São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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Viagem a Xangri-lá

ESCOLTADA O TEMPO TODO POR MEMBROS DO GOVERNO CHINÊS, REPORTAGEM PRESENCIA A HOSTILIDADE LATENTE CONTRA PEQUIM NAS RUAS DE LHASA; PATRULHAS ARMADAS PERCORREM A CAPITAL TEMENDO QUE REBELIÃO DE UM ANO ATRÁS SE REPITA

Reinhard Krause - 25.fev.09/Reuters
Monges caminham em mosteiro na Província chinesa de Qinghai, vizinha ao Tibete

ALDO PEREIRA
ENVIADO ESPECIAL AO TIBETE

A melhor época para você visitar o Tibete é bem antes dos 76 anos. Sobretudo se tiver, como eu tive, de chegar lá por trem.
Voei de Pequim, quase ao nível do mar, a Xining (altitude de 2.000 metros) e ali, no mesmo dia, embarquei no trem que me levaria a Lhasa (3.700 metros) após 25 horas de confinamento em vagões pressurizados como cabines de avião.
Sair do trem para o ar rarefeito, frio e seco da noite outonal de Lhasa e arrastar a bagagem 200, 300 metros até a van que me aguardava fora da estação foi a experiência mais próxima que já tive de uma reta final de maratona.
O velho coração repetia a cada tranco o lembrete do fisiologista: quem sobe quatro quilômetros de um dia para outro se arrisca a morrer de edema (acúmulo de água) nos pulmões ou no cérebro. O lado bom: se você tiver a sorte de desmaiar logo, quase não dói. Mas altitude mata.

Oxigênio e terremoto
Bem, nem sempre, como provo com este relato de viagem. Não precisei de socorro do dr. Dong, médico que me aguardava de prontidão na companhia de Xi Ping, vice-chefe da divisão local do Gabinete de Informação do Conselho de Estado.
(O bom dr. Dong, contudo, não me liberaria para eu dormir sem antes me examinar no hotel, fazer recomendações e certificar-se de eu ter, na cabeceira, fácil acesso ao suprimento de oxigênio do hotel.)
A missão não envolveu apenas riscos dessa natureza, mas também outros elementos de aventura. A ferrovia transpõe zona de terremotos como o que, no ano passado, matou mais de 70 mil pessoas na vizinha Província de Sichuan.
Pontes com extensão de até um quilômetro e vãos de cem metros se apoiam em pilares fincados na terra congelada. Em muitos trechos, para mantê-la assim firme também no verão, foi preciso assentar os pilares em gigantescos freezers subterrâneos.
O trem passa sem parada nem aviso pela estação ferroviária mais alta do mundo, Tangulla, 5.068 metros acima do nível do mar.
Quem ousasse alguns passos pela plataforma sempre deserta dessa estação fantasma notaria efeitos inquietantes: extravasamento de canetas-tinteiro, explosão de saquinhos plásticos de xampu e outros fluidos, sangramento nasal.
Para caso de exposição acidental a essa altitude mortífera (menos da metade do oxigênio de uma praia), todo passageiro pode acessar máscaras de oxigênio distribuídas pelo trem.
Como escapar ao enregelamento seria outra questão: lá fora a temperatura pode estar -30ºC.
Afora perigos, a viagem requer espírito aventureiro para tolerar o desconforto. Viajei no melhor tipo de cabine então disponível, cubículo exíguo no qual dois beliches acomodam quatro pessoas. Entre eles, vão uns três palmos.
Num dos extremos do corredor do vagão há banheiro "asiático" (do tipo em que, para aliviar-se, a pessoa tem de se agachar ao nível do chão); mas há toalete "ocidental", com vaso, no extremo oposto do carro.
Ocupantes da cabine podem ser pessoas de ambos os sexos e estranhas entre si. Sem privacidade, poucas optam pelo imbróglio de tirar pijama ou roupão da bagagem, ir trocar-se no banheiro, desfilar assim pelo corredor e depois inverter a operação na barafunda do desembarque.
A maioria, parece, se resigna a dormir sem se trocar e se contenta com a sorte, como eu tive, de nenhum dos acompanhantes sofrer de dispnéia nem flatulência noturna.

