São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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Ícone controverso da cultura pop desde os anos 60, o líder dos Rolling Stones, que se apresentam no Rio em 18 de fevereiro, fala de perseguição política, pressão de patrocinadores, Guerra do Iraque e terrorismo

Mick Jagger na ponta da língua

DIEGO A. MANRIQUE

Em 2 de agosto passado, no aeroporto internacional de Toronto, um avião da Air France saiu da pista de aterrissagem pela esquerda e se incendiou junto de uma estrada. Não houve vítimas fatais, mas as imagens terríveis percorreram o mundo. Os Rolling Stones estavam em Toronto, e quando viram o acidente prenderam a respiração: se o Airbus tivesse deslizado para a direita, teria atingido o hangar onde estava montado o complexo palco que eles usam em sua atual turnê. Dias depois do acidente, Mick Jagger ainda estremecia quando pensava nessa possibilidade.


É uma jogada inteligente da empresa associar-se a nós; de qualquer forma, há muito exagero com os patrocínios: não pagam muito


"Poderíamos substituí-lo, mas talvez fôssemos obrigados a suspender a metade dos shows nos EUA. O incrível é que no avião estava um jornalista francês que vinha nos entrevistar. Teria dado um grande título: "Jornalista musical impede turnê w dos Rolling Stones". (Gargalhada.)
Na entrevista abaixo, Jagger fala também do disco mais recente, "A Bigger Bang", da relação com os patrocinadores e da Guerra do Iraque.
 

Pergunta - Você ainda acredita que os jornalistas musicais odeiam seu grupo?
Mick Jagger -
Acho que eles passaram por toda a gama de sentimentos, que vão do amor até o ódio. Fomos o alvo preferido desde os anos do punk rock; você sabe, éramos os dinossauros. Mas os Sex Pistols se autodestruíram pouco depois e logo reapareceram como um espetáculo de nostalgia, tocando as velhas canções. É um pouco vergonhoso, não? Nós não saímos em turnê quando não temos repertório novo.

Pergunta - Na parte americana da turnê, o patrocinador é a Ameriquest, uma companhia de hipotecas. Curioso, não?
Jagger -
Na verdade, não. Você pode ser um fanático por rock com cabelo até a cintura mas também desejar comprar uma casa ou trocar de apartamento. É uma jogada inteligente da empresa associar-se a nós. De qualquer forma, há muito exagero com os patrocínios: não pagam muito; ganha-se muito mais por permitir o uso de uma canção em um comercial. Mas os patrocinadores investem grandes quantias para anunciar o acordo, digamos que eles vendem a turnê.

Pergunta - Os Stones dão shows privados para grandes empresas ou para milionários. Como se sentem nessas ocasiões?
Jagger -
Costumamos pedir que haja algumas entradas para as pessoas comuns. Mas também não há problema se forem só convidados; se alguém nos paga não sei quantos milhões de dólares para tocarmos em sua festa de aniversário em Las Vegas, você pode supor que vai ter um público disposto a se divertir.

Pergunta - O que aconteceu para que, nesta altura, fizessem um disco tão feroz quanto "A Bigger Bang"?
Jagger -
Evitamos a dispersão e os confrontos. Ninguém entra em gravação com a mentalidade de se aborrecer ou passar um ano trancado. Decidimos limitar o número de pessoas no estúdio; boa parte de "A Bigger Bang" foi feita com três ou quatro músicos e o engenheiro, sem assistentes. Com menos pessoal há menos problemas.
Além disso, Keith [Richards] e eu fizemos a lição de casa: canções quase prontas, arranjos muito aproveitáveis. Hoje a tecnologia permite fundir o processo de composição com o de gravação. Por isso é um disco de rock tradicional feito com métodos modernos.

Pergunta - Encontrei um documento curioso de 1979, quando vocês tentaram entrar na China pela primeira vez. É uma proposta oficial à embaixada chinesa em Washington, na qual os Stones se apresentam como campeões das massas proletárias, açoite da classe alta e não sei mais quantas mentiras...
Jagger -
(Sorriso mefistofélico) Encomendamos o texto a um jornalista e ele exagerou. Mas era muito convincente! O que aconteceu é que me reuni com o embaixador e não consegui agüentar sua hipocrisia: um regime que matou 70 milhões de seus cidadãos por decisões absurdas de Mao e que fazia objeções às minhas letras que falam de sexo... Por favor! E eu ainda não sabia das conseqüências das barbaridades que Mao implementou, como o Grande Salto para a Frente. Você leu sua última biografia ["Mao -The Unknown Story", Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday]? Todos deveriam conhecê-la.

