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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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+ memória

AS VERSÕES DE UM MITO

Bicentenário de nascimento do duque de Caxias é oportunidade para reconstruir a figura do militar brasileiro à luz de seu tempo

Francisco Doratioto
especial para a Folha

O bicentenário do nascimento de Luis Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias, transcorreu em 25 de agosto. A data passou praticamente despercebida no meio acadêmico, quando poderia ter sido motivo para se debater a origem e o caráter do Estado brasileiro no século 19. Afinal de contas, a longa carreira militar de Caxias confundiu-se com a história do Império do Brasil. Em 1822, ano da Independência, Lima e Silva era tenente e, ao morrer, em 1880, alcançou a patente militar máxima, era o único duque do Império e, ainda, tinha feito carreira política no Partido Conservador, chegando a ser senador e a chefiar o governo em três ocasiões diferentes. No fortalecimento do Estado monárquico, Caxias participou de quase todos os conflitos armados, em defesa do projeto de centralização política e manutenção da integridade territorial do país. No plano interno, participou da expulsão das tropas do general Madeira, na Bahia (1823); dominou as rebeliões regenciais da Abrilada (1832) e da Balaiada (1840-41). Também venceu a revolta liberal de São Paulo (1842) e, mediante o uso combinado da força e da negociação, obteve o fim da Revolta da Farroupilha (1837-45), terminando com a secessão republicana do Rio Grande do Sul. No plano externo, Caxias participou da Guerra da Cisplatina (1825-28); comandou as forças brasileiras, aliadas às da oposição argentina, federalista, contra o caudilho uruguaio Manuel Oribe (1851) e na deposição de Juan Manuel de Rosas, ditador da Confederação Argentina. O apogeu de sua carreira militar foi o comando das forças imperiais na Guerra do Paraguai (1865-70), no decisivo período de 1866 a 1868.

Paradigma
No Paraguai, Caxias foi comandante competente, embora não isento de falhas, implementando estratégia e táticas que permitiram destruir o Exército paraguaio na "dezembrada" -batalhas de Itororó, Avaí e Lomas Valentinas, em dezembro de 1868- e ocupar Assunção, a capital inimiga. Das críticas que lhe foram dirigidas à época, algumas eram procedentes militarmente, mas a maior parte delas decorria de erros de avaliação dos autores ou, ainda, tinham motivação política. A trajetória militar de Caxias levou o Exército a adotá-lo, na década de 1920, como o paradigma de comportamento a ser seguido por soldados e oficiais. Nas duas décadas seguintes, Getúlio Vargas reforçou a identificação do Exército com o duque, posto que suas cararacterísticas de militar leal ao Estado e defensor do centralismo político constituíam reforço ideológico ao projeto político varguista. Posteriormente, Caxias foi elevado à condição de patrono do Exército, sobrepujando o general Osório, seu contemporâneo que, por décadas, ombreara com ele no panteão dos heróis militares brasileiros. A historiografia escrita por autores militares desumanizou Caxias, ao apresentá-lo como soldado e cidadão sem falhas. A artificialidade dessa imagem contribuiu para a pouca identificação com ela por parte do cidadão comum. Porém a pesquisa da correspondência enviada por Caxias do Paraguai e as memórias de combatentes fazem emergir um comandante-em-chefe que se expôs voluntariamente ao fogo inimigo, arriscando a vida (coisa que Solano López jamais fez); que se indignava com o comportamento de parte dos oficiais nos combates da "dezembrada"; que não esmorecia, apesar da dificuldade de levar os soldados brasileiros ao combate; que, em agosto de 1868, defendeu o término da guerra pela negociação, e não pela vitória militar, de modo a evitar novas perdas e gastos para o Império. Tem-se um homem que, aos 63 anos de idade, aceitou o comando de um exército desorganizado e desmoralizado após a derrota de Curupaiti, quando podia continuar no Rio de Janeiro, em confortável situação. No Paraguai, Caxias viveu angústias, teve dúvidas, mas transcendeu suas limitações, impôs-se grandes sacrifícios pessoais e destruiu o poderio militar paraguaio.

Revisionismo
É surpreendente que, apesar da sua importância histórica, se saiba relativamente pouco sobre o duque de Caxias. Grande parte das biografias escritas sobre ele é laudatória, inspirada no livro "Vida do Grande Cidadão Brasileiro Luis Alves de Lima e Silva", do padre Joaquim Pinto de Campos, publicado em 1878. Nas décadas de 1960 a 1980, Caxias foi vítima de outra deturpação: a revisionista, que, após responsabilizar absurdamente a Inglaterra como causadora da Guerra do Paraguai, apresentou sua atuação no conflito quase como a de um genocida. Essa versão foi aceita de forma acrítica pelo meio acadêmico, que se opunha ao regime autoritário instalado com o golpe militar de 1964. Nesse contexto, comprometer a imagem de Caxias, patrono do Exército, implicava enfraquecer a legitimação histórico/ideológica deste e de sua ingerência na vida política.
O fim da Guerra Fria e, no Brasil, o retorno da democracia despiram os estudos de história de vários condicionantes ideológicos. Historiadores, guiados pelo rigor metodológico e pela pesquisa em fontes primárias, podem, agora, avançar mais no conhecimento de diferentes aspectos de nossa história. Um desses refere-se à figura de Caxias, que deve ser estudada à luz de seu contexto histórico e explicada pelos valores do seu tempo. Mitos e preconceitos ideológicos devem ser superados.


Francisco Doratioto é professor do curso de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília e autor do livro "Maldita Guerra - Nova História da Guerra do Paraguai" (Cia. das Letras).


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