São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ sociedade

Ciência renascida

"Yes, Nós Temos Pasteur", de Henrique Cukierman, desconstrói mitos de fundação da tecnociência no Brasil e analisa papel crucial de Oswaldo Cruz

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Agora que o Brasil parece ter descoberto a importância da invenção e da inovação no capitalismo avançado e que proliferam, pelo menos no plano do discurso, as iniciativas para fazer do progresso tecnocientífico a mola-mestra de um desenvolvimento travado há uns 25 anos, parece oportuno ler "Yes,
Nós Temos Pasteur - Manguinhos, Oswaldo Cruz e a História da Ciência no Brasil" [Faperj/Relume Dumará, 440 págs., R$ 49,90], de Henrique Cukierman.
Nem que seja para ter, pelo menos, uma medida do que nos une e separa do momento em que nasceu a ciência experimental brasileira, há um século, em Pestópolis, então capital do país.
Muito já se escreveu sobre Manguinhos e a figura heróica de seu criador, sobre a febre amarela e a higienização do Rio de Janeiro, sobre a Revolta da Vacina. Mas, salvo engano, creio ser a primeira vez em que se analisa, criticamente e em profundidade, a questão, a partir da óptica do que se convencionou chamar Estudos CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade), que tem por objeto a complexidade das relações entre estes três termos.
Pode ser que os cientistas nativos torçam o nariz, já que não se trata de "comprar" a promessa de redenção de uma sociedade periférica por meio do progresso e da modernização propiciados pela ciência e pela tecnologia, mas de desconstruir o mito de fundação da tecnociência brasileira, problematizando esta última como um fenômeno sociotécnico.
Quem conhece a área sabe que, nessa matéria, o trabalho de Bruno Latour é referência obrigatória, pois foi ele quem primeiro ousou penetrar no laboratório e elaborar um aparato conceitual e perceptivo que permitisse apreender todas as dimensões do que os cientistas fazem, além do que afirmam fazer.
Cukierman aprendeu com ele todos os segredos dessa metodologia, mas teve a sagacidade de cruzá-la com os ensinamentos prescritos por Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil", para "ler" de que modo o Pasteur tropical e seu grupo lidam com as contradições e paradoxos de uma tecnociência marcada desde o início pelo estigma do colonizador colonizado e do colonizado colonizador.
Assim, a equação Latour + Holanda assegura que sempre se tenha em mente não só como se faz ciência mas "como se faz ciência no Brasil".
O resultado desse olhar cruzado é instigante. Cukierman "embarca" na aventura como um "companheiro de viagem" e leva com ele o leitor -por meio de uma prosa leve e bem-humorada, e nem por isso menos precisa e competente, fundamentada no acurado exame de extensa documentação.
O artifício de "colar" na evolução de seu objeto de estudo é altamente arriscado, porque a narrativa corre na finíssima fronteira que separa fato e ficção; entretanto é ele que possibilita ao leitor a sensação de testemunhar o que acontece, embora compreendendo o sentido do acontecimento talvez até mais do que um contemporâneo, graças ao aporte retrospectivo de um século de reflexão e de historiografia.
Se fosse possível resumir em poucas palavras o núcleo do projeto de Oswaldo Cruz e de seu grupo, dir-se-ia que ele consiste em transformar a ciência experimental em instrumento privilegiado para que o Brasil deixe de ser o fim do mundo, vire a página da maldita herança colonial e se torne uma nação civilizada.
Nesse rumo, a erradicação da febre amarela na capital da República é concebida como a oportunidade para um efeito-demonstração que ateste a um só tempo a vontade científica, técnica, política, administrativa e cultural de refundar o país, ou de reinventá-lo.
Há, porém, obstáculos de toda ordem, que o livro esmiúça muito bem.
Não deixa de ser tragicômico que a vitória do General Mata-Mosquito tenha sido posteriormente contrariada -afinal, o "novo" mosquito da dengue que hoje atormenta as cidades brasileiras é o mesmo "velho" estegomia renomeado...
De todo modo, a avassaladora máquina de sanear cumpriu um papel importantíssimo, não só na história da saúde pública brasileira como na história do controle social de populações: a inédita tecnologia de controle sanitário é também de vigilância. E aqui adquire consistência a Revolta da Vacina.
Todos os capítulos do livro levantam problemas relevantes; mas nenhum, em meu entender, é tão forte quanto o que procura "vacinar a Revolta da Vacina", isto, é inoculá-la com o vírus de uma revolta específica que precisa ser pensada dentro da história da tecnociência, pois estamos diante de um caso único de resistência popular contra o poder tutelar da ciência sobre a sociedade.
E não foi à toa que [o historiador] José Murilo de Carvalho viu nela o exercício do direito de cidadania. Cukierman concorda com o historiador -e busca ir além, explorando o silenciar gritante de sua figura maior, o Prata Preta.


LAYMERT GARCIA DOS SANTOS é sociólogo e professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (SP).

Texto Anterior: Discoteca Básica: Camargo Guarnieri
Próximo Texto: + Arte: Lado B
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.