como pessoa, embora sempre tenhamos brigado e jamais tenhamos concordado a respeito de nada.
O desconstrucionismo destruiu, de certa maneira, todos os parâmetros do mundo da crítica literária. Ele decompôs a literatura e a linguagem em sinais aleatórios que não possuem conexão natural entre si. Que rumo tomou o estudo da literatura, partindo dele?
Bem, agora estamos em meio a uma terceira fase terrível. Já falei e discursei tanto contra a crítica hipócrita e falsa que agora reluto em dizer muito sobre isso. Em todo o mundo anglófono, a onda de teoria francesa foi substituída pela mistura terrível à qual venho dando o nome de "escola do ressentimento" -os chamados multiculturalistas e feministas que nos dizem que devemos dar valor a uma obra literária em razão da origem étnica ou do gênero de seu autor. O feminismo como defesa da igualdade de direitos, de oportunidades educacionais, de salários -nenhum ser humano racional e um pouco decente que seja poderia discordar disso. Mas aquilo ao qual se dá o nome de feminismo nas academias parece constituir um fenômeno muito distinto. Já descrevi essas pessoas como a turba de lemingues, que se atiram desde o penhasco e carregam seu suposto tema junto, rumo à morte certa. De modo geral, Yale tem resistido a isso tudo melhor do que Harvard e Princeton. Esta universidade possui uma tradição duradoura e forte de estudos filológicos reais, um profundo amor pela literatura imaginativa, tanto assim que vem se segurando relativamente bem. Mas na primavera passada uma jovem encantadora, que era uma de minhas assistentes, entrou sacudindo a cabeça. Ela disse: "Harold, estou espantada. Acabo de assistir a um seminário de "estudos americanos'". Estremeci, porque, de todos os departamentos de Yale que, no passado, teriam sido descritos como humanistas, aquele que foi inteiramente entregue à baboseira é o de estudos americanos. Ela prosseguiu: "Acabamos de ouvir uma aula sobre Walt Whitman. O professor passou as duas horas inteiras nos explicando que Walt Whitman era racista". Diante disso, quase perco minha capacidade de sentir ultraje, choque ou indignação. Walt Whitman, racista? É simplesmente lunático.
O sr. estava falando do desconstrucionismo. Em um de seus ensaios, "The Breaking of Form", o sr. traçou uma comparação interessante: ""A linguagem, em relação à poesia, pode ser concebida de duas maneiras válidas, como venho aprendendo relutantemente ao longo do tempo. Ou podemos acreditar numa teoria mágica de toda a linguagem, como faziam os cabalistas, muitos poetas e Walter Benjamin, ou temos que nos render a um niilismo absoluto, que, em sua forma mais refinada, é conhecido hoje como desconstrucionismo".
Sim, sim, eu me lembro disso. Naquela época, Paul (de Man) e eu vivíamos nos enfrentando em debates públicos. Na vida privada, fazíamos longas caminhadas juntos, ou então ele ficava sentado onde você está agora e discutia o mesmo assunto, tomando uma cerveja belga.
O que mais chamou minha atenção foi sua sentença seguinte: "Mas essas duas maneiras, em seus limites externos, se voltam e se transformam uma na outra".
Sim, sei a que trecho você se refere. Eu me lembro de ter dito a Paul que não me importava se se ensinasse o que ele e Jacques (Derrida) estavam ensinando -ou seja, a absoluta ausência de significado, o permanente vagar a esmo da linguagem- ou se tivéssemos uma teoria linguística que ensinasse uma plenitude absoluta de significado, como acontecia com os cabalistas, como meu grande mentor Gershom Scholem e meu amigo Moshe Idel. Tudo o que importava para mim era o Absoluto, por assim dizer. Isso porque, em última análise, as duas coisas se voltavam e se transformavam uma na outra.
Isso é fascinante, mas como explicaria o aparente paradoxo do que está dizendo?
A afirmação não me parece ser nada paradoxal. Não é estranho? Essencialmente, o que a cabala sempre diz é que o Torá -e, na verdade, qualquer letra hebraica única- contém dentro de si a plenitude total, aquilo ao qual os cabalistas espanhóis chamavam o "ein sof", o "sem-fim", a divindade, Deus.
Isso parece contrariar uma das premissas centrais do desconstrucionismo. Derrida e outros diziam que a linguagem sempre é deferida ao longo de uma cadeia de significado, referindo-se a um significante após outro. O absoluto do qual o sr. fala é o "significado transcendental" que eles disseram não existir?
Acho que não. Ele transcende qualquer noção daquilo que você pode significar! O "ein sof" não pode ser descrito como o significado transcendental, porque não é um significado. Não é um sinal entre outros sinais, de maneira alguma. Do mesmo modo, mesmo que você diga que o sentido sempre muda, está sempre no exílio, está sempre passando de um significante aparente para outro, pragmaticamente, como dizia William James, apenas uma diferença que faz uma diferença é uma diferença de fato. E, pragmaticamente, não me parece existir qualquer diferença entre ensinar uma ausência absoluta de sentido e uma plenitude absoluta.
Shakespeare é tão enigmático que já se debateu muito até se ele foi um indivíduo isolado. Sei que o sr. se opõe terminantemente a esse tipo de teoria.
Em outro fim de semana, estavam tentando me convencer a ir até Nova York para participar de um debate na televisão sobre se teria sido o conde de Oxford que escreveu as obras de Shakespeare. Como eu lhes disse com certa hostilidade, a única resposta a isso é que o fundador da Sociedade Americana da Terra Plana morreu há pouco tempo apenas. Também disse a eles que não fico necessariamente felicíssimo com isso, mas acho extremamente esclarecedor o fato de que existe uma sociedade em Londres que, mais ou menos mensalmente, me envia suas publicações -sem que as tenha pedido, é claro. Ela se dedica exclusivamente a demonstrar que todas as obras de Lewis Carroll foram escritas pela rainha Vitória. É uma afirmação tão provável quanto a de que o conde Oxford ou Christopher Marlowe ou sir Francis Bacon ou quem você quiser teriam escrito as obras de William Shakespeare.

