São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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RASTROS DE ÓDIO

"MUNIQUE", QUE ESTRÉIA NO BRASIL NO DIA 27, PARTE DO ATENTADO CONTRA A DELEGAÇÃO DE ISRAEL NA OLIMPÍADA DE 72 PARA DISCUTIR O CONFLITO NO ORIENTE MÉDIO

MANOHLA DARGIS

Em seu novo filme, "Munique", Steven Spielberg abandona a provocação emotiva e a excitação pop que lhe vêm com tanta facilidade para contar a história de uma campanha de vingança efetuada por Israel contra terroristas palestinos depois da Olimpíada de 1972.
Um olhar impiedoso e brutal dirigido a dois povos que quase se afogam no mar de seu próprio sangue, "Munique" é de longe o filme mais duro da carreira do diretor -e o mais angustiado. Spielberg vem martelando o público com seu virtuosismo desde que faz cinema. Agora, ele convida a uma discussão.
O título do filme sugere que é a história do que aconteceu em Munique em setembro de 1972; e é, mas não só. A maior parte da ação -e esse filme de roer as unhas tem muita ação- transcorre na seqüência imediata do atentado em Munique, depois que 11 reféns israelenses foram assassinados por membros de um grupo terrorista palestino conhecido como Setembro Negro.
Baseado no discutido livro de George Jonas "A Hora da Vingança" e adaptado para o cinema pela dupla improvável Eric Roth e Tony Kushner ("Forrest Gump" encontra "Angels in America"), o filme gira em torno de cinco agentes israelenses que, recrutados para serem os vingadores de um país que oficialmente negará sua existência, esquadrinham a Europa à caça de suspeitos durante meses e anos.
Com sua verossimilhança artística e promíscua utilização de material de arquivo, "Munique" é uma dessas ficções de Hollywood que parecem confundir os que não vêem gradação nas palavras "inspirado em fatos reais". Aqui, esses fatos começam com os membros do Setembro Negro pulando a cerca da vila olímpica e tomando atletas e treinadores israelenses como reféns. A maior parte do que acontece a seguir, incluindo a espera agonizante na vila olímpica e o confronto final catastrófico, surge em etapas, em irrupções que periodicamente cortam a narrativa e perturbam cada vez mais o sono do vacilante núcleo moral da história: um ex-agente do Mossad, o serviço secreto israelense, chamado Avner (o ator australiano Eric Bana).
Para o Setembro Negro, Munique é ao mesmo tempo um teatro de crueldade e um meio de ganhar visibilidade internacional. Para a primeira-ministra israelense Golda Meir (Lynn Cohen), que empurra pessoalmente Avner para a vingança, Munique é mais que uma cena de crime: é um lembrete, uma advertência, um chamado à defesa armada. Assim, Avner deixa Jerusalém e sua mulher e viaja para a Europa.
Lá encontra os membros de sua equipe: o sul-africano sensual Steve (Daniel Craig); o israelense Carl, de paletó de tweed e fumando cachimbo (Ciaran Hinds); o suave e cosmopolita comerciante de antigüidades alemão Hans (Hanns Zischler); e o introvertido belga fabricante de brinquedos e bombas Robert (Mathieu Kassovitz).