Vistos negados
Um de meus acompanhantes era Liu Peng, quadro convocado pelo Gabinete de Informação para me servir de intérprete; suas qualificações, contudo, claramente superavam os requisitos dessa função.
Também nos acompanhava Ye Juan, dinâmica secretária-guia-intérprete, fórmula chinesa de eficiência, responsabilidade, simpatia, humor e "no nonsense".
O quarto ocupante da cabine era desconhecido. Acho.
Autoridades chinesas têm negado visto a jornalistas estrangeiros e a muitas outras pessoas que manifestem apoio a reivindicações de independência para o Tibete (algumas correntes, e o próprio dalai-lama, têm proposto também diferentes graus de "autonomia", mas o governo chinês vê nessa aparente concessão mera tática de gradualidade na intenção separatista).
Para os chineses, o forte apoio da mídia internacional e outras manifestações em favor desse movimento irredentista encorajam levantes marcados por furiosas depredações e atentados pessoais, como os de março do ano passado.
Afora a destruição de veículos e propriedades, a rebelião matou um número indeterminado de pessoas (as estimativas variam de menos de 30 a cerca de 200, conforme a fonte de propaganda que as divulgue).
Esse conflito essencialmente étnico (tibetanos contra imigrantes chineses de etnias han, hui ou uigur) poderia repetir-se, talvez até com maior intensidade, na próxima terça, cinquentenário da rebelião que o Exército chinês suprimiu ao cabo de meses de campanha, causando a fuga do dalai-lama para a Índia.
Daí a tensão da atmosfera que eu iria experimentar e daí a preocupação das autoridades em me acompanhar com tanta vigilância, cortês, mas nada concessiva.
O trem serpenteia veloz por dentro de desfiladeiros e túneis (um destes trespassa 1.686 metros do sopé do monte Kunlun), ladeia montanhas augustas e lagos imaculados, cruza rios nascentes e longas planícies, nunca uma árvore à vista, a desolação da paisagem quase lunar exposta nua na luz intensa da atmosfera límpida, tudo vagamente sugestivo de outro mundo.
Enquanto se afunda na introspecção, você conclui: "Ah, estou chegando ao Tibete".
Manhã como tantas em Lhasa. Cada vez mais, Lhasa é hoje cidade chinesa, com o caráter tibetano restrito a certas áreas onde as duas culturas confinam.
Numa dessas confluências étnicas, procissão de milhares de peregrinos e outros devotos percorre toda manhã as ruas que rodeiam o Potala.
Há meio século, essa imponência arquitetônica era venerado palácio de inverno do dalai-lama.
Formado por adeptos do budismo tibetano, o cortejo cumpre esse circundamento ritual de 11 quilômetros no sentido dos ponteiros do relógio; isto é, com o Potala à direita.
(Já adeptos do bön, ordem religiosa com raiz em crenças nativas pré-budistas, circundam lugares sacros em sentido anti-horário.)


