São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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Eisenstein nas Américas


O diretor letão, que nasceu há cem anos e morreu há 50, nunca pôde terminar o filme que fez no México


AMIR LABAKI
Da Equipe de Articulistas

O cineasta letão Sergei Mikhailovich Eisenstein teria completado cem anos em 23 de janeiro último. No próximo dia 11, dá-se o cinquentenário de sua morte. Há quase uma década ruiu por terra o sistema que catalisou sua obra primeira: o jovem Eisenstein de "A Greve" e sobretudo de "O Encouraçado Potemkin" (ambos de 1925) foi talvez o mais célebre dos artistas do bolchevismo imediatamente pós-revolucionário. A chama eisensteiniana, porém, continua a brilhar firme nas principais experiências cinematográficas anti-hollywoodianas -Godard e Greenaway à frente. Não surpreende, assim, que Berlim sedie no próximo dia 19 um seminário especial sobre a atualidade da obra de Eisenstein. Nada menos que três filmes inéditos sobre o legado do cineasta serão lançados durante o festival que abriga o encontro.
Um deles intitula-se "Sergei Eisenstein - Fantasia Mexicana", de Oleg Kovalov. É o inacabado "Que Viva México!" continuando a desafiar a história do cinema. Apenas "É Tudo Verdade" ("It's All True", 1942), de Orson Welles, disputa-lhe o troféu de o mais mítico entre os projetos fílmicos interrompidos.
O amor de Welles ao Brasil jamais foi plenamente retribuído. Não parece exagero afirmar que o mesmo vale para a relação entre Eisenstein e a América Latina. Contava Welles que havia sido concebido no Rio de Janeiro. Eisenstein não ia tão longe, mas datava da mais tenra infância seu fascínio inicial pelo México. E, a acreditar em sua principal biógrafa, Marie Seton, acabou morrendo ainda sob o impacto, e a frustração, de sua aventura mexicana (1930-1932).
A trágica saga de "Que Viva México!" foi essencial para a conquista por Eisenstein da admiração de seus colegas latino-americanos. A influência eisensteiniana, no entanto, conheceu picos e vales. Foi decisiva no México dos anos 30 (sobretudo com a dupla Fernandez-Figueroa) e nos mais importantes pólos fílmicos dos anos 60 (o Brasil de Glauber e Hirzsman, a Cuba de Alea e Alvarez, a Argentina de Birri e Solanas, a Bolívia de Sanjínes). Contudo, o legado de Eisenstein não raras vezes viu-se eclipsado pela força da estética neo-realista, por certo a mais disseminada alternativa à gramática hollywoodiana na região.
"Desde que era menino, na Rússia, o México me fascinava", reconheceu Eisenstein numa entrevista dada em julho de 1931 já em meio à produção mexicana. Suas "Memórias Imorais" precisam: o impacto data da leitura de "um conto de aventuras", situado numa certa "fazenda de dona Manuela".
O interesse se aprofundou graças ao contato posterior com a história mexicana, por intermédio das narrativas expedicionárias de Alexander von Humboldt e da experiência da Revolução de 1910, pelas páginas de John Reed (de que, lembre-se, Eisenstein partiu para sua versão do triunfo bolchevique em "Outubro").
Novo passo foi dado com a encomenda do Proletkult (o primeiro braço cultural do bolchevismo vitorioso) para que o jovem Eisenstein fizesse sua estréia como cenógrafo e figurinista teatral numa montagem marcadamente circense de "O Mexicano", a partir do conto de Jack London. São do mesmo período (novembro de 1920/maio de 1921) belos croquis de índios que remetem inequivocamente à "imagerie" de "Que Viva México!".
Duas viagens estreitariam ainda mais os laços. Em 1925, o poeta e dramaturgo russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930) vai ao México, de onde extrai impressões dúbias. O "paraíso primitivo" convive com a tradição vil das corridas de touros. Um contato ao menos vai frutificar: o pintor Diego Rivera (1886-1957). Admirando os murais de Rivera para o edifício da Secretaria de Educação Pública do México, Maiakóvski soa premonitório ao afirmar: "Diego quer casar a arte antiga -com suas características primitivas- com as últimas novidades da pintura modernista francesa (...). São dezenas de paredes com a história do passado, do presente e do futuro do México". De certa forma, será a versão eisensteiniana da mesma síntese, entre arte primitiva e cinema de vanguarda, que será logo depois ensaiado por "Que Viva México!". Mesmo antes da decisiva viagem de Rivera a Moscou, em 1927, a paixão mexicana de Eisenstein só fez crescer. Imagens de esqueletos dançantes no Dia dos Mortos, publicadas numa revista alemã de 1926, convenceram-no de vez: ir ao México torna-se "como uma doença incurável, um desejo irrefreável de ver tudo isso na realidade".