Pergunta - Você viu "Stoned", um filme sobre Brian Jones (um dos fundadores dos Stones, que morreu quatro semanas depois de ter sido expulso do grupo)?
Jagger -
Eu o tenho aqui, me mandaram um DVD, mas ainda não tive tempo de assistir. (Encolhe os ombros.) Se nos negássemos a dar nossa aprovação, teriam dito que pretendíamos esconder algo.
Suponho que continue a teoria alternativa de que ele não se afogou em um acidente em sua piscina; é mais excitante acreditar que foi morto por um dos pedreiros que trabalhavam em sua casa. Com a leitura moralizante: a classe trabalhadora se vinga de um hippie rico. A Inglaterra adora essas coisas.

Pergunta - Na verdade, creio que o ódio aos Rolling Stones e seus amigos era então um sentimento interclassista. Nesses documentos da Scotland Yard que agora foram divulgados, vocês são definidos como "dejetos da sociedade".
Jagger -
Exatamente, dizem "dregs", os resíduos, as fezes que ficam no fundo do vaso ou da garrafa de vinho. Levaram a coisa muito a sério. Denunciei que o policial que me deteve era um corrupto, que colocava um papelote de heroína num registro e depois negociava para que fizesse desaparecer a evidência que havia plantado. Ele foi absolvido, mas depois o afastaram discretamente do cargo. Tudo muito inglês.

Pergunta - Isso de "fezes" se aplica inclusive a defensores seus, como Michael Hayers (advogado, depois promotor-geral com os conservadores) e Tom Driberg (deputado trabalhista). Driberg não era um qualquer: presidiu a Executiva dos trabalhistas e tentou convencê-lo a se apresentar como candidato por seu partido...
Jagger -
A verdade é que estava atraído por mim. Sexualmente, quero dizer. Não escondia sua homossexualidade: ele e seus colegas se reuniam em um lugar chamado The Gay Hussar. (Risos.) Tom, bendito seja, se comprometeu com meu caso, até perguntou no Parlamento pelas humilhações que a polícia me fez passar. E assinou aquele anúncio no "Times" pedindo a legalização da maconha. Poucos políticos atuais se atreveriam a tanto.

Pergunta - Você realmente acalenta a idéia de entrar na política?
Jagger -
Sim, por dez minutos. (Gargalhada.) Nos anos 60, mais que uma disputa entre esquerda e direita, o confronto era entre jovens e mais velhos. E parecia lógico que os jovens estivessem representados no Parlamento. Mas que eu fosse o escolhido... Um absurdo. Mas a proposta me massageou o ego.

Pergunta - Hoje aceitaria algum tipo de cargo no governo?
Jagger -
Hummm... Poderia considerar. Não como o ministro brasileiro (Gilberto Gil), mas como assessor. Mas com algum poder executivo para aplicar decisões. Meu amigo David Puttnam (produtor cinematográfico) ocupou um desses cargos e saiu muito frustrado.

Pergunta - Não quero nem pensar no que diria Keith Richards ao vê-lo no governo: já o criticou quando se transformou em sir Mick Jagger.
Jagger -
Estava enciumado.... Esperava que também lhe oferecessem essa honra, mesmo que fosse só para recusá-la. Keith é mais inglês que eu, mas não foi feito para a vida social.

Pergunta - Você acompanhou as transmissões do "Live 8" [série de concertos realizados para pressionar os principais líderes mundiais a combater a pobreza na África]? Bob Geldof não convidou os Stones?
Jagger -
Sim, ele queria que fizéssemos algo especial (imita Geldof): "Mick, o "fucking" McCartney virá; preciso dos "fucking" Rolling Stones para que haja um "fucking" contraste". Mas era impossível, não estávamos prontos e você não pode ficar mal diante de um público mundial.
Você deve lembrar que há 20 anos, no "Live Aid", Keith e Ronnie (Wood, o segundo guitarrista dos Stones) se apresentaram com Dylan e fizeram ridículo: Dylan não quis ensaiar, não se escutava direito, foi uma vergonha. Mas tenho uma enorme admiração por Geldof e Bono: foi muito inteligente passar dos concertos de caridade para as ações de pressão sobre os líderes do G-8.

Pergunta - Infelizmente, os atentados em Londres fizeram o foco da reunião do G-8 passar para o terrorismo.
Jagger -
Sim, ficou claro que os militantes islâmicos não consideram o destino de seus "irmãos africanos" uma grande prioridade. As bombas em Londres não me surpreenderam: eu tinha falado nisso com meus filhos, fizemos até planos de emergência para uma situação como essa.
Na verdade, no novo disco algumas letras agora parecem proféticas. Mas dava para perceber que ia acontecer alguma coisa: policiais, helicópteros, tanques... Londres ocupada, como Belfast nos piores tempos.

