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A ficção mistificante
LUIZ COSTA LIMA
especial para a Folha
Em "As Iniciais" (Companhia
das Letras, 1999), Bernardo Carvalho aprofunda o clima indagativo que singularizava seu livro anterior, "Teatro" (1998). De sua
singularidade resulta o que o crítico português Eduardo Prado
Coelho chamou de fascínio "insidiosamente perverso". Já seu
aprofundamento corre por conta
do que liga os dois romances, com
a vantagem presumível do último. Tanto em "Teatro" como em
"As Iniciais", é evidente o contraste entre duas condições nacionais: a ambiência de uma grande
potência e um "outro lado" -em
"Teatro", um país vizinho e miserável, em "As Iniciais", um país
emergente, à beira de ser tragado
por uma catástrofe financeira
mundial.
Mas a substituição de um miserável vizinho por um ameaçado
distante nada diz do alegado
aprofundamento. Ele dependerá
de a caracterização seguinte ser
capaz de apontar para correção
do que ainda parecia prejudicar o
livro anterior: o fato de que nele
nenhum segmento deixava de se
encaixar e então fazer pleno sentido. Correção, pois, da excessiva
simetria.
"As Iniciais" já se encontra bem
avançado quando o narrador escuta uma voz esganiçada que
anuncia a tese: a vida em geral é o
câncer do universo. E seu corolário: o capitalismo é o câncer de si
mesmo. Ao aproximar-se, o narrador compreende que é um ator,
ensaiando um esquete. Logo é ele
exposto para os convidados ao
jantar que os reunia e recebido "às
gargalhadas". O ator, ademais, já
fora encontrado pelo narrador:
ainda que secundário, já estivera
na primeira parte do relato. O reconhecimento é o primeiro elo
que une as partes do relato, apesar
da distância geográfica que as separa.
A primeira se passara em lugar
antípoda. Nela, o narrador, então
correspondente de um jornal
-por suposto, do lado de cá-,
começara seu relato por informar
ao jornal que saía de férias. Nada
de palpitante havia a anunciar.
Era agosto e todos saíam da cidade. Nada de novo se acrescentara
desde o anúncio pelo presidente
que o país iria se juntar aos aliados e entrar em guerra. A guerra
estourava bombas "no outro lado
do mundo, no deserto". Ali, de
onde o correspondente falava, nada sucedia. O correspondente dirige-se pois para o interior da potência em guerra. Mais precisamente, para um mosteiro restaurado e convertido em "centro cultural".
Fora convidado com outros: artistas, herdeiros, administradores
de grandes fortunas, seus amantes e parasitas. O local situava-se
numa ilha do tipo da "isla al mediodía", de Cortázar, isto é, de ilha
pertencente ao tempo que arruinara seu caráter tópico de "longe
da multidão enlouquecida". Os
que ali se reúnem são referidos
apenas por suas iniciais.
Sobre o grupo em férias na ilha,
como em todo o relato, paira um
clima detetivesco. As atitudes das
personagens criam suspeitas,
quer de sedução, quer de embuste, quer de crimes talvez cometidos, quer de identidade. As suspeitas criam versões contraditórias -que, no entanto, ao contrário do gênero detetivesco, não se
esclarecem. O método de Georges
Simenon e Agatha Christie converte-se noutra coisa. Menos em
história emocionante do que em
estímulo para a reflexão.
A caracterização ganha em rapidez se se concentrar na figura que
centraliza os convidados. Era um
ex-jornalista, que conseguira a
cessão do antigo mosteiro e se dedica a escrever um interminável
diário. O escritor está "contaminado", como alguns de seus parceiros. Em breve, ele próprio
morrerá. Há, portanto, duas guerras simultâneas: uma, embora declarada, não incomoda aos deste
lado; a outra, só eufemisticamente declarada, devasta suas vítimas.
Esses elementos formam a parcela sócio-bio-política dos parâmetros espaço-temporais do romance.
Embora a morte esteja à espreita de todos, todos parecem ativos
no desempenho de seus papéis.