A temperatura pode cair dos 40º C ao meio-dia a menos de zero à noite


Rodas de orações
Os mais contritos caminham em silêncio, manuseando rosários e rodas de orações.
As quais, aliás, não são propriamente rodas. As do tipo portátil são cilindros giratórios com aparência de chocalho, contornados por inscrição sagrada, em geral o mantra "Om Mani Padme Hum" ("Ó jóia no lótus", alusão à alegoria da flor que emerge pura da impureza do lodo).
Meneios da mão que empunha o cabo imprimem giros ao cilindro, enquanto pequeno peso, preso ao cilindro por correntinha curta, sustenta a continuidade da rotação.
Cada giro equivale a uma recitação do mantra; e cada recitação, acredita o devoto, rende crédito espiritual no carma. Alguns penitentes entremeiam a marcha com prostrações: param, retesam o corpo de bruços no chão, testa em contato com o solo, braços estendidos à frente, murmuram mantras e se erguem para continuar o ladário que talvez repitam durante horas.
Mesmo protegidas por camadas de calos e certo tipo de sola, as palmas das mãos chegam a sangrar. Solidários, outros participantes dão esmolas aos penitentes, em geral uma nota ou moeda de um yuan (cerca de R$ 0,35).
Muitos dos caminhantes interrompem a marcha diante do Potala para reverência ou prostração. O significado é ambíguo: estarão homenageando budas e outros milhares de ídolos dos oratórios e capelas do palácio-templo? Reverenciando os dalai-lamas ali sepultados? Ou -o que seria legalmente proibido- estarão saudando o dalai-lama atual, que passava invernos ali e hoje vive exilado na Índia, em Dharamsala?
Circundamento ritual ("kora") é costume religioso em muitas partes do Tibete.
Em Lhasa, peregrinos escolhem entre quatro percursos.
O Lingkhor contorna todos os lugares sagrados da antiga capital, percurso de 11 quilômetros que trespassa áreas de trânsito compacto.
O Tsekhor rodeia o Potala.
O Barkhor compreende a extensão de 800 metros da rua circular de nome igual, a mais antiga de Lhasa. Ela contorna o Jokhang, o mais antigo e sagrado templo budista do Tibete.
Nangkhor, o mais curto de todos esses quatro trajetos, é o anel inserido no Barkhor e restrito ao entorno do Jokhang.
Além de via-sacra, a Barkhor é também rua comercial, margeada por barracas onde você pode comprar de amuletos e artesanato até blocos enormes de manteiga e postas de carne de iaque.
No horário de funcionamento dessa feira, a "kora" se dilui na multidão que mistura turistas, devotos, mendigos, punguistas e patrulhas policiais. Prostrações, então, vão concentrar-se no espaço à frente do próprio templo.
Na praça fronteiriça, toda manhã, dois enormes incensórios de concreto ("sangkang") exalam rolos de fumaça e cheiro acre dos ramos de zimbro (parente do cipreste) queimados neles.
Na "kora" que passa a curta distância dali, o ritual se mistura com o social: muitos peregrinos e turistas riem e conversam entre si ou aos celulares.

Abismo cultural
O governo central chinês tem buscado construir entre os habitantes do Tibete uma identidade nacional acima das diferenças étnicas entre tibetanos e povos como os huis e uigures (duas etnias islâmicas) e, sobretudo, com os hans (92% da população da China e participação crescente na demografia tibetana).
Mas a resistência é enorme, evidenciada na raridade dos casamentos interétnicos.
Fuzis automáticos apontados para o chão, mas empunhados, as patrulhas que percorrem Lhasa dia e noite atestam o clima.
Há também evidências menos explícitas de antagonismo latente, certa desarmonia interpessoal nas ruas e praças, restaurantes, shopping centers e outros lugares públicos onde diferentes etnias partilhem o espaço.
Desconfiança e antipatia mútuas, mesmo dissimuladas, dão certo ressaibo à interação de tibetanos com o que a maioria deles parece ver como "invasores de seu país".
A religiosidade tibetana, com suas implicações de dissidência política, também aparta tibetanos e hans. Para estes, por exemplo, como para tantos perplexos ocidentais, a "kora" cotidiana de Lhasa sempre se mostrará desconcertante.
Mais ainda, pelo grau maior de mortificação, é a "kora" de remotos lugares sagrados. Segundo a teoria budista do carma (ato), os atos de cada pessoa terão fatal retribuição, benéfica ou maléfica, na vida futura que lhe couber ao reencarnar.
Com a penitência de circundamento, a pessoa busca mérito que a eleve rumo à libertação da "samsara", o ciclo de reencarnações em que todo ser humano nasce aprisionado.
Muitos também esperam, com a penitência, induzir divindades e espíritos a lhes aliviar adversidades mundanas como atribulações familiares, doenças, agruras financeiras e outras vicissitudes.


