São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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Koellreutter por Tom Zé

Arquivo pessoal
Hans-Joachim Koellreutter e alunos brasileiros, em 1953


MARCELO VALLETTA
da Reportagem Local

O músico baiano Tom Zé, participante do tropicalismo e hoje com carreira em ascensão no exterior, foi aluno de Koellreutter no início dos anos 60. Na entrevista a seguir, ele fala da importância de seu ex-professor na música erudita moderna e conta que Koellreutter era um "pescador de possibilidades artísticas".

Folha - Qual a sua primeira lembrança de Koellreutter?
Tom Zé -
Aula inaugural dos Seminários Livres de Música da Universidade Federal da Bahia, em 1961. Todos os alunos reunidos, Koellreutter iria aparecer.Todos se sentaram, entrou aquele professor, todo mundo fez silêncio. Ele pôs um papel em cima da mesa, nos olhou com toda a atenção, como se quisesse prender os olhos de todos e disse: "A música não é a expressão dos sentimentos através do som". Ora, aquilo para mim era uma coisa estranhíssima, uma blasfêmia. Eu arregalei os olhos para aquele herege agnóstico que estava lá dizendo tal coisa... Nunca me esqueci.

Folha - Como era o ensino de música erudita naquela época, na Bahia?
Tom Zé -
A Bahia, no que se refere à música, tinha dois pólos contrastantes e paradoxais. De um lado, um ensino de música bem do século romântico, que pretendia formar mocinhas de classe média que estudavam nove anos de piano e eram jubiladas num concerto em que Mozart era claudicado para brunir possibilidades casamenteiras. E tinha um outro lado em que havia uma espécie de faísca inculta e rica, que recendia sangue negro dos terreiros. Era esse impulso cultural e folclórico muito forte e esse ensino de música burguês e pequeno.
Então tinha essa coisa que eu chamo de polimicrotonal polissemia, que nos orienta a outro signo, a personalidade de Koellreutter. Porque Koellreutter existiu não só oficialmente, como professor, como também existiu num mundo mítico, como um Tristão de todas as Isoldas. Quando Koellreutter entrava nas aulas coletivas, nos Seminários de Música, as pernas das moças das grandes famílias da Bahia praticavam aqueles trêmulos de segunda menor, elas ficavam em vibratos de terça maior debaixo das saias. E Koellreutter, nesse aspecto, era um Tristão generoso e belo e podia se perfilar ao lado de personagens míticos da Bahia, como Quincas Berro d'Água, ou aquele da "Dona Flor e seus Dois Maridos", qual o nome?

Folha - Vadinho...
Tom Zé -
Isso, como o Vadinho, como o Aragão de Irará, um personagem de Cuíca de Santo Amaro, um poeta popular que vendia seus cordéis na porta do elevador Lacerda... Então Koellreutter tinha essas duas vidas na Bahia: era professor oficial e tinha essa vida mítica de grande namorador. A Bahia falava dele, fuxicava dele, era um outro lado sensacional de Koellreutter.

Folha - E como ele lidava com as pessoas?
Tom Zé -
No "tête-à-tête", ele parecia um personagem de Conrad. Uma criatura meio estranha... Os personagens de Conrad se desagregam em contato com a pré-civilização. E Koellreutter parecia um pouco assim. Nossas cabeças estavam tão cheias de conceitos românticos e retardados de música... Ele tinha raiva dos alunos instruídos que tentavam botar teoria na classe dele. Com os alunos bárbaros, analfabetos, ele tinha mais paciência. A pedagogia dele era rebelde, era aquela águia que comia o fígado de Prometeu. Ele não tinha pinta de professor europeu, tinha uma pinta de criador estranha. Não era uma coisa assustadora, mas ele era um cara "troglodítico" no trato pessoal, embora fosse um charme, um encanto. E ele incentivava a observação sarcástica, a posição satírica.

"Quando Koellreutter entrava nas aulas, as pernas das moças das grandes famílias da Bahia praticavam aqueles trêmulos de segunda menor, elas ficavam em vibratos de terça maior debaixo das saias" (Tom Zé)

Folha - E como eram as aulas? Ele tinha algum método?
Tom Zé -
Eu ouvi dizer que ele tinha tido alguns percalços na sua paixão pelo dodecafonismo, técnica musical que ele preferia, ensinava e divulgava. Em sua fase baiana, ele já não era tão rigoroso. Ele praticava uma prototécnica do estilo aleatório. O dodecafonismo já abria o flancos para uma especulação estética oriental, que muito atraía Koellreutter, tanto que ele acabou indo para o Oriente. A gente também praticava um serialismo, que tinha mais cintura que o dodecafonismo, pois são séries menores... Ele permitia especulações em torno de escalas musicais do Recôncavo, escalas tonais e modais que tinham graus muito alterados. Ficava um clima serial um tanto caboclo. Mas tudo muito longe dos tais vícios da escola nacionalista de música brasileira, da qual Koellreutter tinha horror. Ele trouxe para o Brasil também muitos trabalhos de Bela Bartók, que tinham um gênero híbrido de harmonização...
Ele tinha um cuidado constante em oferecer e fornecer opções estruturais, mas deixando a alma da gente virgem, preservando nossa identidade. A gente se sentia bem.

Folha - Tim Rescala disse que Koellreutter se adaptava a cada aluno...
Tom Zé -
Isso! Koellreutter praticava uma teoria do caos e da complexidade. Ele resolvia diferentes problemas das maneiras mais inesperadas. Cada aluno dele era um método diferente. Na Bahia, o aluno com quem ele mais trabalhou no início era Milton Gomes, um médico de 68 anos de idade, em quem ele aplicou um método absolutamente único. Como ele tinha 68, Koellreutter falou: "Olha, não vou trabalhar com você harmonia tradicional, nem contraponto clássico. Vou começar com você do momento em que a tonalidade explodiu em Schoenberg, do "Pierrot Lunaire", a peça que inaugurou a atonalidade, para a frente". Ou seja, ele começou direto da atonalidade, depois foi para o dodecafonismo. E isso era estranhíssimo, pois Koellreutter exigia de seus alunos, com grande severidade, o estudo e a prática do contraponto clássico de Palestrina.

Folha - Você reconhece em sua obra alguma influência direta de Koellreutter?
Tom Zé -
Influência direta, não, mas influência mais do que direta. Influência não em melodia, em nada disso, mas na maneira de a mente trabalhar. Experimentei vivenciar isso segurando na mão dele, levado por ele. Eu não tenho influência das técnicas. Aprendi serialismo, dodecafonismo, politonalidade, aprendi para esquecer. Mas o espectro disso, dessas alternâncias na maneira de organizar as coisas, isso está tudo presente em mim. Koellreutter e seu sucessor, Ernest Widmer, estão presentes em mim. Então é uma maravilha que esse homem tenha vindo para o Brasil.

Folha - Qual é a importância de Koellreutter na música erudita moderna brasileira?
Tom Zé -
A presença e a influência de Koellreutter na música erudita da Bahia são certas, embora as pessoas não pratiquem o dodecafonismo. Todos nós, que fomos do grupo de composição de música erudita da Bahia, estamos de acordo com isso.
Aqui em São Paulo, não tenho autoridade para afirmar. Mas, pelo que ouvi durante as comemorações dos 80 anos de Koellreutter, quando vários músicos de todas as tendências se manifestaram, sem dúvida há também a grande revolução cultural que ele desencadeou com sua presença.


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