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Vício de origem
Paralelo entre darwinismo e marxismo começou cedo, quando o filósofo alemão quis dedicar
"O Capital" ao cientista inglês, que recusou a oferta
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Entusiasmado com "A
Origem das Espécies"
(Itatiaia, 382 págs., R$
70), que neste ano
completa 150 anos de
publicação, Karl Marx [1818-83], que se definia como "admirador sincero" de Charles Darwin, quis dedicar-lhe o seu "O
Capital" (coisa que Darwin diplomaticamente recusou, provavelmente dando-se conta do
potencial explosivo da obra).
O fascínio de Marx era explicável: marxismo e darwinismo
tinham, e têm, muito em comum. Para começar, o darwinismo, ainda que indiretamente, negava o criacionismo, preceito básico da religião, o "ópio
do povo" de Marx; a evolução
das espécies representava uma
concepção essencialmente materialista da natureza, assim
como o marxismo era uma
concepção essencialmente materialista da vida social.
Unanimidade
Do ponto de vista ideológico,
o darwinismo conseguiu uma
rara unanimidade. Para a burguesia, a classe social cuja hegemonia se consolidou no século
19, era uma arma contra a nobreza, o clero, os aristocratas
feudais.
Nada de "direitos divinos",
nada de "sangue azul": na luta
pela vida venceriam os mais aptos, os mais hábeis, os mais espertos, os mais ativos.
Para os socialistas, anarquistas e comunistas, valia o mesmo argumento -só que, para
estes, a classe capaz de construir riqueza, a classe que tinha
futuro era o proletariado.
Podemos dizer, portanto,
que desde o início houve um
darwinismo "de direita" e um
"de esquerda", e essa divisão se
acentuou ao longo do tempo:
uma inevitável rota de colisão
balizada pelo fundamental
conceito evolucionista da sobrevivência do mais apto ("survival of the fittest").
A expressão, aliás, não é de
Darwin, e sim de seu contemporâneo, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), que
pode ser considerado o precursor do neoliberalismo. Spencer
via na luta pela existência uma
forma de "purificar" a raça, mediante a eliminação do velho,
do fraco, do enfermo.
Competição
As ideias de Spencer deram
lugar àquilo que mais tarde se
chamou de darwinismo social,
uma justificativa aparentemente científica para a feroz
competição que caracterizava a
economia de mercado: competição, segundo tal raciocínio, é
coisa natural, e tudo que é natural é bom, uma ideia atacada
pela intelectualidade de esquerda (Richard Hofstadter,
entre outros).
Também correlacionada
com o darwinismo é a eugenia,
termo criado por um parente
de Darwin, Francis Galton
(1822-1911), cujo objetivo era o
de estudar os fatores "capazes
de melhorar ou prejudicar as
características raciais físicas e
mentais das futuras gerações".
O aperfeiçoamento da espécie seria obtido do cruzamento
entre aqueles "naturalmente
bem-dotados". A eugenia acabou associada a teorias raciais,
especialmente na Alemanha
nazista, com os resultados que
se conhecem.
Em 1975 foi lançado um livro
que geraria polêmica: "The Sociobiology - The New Synthesis" (A Sociobiologia - Uma Nova Síntese), escrito pelo entomólogo Edward Wilson.
A sociobiologia objetiva encontrar as bases comuns do
comportamento social de diferentes espécies, inclusive a espécie humana, no que se refere
ao comportamento e à conduta
social.
O egoísmo, diz Wilson, é
adaptativo, preservando o indivíduo e a espécie, mas pode dar
origem ao altruísmo, se este for
igualmente uma questão de sobrevivência.
De novo, a esquerda contra-atacou, argumentando que biologia não é destino, que a cultura pode representar um antídoto contra os implacáveis condicionantes naturais: a disputa
"nature"/"nurture", que continua até hoje.
Outras questões ligadas à herança de Darwin emergiram.
Na União Soviética e entre os
comunistas em geral a evolução
continuou a ser defendida, mas
de um modo peculiar, com ênfase na transmissão
hereditária dos caracteres
adquiridos, segundo as
ideias de um precursor de
Darwin, Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829).
Em "Filosofia Zoológica"
(1809), o francês Lamarck
dizia que, como resultado
da luta pela sobrevivência,
os seres vivos adquiriam
novas capacidades que se
transmitiam a seus descendentes: o pescoço da girafa
teria "esticado" para que o
animal pudesse comer folhas de árvores, e as girafinhas nasciam com pescoços
cada vez mais longos.
Aperfeiçoamento
Defendia essa ideia Trofim Lysenko (1898-1976),
homem forte de Josef Stálin
na área de biologia que rejeitava a genética clássica
como "reacionária". O aperfeiçoamento do ser humano, conseguido pelo socialismo, tenderia a se perpetuar, passando de uma geração à outra, independente
do nascimento aristocrático, da riqueza ou da graça de
Deus.
Aplicadas à produção
agrícola, as teorias de
Lysenko, hoje vistas como
francamente fraudulentas,
resultaram em desastre: durante muitos anos a União
Soviética teve problemas
em alimentar sua gente.
Tudo isto mostra, afinal, o
poderoso efeito que as
ideias de Darwin exerceram
e exercem em nosso mundo. O que é bom lembrar
neste momento em que se
comemoram os 200 anos do
seu nascimento.
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