O caça-terroristas
Em Roma, a equipe segue um intelectual palestino que acaba de traduzir "Scherazade" (que, num toque típico de Kushner, o personagem descreve como "uma narrativa de sobrevivência") e pode ter ligações com terroristas. Quando chega a hora de Avner enfrentar sua presa, um homem idoso de mãos trêmulas, o agente se atrapalha com a arma. Mais tarde, em Paris, numa seqüência em que Spielberg supera Hitchcock com cortes brilhantes, Avner mais uma vez quase falha no serviço, pondo em perigo sua equipe e um observador inocente.
Se às vezes Bana parece excessivamente delicado para um agente secreto, é principalmente porque, sem seu olhar ansioso e suas mãos irrequietas, Avner não teria a metade de sua simpatia ou de sua eficácia retórica. O que o torna memorável, mais do que um simples personagem de ação incomumente animado, é que ele nunca é mais humano do que quando tem de matar outra pessoa.
É a humanidade de Avner, mesmo comprometida, que dá a "Munique" o peso de uma discussão moral, mais que a hesitante ambivalência sobre sua missão, além do evidente esforço para garantir que os terroristas palestinos sejam mais que bandidos sem face (são bandidos com rostos e falas). A discussão, no entanto, tem pouco a ver com se Israel tem o direito de existir ou se os palestinos têm o direito de voltar a sua terra.
Somente isto importa: o sangue tem seu preço, mesmo quando derramado em justa defesa.
"Munique" é tanto uma meditação sobre ética quanto um filme de suspense político. Entre a capa, a espada e o travesti, os telefones-bomba e uma verdadeira sopa de letras de intriga (CIA, OLP, KGB), os anos passam com crescente desespero e a equipe vai encolhendo. Forçado a um novo tipo de êxodo, longe da terra que seria a justificativa para seus atos, Avner e seus homens vagam pelo continente que três décadas antes fora o palco do extermínio dos judeus europeus.
Para esses judeus errantes e controversos, cada esconderijo e ponto de contato se torna uma ocasião para discutir Israel e a identidade judaica. "Munique" é organizado em torno de três diálogos cruciais: a discussão da vingança entre Meir e seus assessores, que termina com ela declarando que toda civilização descobre a necessidade de negociar compromissos com seus próprios valores; uma breve discussão entre Avner e um palestino que prevê a derrota de Israel; e um amargo confronto entre dois israelenses que não conseguem encontrar um terreno comum nem na utopia multicultural chamada Brooklyn.
Com sua visão mortiça da baixa Manhattan e das Torres Gêmeas, essa cena deixa claro (como se houvesse alguma dúvida) que Spielberg está tão preocupado com os EUA quanto com Israel.
Spielberg pode dar a impressão de que quer ser considerado mais que um simples diretor de Hollywood, especialmente depois que acrescentou "adulto contemporâneo" a seu cardápio. Isso faz dele um alvo fácil, e "Munique" já foi atingido por ataques editoriais. As acusações poderiam ter sentido se o cineasta nos levasse às casas dos terroristas para dar um certo relativismo moral. Mas aqui Spielberg não faz nada mais radical do que propor a idéia de que o diálogo termina quando dois inimigos, feitos reféns pela história empoeirada e o sangue fresco, apertam suas mãos nos pescoços um do outro. Com as mãos tão ocupadas, você não consegue segurar seus filhos, mas, evidentemente, pode mandá-los para a guerra.

Discurso cinematográfico
Seria improdutivo para Spielberg ater-se demasiadamente aos ataques contra seu filme: "Munique" é um entretenimento impactante cheio de cenários maravilhosos e trabalho de câmera geométrico. Paletas de cores diferentes ajudam a manter o fluxo da narrativa, dando uma vibração contrastante a cada paisagem: os exteriores esbranquiçados de Israel são desbotados como velhas fotos de família, enquanto o verdejante campo francês onde Avner encontra um misterioso negociante de informações chamado Papa (Michael Lonsdale) tem um apelo sedutor e idílico.
Esse bolsão de civilidade verde do Velho Mundo é o truque mais hábil e interessante da obra: um filme dentro de outro, é uma visão do mal ao mesmo tempo como romance sedutor e banalidade burocrática.
Avner conhece Papa por meio de seu filho, Louis, um dândi com ar esnobe e um pastor alemão, interpretado pelo ator francês Mathieu Amalric. Sua organização fornece informações em troca de somas fantásticas, mas insiste em não negociar com governos, filosofia que Papa explica durante uma refeição ao ar livre em seu quartel-general.
Aninhado no luxo da alta burguesia, cercado pelos filhos e por cães ruidosos, esse auto-intitulado herói da Resistência se proclama inimigo de todos os governos. Ao lado desse homem sofisticado e cansado, com seus chouriços e seu niilismo do livre mercado, Avner parece um jovem rebelde, um amador. Mas também é um idealista e, ao contrário de Papa, que só acredita em sua família e no dinheiro, o israelense se agarra ao sonho de um lar. E, se esse sonho continua inatingível, bem, pergunta Spielberg, que alternativa ele tem?


Manohla Dargis é crítica de cinema e ex-professora da Universidade do Sul da Califórnia (EUA). Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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