Já fui acusado de "bardolatria" tantas vezes que já transformei isso em piada; como sou uma espécie de dinossauro, dei a mim mesmo o nome de Bloom Brontosaurus Bardolator

O maldito artigo foi reproduzido no mundo todo, em todas as línguas; esse assunto nunca mais vai me deixar em paz, mas é claro que a série "Harry Potter" é lixo

O sr. afirma, em seu novo livro, que "Hamlet" é a mais experimental de todas as peças. O sr. realmente acha que é mais experimental do que, por exemplo, ""A Cantora Careca", de Ionesco, na qual os personagens terminam por simplesmente gritar vogais e consoantes no palco?
Ionesco não é nada comparado a "Hamlet". Na verdade, os grandes dramaturgos experimentais do século 20 e de logo antes dele -Ibsen, Tchekóv, Pirandello, Beckett- procuram essencialmente, como vivem reconhecendo, reescrever "Hamlet". Ela ainda é a peça mais de vanguarda, a peça da qual, na verdade, nada mais chega perto. Viola qualquer decoro ou modo de representação possível, de maneira realmente mais singular e inovadora do que qualquer outra coisa já fez.
Sua leitura do discurso "ser ou não ser" é única. O sr. insiste em que não se trata de uma meditação sobre o suicídio. Em lugar disso, diz que é uma espécie de triunfo por si só, uma exaltação da mente.
De fato, é um testemunho do poder da mente sobre o universo da morte, simbolizado pelo mar, que é a grande metáfora oculta.
Como chegou a essa conclusão?
Não há nada na peça que indique, em momento algum, que Hamlet esteja interessado em se matar. Francamente, também -e é neste ponto que meu livrinho rompe radicalmente com a tradição inteira-, não se deve pensar nem por um momento sequer que, mesmo quando se ergue sobre Cláudio, que ora, Hamlet tinha qualquer intenção que fosse de matá-lo. Esse seria um ato demasiado desprezível para ele. Cláudio é café pequeno, é indigno dele. Não -acho que aquilo de que os críticos gostaram menos em meu livrinho é o fato de eu ter dito que havia uma espécie de guerra em curso entre Hamlet e Shakespeare. De fato, Hamlet exige de Shakespeare: "Me dê uma peça que seja um pouco digna de minha presença e minha consciência intelectual magnífica! Me dê um drama cosmológico. Me coloque num "Rei Lear" ou pelo menos num "Macbeth'! Em lugar disso, aqui estou eu nesta corte pútrida, cercado, com a exceção de meu velho amigo Horácio, desses sujeitos desprezíveis". Mas esse também é uma espécie de elemento experimental que viola a questão toda de o que está sendo representado na peça. Veja a questão sob outra ótica: acho que eu digo, em algum lugar do livro, que, embora "Hamlet" seja conhecido como tragédia, não o é realmente. É uma apoteose, uma transfiguração, uma espécie de transcendência, uma ruptura para o alto do protagonista. Na realidade, ela tem mais em comum com as grandes comédias escritas logo antes e depois dela -"As You Like It" e "Twelfth Night"- do que com "Júlio César" ou "Otelo".
O sr. já assistiu alguma produção de "Hamlet" que tenha chegado perto de captar as dimensões da obra?
Até hoje só vi um ""Hamlet" que me comoveu imensamente. Foi o de sir John Gielgud, é claro. Seus gestos, de alguma maneira, não eram apropriados para o papel. Mas nenhum ator foi capaz de declamar Shakespeare como Gielgud. Bastava fechar os olhos e ouvir -a música cognitiva que saía da boca daquele homem era estarrecedora. Se isso era atuar ou outra coisa, não sei dizer. Alguns anos atrás, no teatro Settlement Playhouse, na Henry Street, em Nova York, havia uma companhia viajante em cartaz, feita principalmente de atores australianos. Eles estavam apresentando uma espécie de "Macbeth" minimalista. Havia só sete ou oito pessoas. Elas não tinham figurino. Quando não estavam falando, ficavam sentadas em bancos. Minha mulher, Jeanne, que não conhecia a peça bem na época, a achou um misto de bom e ruim. Quanto a mim, fiquei fascinado. É evidente que existe algo de imediato na encenação da peça que nos passa desapercebido quando apenas a lemos. Hoje, porém, temos essa coisa pavorosa que são os chamados diretores "conceituais", mais interessados em seus próprios conceitos do que nos conceitos de Shakespeare. O que se pode fazer?
