São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2009

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Vício de origem

Paralelo entre darwinismo e marxismo começou cedo, quando o filósofo alemão quis dedicar "O Capital" ao cientista inglês, que recusou a oferta

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Entusiasmado com "A Origem das Espécies" (Itatiaia, 382 págs., R$ 70), que neste ano completa 150 anos de publicação, Karl Marx [1818-83], que se definia como "admirador sincero" de Charles Darwin, quis dedicar-lhe o seu "O Capital" (coisa que Darwin diplomaticamente recusou, provavelmente dando-se conta do potencial explosivo da obra).
O fascínio de Marx era explicável: marxismo e darwinismo tinham, e têm, muito em comum. Para começar, o darwinismo, ainda que indiretamente, negava o criacionismo, preceito básico da religião, o "ópio do povo" de Marx; a evolução das espécies representava uma concepção essencialmente materialista da natureza, assim como o marxismo era uma concepção essencialmente materialista da vida social.

Unanimidade
Do ponto de vista ideológico, o darwinismo conseguiu uma rara unanimidade. Para a burguesia, a classe social cuja hegemonia se consolidou no século 19, era uma arma contra a nobreza, o clero, os aristocratas feudais.
Nada de "direitos divinos", nada de "sangue azul": na luta pela vida venceriam os mais aptos, os mais hábeis, os mais espertos, os mais ativos.
Para os socialistas, anarquistas e comunistas, valia o mesmo argumento -só que, para estes, a classe capaz de construir riqueza, a classe que tinha futuro era o proletariado.
Podemos dizer, portanto, que desde o início houve um darwinismo "de direita" e um "de esquerda", e essa divisão se acentuou ao longo do tempo: uma inevitável rota de colisão balizada pelo fundamental conceito evolucionista da sobrevivência do mais apto ("survival of the fittest").
A expressão, aliás, não é de Darwin, e sim de seu contemporâneo, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), que pode ser considerado o precursor do neoliberalismo. Spencer via na luta pela existência uma forma de "purificar" a raça, mediante a eliminação do velho, do fraco, do enfermo.

Competição
As ideias de Spencer deram lugar àquilo que mais tarde se chamou de darwinismo social, uma justificativa aparentemente científica para a feroz competição que caracterizava a economia de mercado: competição, segundo tal raciocínio, é coisa natural, e tudo que é natural é bom, uma ideia atacada pela intelectualidade de esquerda (Richard Hofstadter, entre outros).
Também correlacionada com o darwinismo é a eugenia, termo criado por um parente de Darwin, Francis Galton (1822-1911), cujo objetivo era o de estudar os fatores "capazes de melhorar ou prejudicar as características raciais físicas e mentais das futuras gerações".
O aperfeiçoamento da espécie seria obtido do cruzamento entre aqueles "naturalmente bem-dotados". A eugenia acabou associada a teorias raciais, especialmente na Alemanha nazista, com os resultados que se conhecem.
Em 1975 foi lançado um livro que geraria polêmica: "The Sociobiology - The New Synthesis" (A Sociobiologia - Uma Nova Síntese), escrito pelo entomólogo Edward Wilson.
A sociobiologia objetiva encontrar as bases comuns do comportamento social de diferentes espécies, inclusive a espécie humana, no que se refere ao comportamento e à conduta social.
O egoísmo, diz Wilson, é adaptativo, preservando o indivíduo e a espécie, mas pode dar origem ao altruísmo, se este for igualmente uma questão de sobrevivência.
De novo, a esquerda contra-atacou, argumentando que biologia não é destino, que a cultura pode representar um antídoto contra os implacáveis condicionantes naturais: a disputa "nature"/"nurture", que continua até hoje.
Outras questões ligadas à herança de Darwin emergiram. Na União Soviética e entre os comunistas em geral a evolução continuou a ser defendida, mas de um modo peculiar, com ênfase na transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, segundo as ideias de um precursor de Darwin, Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829).
Em "Filosofia Zoológica" (1809), o francês Lamarck dizia que, como resultado da luta pela sobrevivência, os seres vivos adquiriam novas capacidades que se transmitiam a seus descendentes: o pescoço da girafa teria "esticado" para que o animal pudesse comer folhas de árvores, e as girafinhas nasciam com pescoços cada vez mais longos.

Aperfeiçoamento
Defendia essa ideia Trofim Lysenko (1898-1976), homem forte de Josef Stálin na área de biologia que rejeitava a genética clássica como "reacionária". O aperfeiçoamento do ser humano, conseguido pelo socialismo, tenderia a se perpetuar, passando de uma geração à outra, independente do nascimento aristocrático, da riqueza ou da graça de Deus.
Aplicadas à produção agrícola, as teorias de Lysenko, hoje vistas como francamente fraudulentas, resultaram em desastre: durante muitos anos a União Soviética teve problemas em alimentar sua gente.
Tudo isto mostra, afinal, o poderoso efeito que as ideias de Darwin exerceram e exercem em nosso mundo. O que é bom lembrar neste momento em que se comemoram os 200 anos do seu nascimento.


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