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RASTROS DE ÓDIO
"MUNIQUE", QUE ESTRÉIA NO BRASIL NO DIA 27, PARTE DO ATENTADO CONTRA A DELEGAÇÃO DE ISRAEL NA OLIMPÍADA DE 72 PARA DISCUTIR O CONFLITO NO ORIENTE MÉDIO
MANOHLA DARGIS
Em seu novo filme, "Munique", Steven Spielberg abandona a provocação emotiva e
a excitação pop que lhe vêm
com tanta facilidade para contar a
história de uma campanha de vingança efetuada por Israel contra terroristas palestinos depois da Olimpíada de 1972.
Um olhar impiedoso e brutal dirigido a dois povos que quase se afogam no mar de seu próprio sangue,
"Munique" é de longe o filme mais
duro da carreira do diretor -e o
mais angustiado. Spielberg vem
martelando o público com seu virtuosismo desde que faz cinema.
Agora, ele convida a uma discussão.
O título do filme sugere que é a história do que aconteceu em Munique
em setembro de 1972; e é, mas não
só. A maior parte da ação -e esse
filme de roer as unhas tem muita
ação- transcorre na seqüência
imediata do atentado em Munique,
depois que 11 reféns israelenses foram assassinados por membros de
um grupo terrorista palestino conhecido como Setembro Negro.
Baseado no discutido livro de
George Jonas "A Hora da Vingança" e adaptado para o
cinema pela dupla improvável Eric
Roth e Tony Kushner ("Forrest
Gump" encontra "Angels in America"), o filme gira em torno de cinco
agentes israelenses que, recrutados
para serem os vingadores de um país
que oficialmente negará sua existência, esquadrinham a Europa à caça
de suspeitos durante meses e anos.
Com sua verossimilhança artística
e promíscua utilização de material
de arquivo, "Munique" é uma dessas
ficções de Hollywood que parecem
confundir os que não vêem gradação nas palavras "inspirado em fatos
reais". Aqui, esses fatos começam
com os membros do Setembro Negro pulando a cerca da vila olímpica
e tomando atletas e treinadores israelenses como reféns. A maior parte do que acontece a seguir, incluindo a espera agonizante na vila olímpica e o confronto final catastrófico,
surge em etapas, em irrupções que
periodicamente cortam a narrativa e
perturbam cada vez mais o sono do
vacilante núcleo moral da história:
um ex-agente do Mossad, o serviço
secreto israelense, chamado Avner
(o ator australiano Eric Bana).
Para o Setembro Negro, Munique
é ao mesmo tempo um teatro de
crueldade e um meio de ganhar visibilidade internacional. Para a primeira-ministra israelense Golda
Meir (Lynn Cohen), que empurra
pessoalmente Avner para a vingança, Munique é mais que uma cena de
crime: é um lembrete, uma advertência, um chamado à defesa armada. Assim, Avner deixa Jerusalém e
sua mulher e viaja para a Europa.
Lá encontra os membros de sua
equipe: o sul-africano sensual Steve
(Daniel Craig); o israelense Carl, de
paletó de tweed e fumando cachimbo (Ciaran Hinds); o suave e cosmopolita comerciante de antigüidades
alemão Hans (Hanns Zischler); e o
introvertido belga fabricante de
brinquedos e bombas Robert (Mathieu Kassovitz).
O caça-terroristas
Em Roma, a equipe segue um intelectual palestino que acaba de traduzir "Scherazade" (que, num toque típico de Kushner, o personagem descreve como "uma narrativa de sobrevivência") e pode ter ligações
com terroristas. Quando chega a hora de Avner enfrentar sua presa, um
homem idoso de mãos trêmulas, o
agente se atrapalha com a arma.
Mais tarde, em Paris, numa seqüência em que Spielberg supera Hitchcock com cortes brilhantes, Avner
mais uma vez quase falha no serviço,
pondo em perigo sua equipe e um
observador inocente.
Se às vezes Bana parece excessivamente delicado para um agente secreto, é principalmente porque, sem
seu olhar ansioso e suas mãos irrequietas, Avner não teria a metade de
sua simpatia ou de sua eficácia retórica. O que o torna memorável, mais
do que um simples personagem de
ação incomumente animado, é que
ele nunca é mais humano do que
quando tem de matar outra pessoa.
