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Koellreutter por Tom Zé
Arquivo pessoal
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Hans-Joachim Koellreutter e alunos brasileiros, em 1953 |
MARCELO VALLETTA
da Reportagem Local
O músico baiano Tom Zé, participante do tropicalismo e hoje
com carreira em ascensão no exterior, foi aluno de Koellreutter no
início dos anos 60. Na entrevista a
seguir, ele fala da importância de
seu ex-professor na música erudita moderna e conta que Koellreutter era um "pescador de possibilidades artísticas".
Folha - Qual a sua primeira
lembrança de Koellreutter?
Tom Zé - Aula inaugural dos
Seminários Livres de Música da
Universidade Federal da Bahia,
em 1961. Todos os alunos reunidos, Koellreutter iria aparecer.Todos se sentaram, entrou aquele
professor, todo mundo fez silêncio. Ele pôs um papel em cima da
mesa, nos olhou com toda a atenção, como se quisesse prender os
olhos de todos e disse: "A música
não é a expressão dos sentimentos através do som". Ora, aquilo
para mim era uma coisa estranhíssima, uma blasfêmia. Eu arregalei os olhos para aquele herege
agnóstico que estava lá dizendo
tal coisa... Nunca me esqueci.
Folha - Como era o ensino de
música erudita naquela época, na Bahia?
Tom Zé - A Bahia, no que se refere à música, tinha dois pólos
contrastantes e paradoxais. De
um lado, um ensino de música
bem do século romântico, que
pretendia formar mocinhas de
classe média que estudavam nove
anos de piano e eram jubiladas
num concerto em que Mozart era
claudicado para brunir possibilidades casamenteiras. E tinha um
outro lado em que havia uma espécie de faísca inculta e rica, que
recendia sangue negro dos terreiros. Era esse impulso cultural e
folclórico muito forte e esse ensino de música burguês e pequeno.
Então tinha essa coisa que eu
chamo de polimicrotonal polissemia, que nos orienta a outro signo, a personalidade de Koellreutter. Porque Koellreutter existiu
não só oficialmente, como professor, como também existiu num
mundo mítico, como um Tristão
de todas as Isoldas. Quando
Koellreutter entrava nas aulas coletivas, nos Seminários de Música,
as pernas das moças das grandes
famílias da Bahia praticavam
aqueles trêmulos de segunda menor, elas ficavam em vibratos de
terça maior debaixo das saias. E
Koellreutter, nesse aspecto, era
um Tristão generoso e belo e podia se perfilar ao lado de personagens míticos da Bahia, como
Quincas Berro d'Água, ou aquele
da "Dona Flor e seus Dois Maridos", qual o nome?
Folha - Vadinho...
Tom Zé - Isso, como o Vadinho, como o Aragão de Irará, um
personagem de Cuíca de Santo
Amaro, um poeta popular que
vendia seus cordéis na porta do
elevador Lacerda... Então Koellreutter tinha essas duas vidas na
Bahia: era professor oficial e tinha
essa vida mítica de grande namorador. A Bahia falava dele, fuxicava dele, era um outro lado sensacional de Koellreutter.
Folha - E como ele lidava
com as pessoas?
Tom Zé - No "tête-à-tête", ele
parecia um personagem de Conrad. Uma criatura meio estranha... Os personagens de Conrad
se desagregam em contato com a
pré-civilização. E Koellreutter parecia um pouco assim. Nossas cabeças estavam tão cheias de conceitos românticos e retardados de
música... Ele tinha raiva dos alunos instruídos que tentavam botar teoria na classe dele. Com os
alunos bárbaros, analfabetos, ele
tinha mais paciência. A pedagogia
dele era rebelde, era aquela águia
que comia o fígado de Prometeu.
Ele não tinha pinta de professor
europeu, tinha uma pinta de criador estranha. Não era uma coisa
assustadora, mas ele era um cara
"troglodítico" no trato pessoal,
embora fosse um charme, um encanto. E ele incentivava a observação sarcástica, a posição satírica.