Então o sr. não é a favor de encenar "Hamlet" num apartamento em Nova York...
De jeito nenhum. Mas permita que eu me explique. Ainda me recordo de ter estado sobre um palco, alguns anos atrás, participando de um debate com sir Frank Kermode, que é provavelmente o mais respeitado crítico britânico vivo hoje. Ele não é alguém que goste muito de mim, e não posso afirmar que goste muito dele. Em um dado momento, alguém na platéia perguntou: "Professor Bloom, qual foi, em sua opinião, o melhor filme de Shakespeare?". Respondi: "Na realidade, foram dois filmes de Kurosawa: "Ran", sua versão de "Rei Lear", e "Trono Manchado de Sangue", sua versão de "Macbeth"." Sir Frank retrucou triunfalmente: "É a mesma coisa de sempre com Harold. A língua de Shakespeare não significa nada para ele. Kurosawa não sabe uma palavra de inglês". Eu disse: "Isso é verdade, sem dúvida. Mas acho que Kurosawa captou a essência de "Lear" e "Macbeth"."
Muitas das idéias de que o sr. trata em seu novo livro parecem encontrar mais ressonância na tradição oriental do que na ocidental.
Sinto enorme fascínio por toda a tradição de sabedoria que pode ser chamada de ocidental, que vem desde a Bíblia e os gregos antigos até Shakespeare e além dele. Mas, de alguma maneira, nunca consegui compreender o que se passa na tradição oriental.
E o "Bhagavad Gita"? Como Hamlet, Arjuna é incapaz de agir -ele atira as armas ao chão, no campo de batalha, e diz que prefere morrer a matar seus parentes malévolos. Então o senhor Krishna lhe ensina a verdadeira natureza da ação e do Ser. Poderiam as palavras de Krishna ter algum valor para Hamlet, também?
Conheço a chamada "Canção do Senhor Abençoado" muito bem e acho esse trecho muito notável. Mas não posso me convencer de que realmente o compreenda. Em última análise, acho que Shakespeare é uma consciência tão enorme e abrangente que inclui não apenas a tradição ocidental. Antigamente dizia isso como uma espécie de piada irada, porque odeio o multiculturalismo, mas o fato é que Shakespeare é o verdadeiro autor multicultural. Minha frase favorita no meu livro sobre o cânone ocidental é a seguinte: "Se o multiculturalismo significou Cervantes, quem poderia protestar contra ele?". É claro que ele não significa Cervantes nem Shakespeare. Talvez todos os tempos sejam repletos de obras de época, como o infeliz "Harry Potter".
O sr. provocou uma reação e tanto, alguns anos atrás, com um ensaio que escreveu para o "Wall Street Journal" sobre "Harry Potter".
O editor da página de editoriais do "Wall Street Journal" me pediu, com toda a inocência, que escrevesse um texto sobre "Harry Potter". Perguntei: "O que é Harry Potter?". Ele explicou de quem se tratava. Eu disse: "Não me dá a impressão de ser meu tipo de coisa". Ele respondeu: "Harold, existem pessoas, como eu, que acham que você é provavelmente o mais notável crítico literário do mundo de hoje. Você realmente deveria dizer algo sobre isso". Então eu fui até a livraria de Yale e comprei uma cópia barata do primeiro volume. Não pude acreditar no que estava à minha frente. O que achei especialmente insuportável é que o livro desfilava um clichê atrás de outro. Escrevi o artigo, e ele foi publicado. Não seria exagero afirmar que todas as hostes do inferno se abateram sobre mim. Dez dias depois, o editor me telefonou e disse: "Harold, nunca antes vimos nada como isso. Já recebemos mais de 400 cartas criticando seu artigo sobre "Harry Potter". Recebemos uma carta a favor do artigo, mas achamos que ela deve ter sido escrita por você mesmo". "De maneira alguma", eu disse a ele. A coisa não parava nunca. O maldito artigo foi reproduzido no mundo todo, em todas as línguas. Esse assunto nunca mais vai me deixar em paz. Mas é claro que a série "Harry Potter" é lixo. Como todo lixo, vai acabar por ser apagada. O tempo vai apagá-la. O que se pode dizer?


Tradução de Clara Allain.


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