Estes começam a se desenhar pela
força desempenhada pela imitação. O próprio narrador se declara imitador do autor do diário infinito. Mas de que tratava o diário? De fatos? Não. Sem pudor, o
diário misturava vida e ficção. "O
quanto seus romances tinham de
autobiográficos, também os diários tinham de ficção". Eis pois a
segunda parcela dos parâmetros
do romance: a partir do exemplo
do centro do "mosteiro", vida e
ficção se mostram confundidas, a
ficção é mistificada.
Essa mistificação não é um mero apêndice do enredo, mas parte
essencial da estrutura. Três traços
o mostram: (a) em certa cena, o
escritor memorialista veste-se
com esmero, ilumina a igreja e
grava um vídeo que, embora esfumaçado, é vendido à TV.
A "militância da mistificação de
si mesmo" faz parte do mecanismo da "indústria cultural"; (b) a
voracidade com que todos se dispõem a entrar no processo mistificatório, "como se só pudessem
ser reais no texto"; (c) a denúncia
por um dos participantes de que a
mistificação dava ensejo a uma
nova religião: a criatura substituía
o Criador. Curiosa sociedade em
que a falta de nomes se põe a serviço da mais extrema individualidade.
Embora tenha se expressado de
modo bastante polido, o denunciante é entendido pelo mistificador. Segundo uma das interpretações que passa a circular, o escritor mistificador é responsável pelo desaparecimento daquele. Encerra-se a primeira parte. Mas a
tal ponto os dois lados do mundo
estão unificados que a passagem
para o lado oposto não muda as
regras da equação. O fato de tratar-se de país em véspera de catástrofe financeira não impede que
retornem algumas das personagens -desde logo, o narrador, o
ator referido e a figura controversa cuja identidade não se descobre- e que permaneça o mesmo
clima mistificatório. Apenas este
agora não abrange só a arte. Tendo por base a vida, a mistificação
consiste em se dar a mostrar e em
se pôr à venda. Para isso contribui
o próprio fato de que as versões
propaladas sobre esta ou aquela
personagem conflitem entre si e
não se resolvam.
É por esse caminho que o autor
ultrapassa o que chamara a excessiva simetrização, ainda prejudicial ao "Teatro". Agora, o encaixe
dos detalhes é apenas aparente.
Em troca, torna-se mais aguda a
afirmação da ficção mistificante,
da individualidade que, aparentando se desprender do religioso,
faz de si o centro de uma religiosidade amorfa, anômica, em escala
industrial, ela mesma alimentadora e alimentada pela indústria
da cultura.
Não é importante averiguar ou,
de qualquer modo, seria impossível saber se o autor reconheceu o
problema. Parece entretanto sintomático um episódio em que o
escritor memorialista, autor de
ficção mistificante, cultor da religião do eu, desempenha papel
primordial. Ainda quando jornalista, fora encarregado de entrevistar um mágico que perdera sua
fama ao errar na execução de um
de seus truques favoritos. A reportagem fracassara e, despedido
da revista para a qual trabalhara,
decidira tornar-se escritor.
A questão sobre a qual tratam a
personagem que o recorda e o
narrador é se o repórter transmitira de fato a explicação do mágico ou preferira guardá-la para si.
Observa então a personagem que
relata o episódio: a "verdadeira
mágica" só pode "surgir das falhas, dos erros justamente, e nunca das fórmulas". Ora, o narrador
se apresentava como discípulo do
escritor agora morto. Em que,
pois, consistira o "erro" de "As
Iniciais"? Diria: em fazer do romance, normalmente tido como
uma espécie de divertimento,
uma reflexão ficcional sobre o estado do mundo, do mundo da ficção em particular, e do mundo
globalizado; dos vírus, ameaças,
mistificações e catástrofes que
particularizam um e outro. Contra a mistura vida e ficção, em que
cada uma se justifica pela outra.
Contra a ficção mistificante, a ficção como problematização da vida.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Uerj e da PUC-RJ, autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros. A partir de hoje, ele passa a escrever mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".
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