O final da década de 20 assiste à mais radical transição do pensamento cinematográfico de Eisenstein. O pregador da descontinuidade no filme, que advogava a organização de cine-ensaios por meio do choque de "atrações" formadas por breves esquetes (de "A Greve" a "Outubro"), enveredava por um caminho "joyceano" que buscava compatibilizar a representação mais tradicional cobrada pela ortodoxia jdanoviana com experiências como o fluxo de consciência e monólogos interiores (de "O Velho e o Novo" a "Ivan, o Terrível"). A "Ulisses" iria somar-se o impacto da leitura de "A Mentalidade Primitiva", do antropólogo Lucien Lévy-Bruhl, e de "O Ramo de Ouro", de James Fraser.
Estas influências do período parisiense de Eisenstein (1929) coincidem com mais um capítulo da sedução latino-americana. Três livros sobre Buenos Aires -dois de Jean-Jacques Brousson sobre as peripécias platinas de Anatole France e um do jornalista Albert Londres sobre o tráfico de prostitutas- seriam reconhecidos pelo próprio cineasta como o estímulo decisivo para sua vinda à região.
A relação que trava com a escritora e editora argentina Victoria Ocampo (1891-1979) em Nova York, no ano seguinte, resultaria num sonho frustrado de visita à capital do tango. Quatro cartas de Eisenstein a Ocampo restariam como documentos da amizade -e representam duros testemunhos da desilusão mexicana.
O empurrão decisivo acabou sendo a fracassada experiência hollywoodiana de Eisenstein e seus eternos parceiros -Gregori Alexandrov (assistente e roteirista) e Eduard Tissé (fotógrafo). O advento do cinema sonoro e o acirramento do totalitarismo stalinista, no final dos anos 20, motivaram a trupe a realizar uma longa viagem ao exterior. Depois de conferências, estudos e pequenas filmagens pela Europa, em maio de 1930 Eisenstein e equipe foram convidados por Jesse L. Lasky a assinar contrato com a Paramount.
A odisséia americana de Eisenstein durou pouco mais de meio ano. Seus detalhados projetos de versões para "O Ouro", de Blaise Cendrars, e "Uma Tragédia Americana", de Theodore Dreiser, são considerados ousados demais para os rígidos cânones do cinema industrial americano. No primeiro, o ouro surgia como fonte de destruição do homem e da natureza. Para o segundo, Eisenstein descartava o uso de estrelas. O cancelamento do contrato com a Paramount combinou-se com a vitória das pressões de direita para que o departamento de Trabalho dos EUA negasse ao "propagandista do comunismo" a prorrogação do visto de residência.
Charles Chaplin, definido por Eisenstein como seu "único refúgio" americano, aconselha o amigo a procurar o escritor esquerdista norte-americano Upton Sinclair (1878-1968). O projeto de um filme sobre a Revolução Mexicana convence Sinclair a tornar-se produtor. O contrato firmado prevê até quatro meses de filmagem e um orçamento de US$ 25 mil.
O projeto mexicano de Eisenstein logo se revelaria um poema épico de raro paralelo na história do cinema. Instado por Rivera a documentar "como vive o México", Eisenstein parece decidido a casar o documentarismo de Flaherty à antropologia primitivista de Lévy-Bruhl, sob forte inspiração pictórica e temática dos grandes nomes do muralismo mexicano (o próprio Rivera, Orozco, Posada, Siqueiros, Charlot).
"Como essas pinturas", explica a equipe eisensteiniana num texto de setembro de 1931 para as autoridades mexicanas, "nosso filme apresentará a evolução social do México desde os tempos antigos até o presente, quando emerge um país progressista, de liberdade e oportunidades". O "cinema sinfônico" de "Que Viva México" seria estruturado em seis partes, sendo um prólogo pré-hispânico, quatro historietas e um epílogo moderno dedicado à festa dos mortos. Nunca o veremos pronto (as versões que circulam por aí não passam de pálidos rascunhos).
Eisenstein não hesitou em sobrepor o sensual ao social e o mítico ao político. "Que Viva México" foi interrompido antes por desafiar a cartilha realista-socialista de Sinclair e Stálin do que por desrespeitar um contrato, estourando o orçamento e esticando as filmagens a 14 meses. Com os negativos presos num laboratório de Hollywood, em abril de 1932 Eisenstein regressava amargurado a Moscou. Jamais reconquistaria o direito de sequer ver o material filmado.
"Toda esta história me destroçou lindamente o coração", desabafaria Eisenstein numa carta à sua amiga argentina. Em 1948, aos 50 anos recém-completos, um infarto o mataria. À cabeceira de seu leito de morte divisa-se um poncho mexicano.



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