É a humanidade de Avner, mesmo
comprometida, que dá a "Munique"
o peso de uma discussão moral,
mais que a hesitante ambivalência
sobre sua missão, além do evidente
esforço para garantir que os terroristas palestinos sejam mais que bandidos sem face (são bandidos com rostos e falas). A discussão, no entanto,
tem pouco a ver com se Israel tem o
direito de existir ou se os palestinos
têm o direito de voltar a sua terra.
Somente isto importa: o sangue
tem seu preço, mesmo quando derramado em justa defesa.
"Munique" é tanto uma meditação sobre ética quanto um filme de
suspense político. Entre a capa, a espada e o travesti, os telefones-bomba e uma verdadeira sopa de letras
de intriga (CIA, OLP, KGB), os anos
passam com crescente desespero e a
equipe vai encolhendo. Forçado a
um novo tipo de êxodo, longe da terra que seria a justificativa para seus
atos, Avner e seus homens vagam
pelo continente que três décadas antes fora o palco do extermínio dos
judeus europeus.
Para esses judeus errantes e controversos, cada esconderijo e ponto
de contato se torna uma ocasião para discutir Israel e a identidade judaica. "Munique" é organizado em
torno de três diálogos cruciais: a discussão da vingança entre Meir e seus
assessores, que termina com ela declarando que toda civilização descobre a necessidade de negociar compromissos com seus próprios valores; uma breve discussão entre Avner e um palestino que prevê a derrota de Israel; e um amargo confronto entre dois israelenses que não
conseguem encontrar um terreno
comum nem na utopia multicultural
chamada Brooklyn.
Com sua visão mortiça da baixa
Manhattan e das Torres Gêmeas, essa cena deixa claro (como se houvesse alguma dúvida) que Spielberg está tão preocupado com os EUA
quanto com Israel.
Spielberg pode dar a impressão de
que quer ser considerado mais que
um simples diretor de Hollywood,
especialmente depois que acrescentou "adulto contemporâneo" a seu
cardápio. Isso faz dele um alvo fácil,
e "Munique" já foi atingido por ataques editoriais. As acusações poderiam ter sentido se o cineasta nos levasse às casas dos terroristas para
dar um certo relativismo moral. Mas
aqui Spielberg não faz nada mais radical do que propor a idéia de que o
diálogo termina quando dois inimigos, feitos reféns pela história empoeirada e o sangue fresco, apertam
suas mãos nos pescoços um do outro. Com as mãos tão ocupadas, você
não consegue segurar seus filhos,
mas, evidentemente, pode mandá-los para a guerra.
Discurso cinematográfico
Seria improdutivo para Spielberg
ater-se demasiadamente aos ataques
contra seu filme: "Munique" é um
entretenimento impactante cheio de
cenários maravilhosos e trabalho de
câmera geométrico. Paletas de cores
diferentes ajudam a manter o fluxo
da narrativa, dando uma vibração
contrastante a cada paisagem: os exteriores esbranquiçados de Israel
são desbotados como velhas fotos de
família, enquanto o verdejante campo francês onde Avner encontra um
misterioso negociante de informações chamado Papa (Michael Lonsdale) tem um apelo sedutor e idílico.
Esse bolsão de civilidade verde do
Velho Mundo é o truque mais hábil
e interessante da obra: um filme
dentro de outro, é uma visão do mal
ao mesmo tempo como romance sedutor e banalidade burocrática.
Avner conhece Papa por meio de
seu filho, Louis, um dândi com ar esnobe e um pastor alemão, interpretado pelo ator francês Mathieu
Amalric. Sua organização fornece
informações em troca de somas fantásticas, mas insiste em não negociar
com governos, filosofia que Papa explica durante uma refeição ao ar livre em seu quartel-general.
Aninhado no luxo da alta burguesia, cercado pelos filhos e por cães
ruidosos, esse auto-intitulado herói
da Resistência se proclama inimigo
de todos os governos. Ao lado desse
homem sofisticado e cansado, com
seus chouriços e seu niilismo do livre
mercado, Avner parece um jovem
rebelde, um amador. Mas também é
um idealista e, ao contrário de Papa,
que só acredita em sua família e no
dinheiro, o israelense se agarra ao
sonho de um lar. E, se esse sonho
continua inatingível, bem, pergunta
Spielberg, que alternativa ele tem?
Manohla Dargis é crítica de cinema e ex-professora da Universidade do Sul da Califórnia (EUA). Este texto foi publicado no
"New York Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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