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+ sociedade
Ciência renascida
"Yes, Nós Temos Pasteur", de Henrique Cukierman, desconstrói mitos de fundação da tecnociência no Brasil e analisa papel crucial de Oswaldo Cruz
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Agora que o Brasil
parece ter descoberto a importância
da invenção e da
inovação no capitalismo avançado e que proliferam, pelo menos no plano do
discurso, as iniciativas para fazer do progresso tecnocientífico a mola-mestra de um desenvolvimento travado há uns 25
anos, parece oportuno ler "Yes,
Nós Temos Pasteur - Manguinhos, Oswaldo Cruz e a História da Ciência no Brasil" [Faperj/Relume Dumará, 440 págs., R$ 49,90], de Henrique
Cukierman.
Nem que seja para ter, pelo
menos, uma medida do que nos
une e separa do momento em
que nasceu a ciência experimental brasileira, há um século, em Pestópolis, então capital
do país.
Muito já se escreveu sobre
Manguinhos e a figura heróica
de seu criador, sobre a febre
amarela e a higienização do Rio
de Janeiro, sobre a Revolta da
Vacina. Mas, salvo engano,
creio ser a primeira vez em que
se analisa, criticamente e em
profundidade, a questão, a partir da óptica do que se convencionou chamar Estudos CTS
(Ciência-Tecnologia-Sociedade), que tem por objeto a complexidade das relações entre
estes três termos.
Pode ser que os cientistas nativos torçam o nariz, já que não
se trata de "comprar" a promessa de redenção de uma sociedade periférica por meio do
progresso e da modernização
propiciados pela ciência e pela
tecnologia, mas de desconstruir o mito de fundação da tecnociência brasileira, problematizando esta última como um fenômeno sociotécnico.
Quem conhece a área sabe
que, nessa matéria, o trabalho
de Bruno Latour é referência
obrigatória, pois foi ele quem
primeiro ousou penetrar no laboratório e elaborar um aparato conceitual e perceptivo que
permitisse apreender todas as
dimensões do que os cientistas
fazem, além do que afirmam
fazer.
Cukierman aprendeu com
ele todos os segredos dessa metodologia, mas teve a sagacidade de cruzá-la com os ensinamentos prescritos por Sérgio
Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil", para "ler" de que
modo o Pasteur tropical e seu
grupo lidam com as contradições e paradoxos de uma tecnociência marcada desde o início pelo estigma do colonizador colonizado e do colonizado
colonizador.
Assim, a equação Latour +
Holanda assegura que sempre
se tenha em mente não só como se faz ciência mas "como se
faz ciência no Brasil".
O resultado desse olhar cruzado é instigante. Cukierman
"embarca" na aventura como
um "companheiro de viagem" e
leva com ele o leitor -por meio
de uma prosa leve e bem-humorada, e nem por isso menos
precisa e competente, fundamentada no acurado exame de
extensa documentação.
O artifício de "colar" na evolução de seu objeto de estudo é
altamente arriscado, porque a
narrativa corre na finíssima
fronteira que separa fato e ficção; entretanto é ele que possibilita ao leitor a sensação de
testemunhar o que acontece,
embora compreendendo o sentido do acontecimento talvez
até mais do que um contemporâneo, graças ao aporte retrospectivo de um século de reflexão e de historiografia.
Se fosse possível resumir em
poucas palavras o núcleo do
projeto de Oswaldo Cruz e de
seu grupo, dir-se-ia que ele
consiste em transformar a
ciência experimental em instrumento privilegiado para que
o Brasil deixe de ser o fim do
mundo, vire a página da maldita herança colonial e se torne
uma nação civilizada.
Nesse rumo, a erradicação da
febre amarela na capital da República é concebida como a
oportunidade para um efeito-demonstração que ateste a um
só tempo a vontade científica,
técnica, política, administrativa e cultural de refundar o país,
ou de reinventá-lo.
Há, porém, obstáculos de toda ordem, que o livro esmiúça
muito bem.
Não deixa de ser tragicômico
que a vitória do General Mata-Mosquito tenha sido posteriormente contrariada -afinal, o
"novo" mosquito da dengue
que hoje atormenta as cidades
brasileiras é o mesmo "velho"
estegomia renomeado...
De todo modo, a avassaladora máquina de sanear cumpriu
um papel importantíssimo,
não só na história da saúde pública brasileira como na história do controle social de populações: a inédita tecnologia de
controle sanitário é também de
vigilância. E aqui adquire consistência a Revolta da Vacina.
Todos os capítulos do livro
levantam problemas relevantes; mas nenhum, em meu entender, é tão forte quanto o que
procura "vacinar a Revolta da
Vacina", isto, é inoculá-la com
o vírus de uma revolta específica que precisa ser pensada dentro da história da tecnociência,
pois estamos diante de um caso
único de resistência popular
contra o poder tutelar da ciência sobre a sociedade.
E não foi à toa que [o historiador] José Murilo de Carvalho viu nela o exercício do direito de cidadania. Cukierman
concorda com o historiador -e
busca ir além, explorando o silenciar gritante de sua figura
maior, o Prata Preta.
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS é sociólogo e
professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (SP).
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