Pergunta - Nos dias que antecederam a invasão do Iraque, você -diferentemente de outras figuras do rock- não se manifestou contra.
Jagger -
Já estou velho para ir a manifestações, fiz isso nos anos 60 e 70. Sentia-me dividido: acabar com Saddam Hussein era um presente para a humanidade, e eu pensava que houvesse um plano coerente para levantar o Iraque. Agora conhecemos o memorando de Downing Street (resumo de uma reunião do governo britânico em 23/7/2002), e fico indignado que Blair já soubesse que o assunto das armas de destruição em massa era simplesmente uma desculpa e que não havia nada previsto para o dia seguinte.

Pergunta - Bem, quais teriam sido suas recomendações?
Jagger -
Bastava lembrar o que aconteceu na Iugoslávia depois da morte de Tito [1892-1980], das forças centrífugas que surgem depois do desaparecimento de um líder forte. No Iraque há pelo menos três grupos irreconciliáveis: os xiitas, os sunitas e os curdos. Ou se estabelece um sistema federado muito bem pensado ou aquilo se desmancha. Só agora os americanos estão descobrindo a realidade do Iraque.
Além disso, os iranianos já estão se infiltrando em todos os níveis do novo Estado iraquiano, ao mesmo tempo em que mandam armas e bombas para a resistência. A coalizão enfrenta agora uma guerra de desgaste para defender um regime que não parece muito preocupado com os direitos das mulheres e das minorias.
A não ser que tomem medidas inteligentes, parte do Iraque acabará transformada em uma república islâmica, um fantoche de Teerã. (Pausa teatral) Desconfio que os Stones nunca chegarão a tocar em Bagdá.

Pergunta - Novo novo disco há um blues ferino chamado "Sweet Neo Con", a primeira canção de um grupo ou solista de primeiro time que ataca diretamente o clã que hoje manda em Washington. Como você se considera um conservador, alguns pensam que se trata de uma jogada publicitária.
Jagger -
Primeiro, sou conservador com "c" minúsculo; não tenho nada a ver com o Partido Conservador de meu país, que me parece bastante imbecil. É possível ser conservador em questões fiscais e tolerante em assuntos morais ou de liberdade de expressão. Detesto especialmente a submissão da política à religião, com esses fundamentalistas cristãos que estão dispostos ao que for, desde que contenham o islã. Me assusta que tenham voltado a utilizar essa palavra espanhola: "Reconquista".

Pergunta - Quando alguém faz críticas ásperas a Bush, ainda mais se for estrangeiro, (a rede de TV) Fox e as rádios de ultra-direita o trituram. Você não tem medo de reações?
Jagger -
Espero que vejam o humor em "Sweet Neo Con". Mas estou preparado. Sempre digo a Keith que não deveríamos nos acostumar a ser tratados como reis em visita de Estado. Na última turnê, cruzando a fronteira do Canadá com os EUA, nos pararam e desmontaram tudo, tudo. Trouxeram até cães farejadores! Há alguns anos, entrando no Japão para promover "Freejack" (filme de 1992 em que Jagger interpreta um caçador de recompensas do futuro), me detiveram e passei um dia explicando ponto a ponto minha ficha policial. Foi interessante, havia julgamentos e detenções que eu tinha esquecido (risos).

Pergunta - Como vai sua produtora de cinema?
Jagger -
Vai indo, tento torná-la rentável produzindo programas de televisão entre um filme e outro. É muito difícil fazer cinema na Inglaterra. Você tenta entrar no circuito de distribuição de Hollywood e se esforçam para mudar seu roteiro: "Precisamos que o protagonista e seu par romântico sejam americanos; seria preferível que se passasse em Baltimore". E você responde: "Olhe, isto aconteceu no campo inglês, os decifradores de códigos eram ingleses" (refere-se a "Enigma", sua versão de um romance de Robert Harris).
Bem, já chega, você já tem bastante material para seu jornal.

Pergunta - Desculpe, mas ainda tenho algumas perguntas. Gostaria que falássemos de mulheres. Diante de sua experiência, o casamento no século 21 tem algum sentido?
Jagger -
Ah, você não vai querer começar esse assunto! Já tive choques demais com as feministas e ultimamente estamos em paz. Acredito, sim, que deveríamos ter mais opções, diferentes fórmulas matrimoniais e patrimoniais. Em muitos casos, o casal monogâmico para toda a vida não funciona. E é só isso o que vou dizer.


A íntegra desta entrevista foi publicada no "El País".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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