"Quando Koellreutter
entrava nas aulas,
as pernas das moças das grandes famílias
da Bahia praticavam
aqueles trêmulos
de segunda menor,
elas ficavam em
vibratos de terça maior debaixo das saias"
(Tom Zé)
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Folha - E como eram as aulas? Ele tinha algum método?
Tom Zé - Eu ouvi dizer que ele
tinha tido alguns percalços na sua
paixão pelo dodecafonismo, técnica musical que ele preferia, ensinava e divulgava. Em sua fase
baiana, ele já não era tão rigoroso.
Ele praticava uma prototécnica
do estilo aleatório. O dodecafonismo já abria o flancos para uma
especulação estética oriental, que
muito atraía Koellreutter, tanto
que ele acabou indo para o Oriente. A gente também praticava um
serialismo, que tinha mais cintura
que o dodecafonismo, pois são séries menores... Ele permitia especulações em torno de escalas musicais do Recôncavo, escalas tonais e modais que tinham graus
muito alterados. Ficava um clima
serial um tanto caboclo. Mas tudo
muito longe dos tais vícios da escola nacionalista de música brasileira, da qual Koellreutter tinha
horror. Ele trouxe para o Brasil
também muitos trabalhos de Bela
Bartók, que tinham um gênero híbrido de harmonização...
Ele tinha um cuidado constante
em oferecer e fornecer opções estruturais, mas deixando a alma da
gente virgem, preservando nossa
identidade. A gente se sentia bem.
Folha - Tim Rescala disse que
Koellreutter se adaptava a cada aluno...
Tom Zé - Isso! Koellreutter praticava uma teoria do caos e da
complexidade. Ele resolvia diferentes problemas das maneiras
mais inesperadas. Cada aluno dele era um método diferente. Na
Bahia, o aluno com quem ele mais
trabalhou no início era Milton
Gomes, um médico de 68 anos de
idade, em quem ele aplicou um
método absolutamente único.
Como ele tinha 68, Koellreutter
falou: "Olha, não vou trabalhar
com você harmonia tradicional,
nem contraponto clássico. Vou
começar com você do momento
em que a tonalidade explodiu em
Schoenberg, do "Pierrot Lunaire",
a peça que inaugurou a atonalidade, para a frente". Ou seja, ele começou direto da atonalidade, depois foi para o dodecafonismo. E
isso era estranhíssimo, pois Koellreutter exigia de seus alunos, com
grande severidade, o estudo e a
prática do contraponto clássico
de Palestrina.
Folha - Você reconhece em
sua obra alguma influência direta de Koellreutter?
Tom Zé - Influência direta, não,
mas influência mais do que direta.
Influência não em melodia, em
nada disso, mas na maneira de a
mente trabalhar. Experimentei vivenciar isso segurando na mão
dele, levado por ele. Eu não tenho
influência das técnicas. Aprendi
serialismo, dodecafonismo, politonalidade, aprendi para esquecer. Mas o espectro disso, dessas
alternâncias na maneira de organizar as coisas, isso está tudo presente em mim. Koellreutter e seu
sucessor, Ernest Widmer, estão
presentes em mim. Então é uma
maravilha que esse homem tenha
vindo para o Brasil.
Folha - Qual é a importância
de Koellreutter na música erudita moderna brasileira?
Tom Zé - A presença e a influência de Koellreutter na música erudita da Bahia são certas,
embora as pessoas não pratiquem
o dodecafonismo. Todos nós, que
fomos do grupo de composição
de música erudita da Bahia, estamos de acordo com isso.
Aqui em São Paulo, não tenho
autoridade para afirmar. Mas, pelo que ouvi durante as comemorações dos 80 anos de Koellreutter, quando vários músicos de todas as tendências se manifestaram, sem dúvida há também a
grande revolução cultural que ele
desencadeou com sua presença.
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