As patrulhas percorrem Lhasa dia e noite, fuzis automáticos apontados para o chão


Crença animista
Alguns dos percursos de "kora" cobrem quilômetros a serem cumpridos pelo peregrino sem nenhuma interrupção, sejam quais forem as condições do caminho; neve ou lama gelada, por exemplo, não justificam hesitação em prostrar-se.
Devotos analfabetos podem acrescentar às costas quilos de escrituras sagradas, fiados na crença de que circundamento com essa carga equivale ao mérito de haver lido todos os textos nela contidos.
No ritual de circundar certas montanhas e seus lagos adjacentes, remanesce a crença animista de que tais lugares são moradas de divindades de disposição volúvel, capazes de generosidades ou indizíveis crueldades.
Um peregrino precavido cuida então de secundar o circundamento com a queima de zimbro; com recitação simbólica de mantras e preces; com giro de rodas de orações; com frases ou textos sagrados inscritos em lápides empilhadas; e com bandeirolas de pano coloridas que ele deverá estender em varais na esperança de que o vento "leia" para os deuses as orações impressas nelas.
Um dos mais famosos pontos de circundamento ritual no Tibete é o lago Manasarovar, elemento feminino do "casal" que se completa com o soberbo monte Kailash, uns 20 quilômetros a sua frente.
Para hindus que ali também afluem, o Manasarovar simboliza "yoni" (vulva), enquanto o piramidal Kailash é representação icônica do "lingam", este o elemento fálico da mesma dualidade mística "yang-yin" da filosofia taoísta.
O circundamento do lago compreende um percurso pedregoso e traiçoeiro de 70 a 100 quilômetros (há muitas e sinuosas variantes), quatro a cinco dias de marcha e acampamento, com exigência de boa forma física, sobretudo a estrangeiros não adaptados às altitudes tibetanas.
Não se conhece o número certo de devotos que morreram sem completar o circuito, ou por enregelamento ou por escorregões fatais no gelo ou ainda por algum dos efeitos mortíferos da altitude, que em certos trechos ultrapassa 5.000 m.
No verão, em questão de horas, a temperatura pode cair dos 40 graus ao meio-dia a menos de zero no avanço da noite.
Há quem se contente com a alternativa, tida como válida, de comprar metade do crédito espiritual gerado pelo circundamento cumprido por outra pessoa.
Muitos acreditam que, no centro do lago, frutifica incessantemente uma árvore mágica, invisível e submersa; à medida que amadurecem, os frutos se tornam de ouro e vão caindo ao fundo.
A crença pode refletir a realidade geológica da ocorrência de ouro em certo ponto da periferia do lago. Mas, dizem, desde que o espírito do lago puniu garimpeiros sacrílegos com uma epidemia de varíola, ninguém mais se atreveu à profanadora prospecção.
Fala-se de gente audaz ter feito circundamento ritual do Manasarovar e do monte Kailash na mesma temporada, mas não se sabe de ninguém que haja circundado o Raksas Tal (que tibetanos chamam de "Langak Tso", lago do Diabo), embora apenas estreito istmo separe os dois lagos.
É que budistas e hindus acreditam viver incorporada àquela água salgada, enganosamente límpida e sedutora, uma classe de demônios antropófagos.

Cadáveres aos abutres
O Kailash ("Kang Rinpoche", Jóia da Neve) é uma pirâmide quase toda branca no inverno, mas que no verão expõe mais da rocha negra abaixo da geleira que o coroa. Na maior parte do tempo, o Kailash embuça o pico nas nuvens que se condensam em torno.
Mas a imagem ganha majestade quando se recorta contra o céu limpo, seja iluminado por lua cheia, seja nas horas em que a transparência do ar confere intensidade ao azul do fundo e solenidade inspiradora ao imponente colosso.
Inspiradora, inclusive, de vã cobiça em alpinistas de todo o mundo: a escalada é legalmente proibida em razão de essa montanha ser venerada como a mais sagrada em toda a Ásia.
Para budistas tibetanos, "kora" do Kailash homenageia Demchog (em sânscrito, Chakrasamvara) e sua consorte, Dorje Phagmo (Vajravarahi), deuses residentes no pico.
Para bonistas ortodoxos, porém, a suástica anti-horária que eles apontam como evidente na face sul atesta ser o Tise (como eles chamam o Kailash) a morada da deusa celeste Sipaimen.
Para peregrinos hindus, quem reside no topo do Kailash -para eles monte Meru- é Shiva, um dos deuses da trindade hinduísta. Já fiéis jainistas vão ao que chamam de monte Ashtapada reverenciar o espírito de Rishabanatha, fundador do jainismo.
Outra das peculiaridades que distanciam culturalmente os tibetanos dos demais chineses são seus ritos funerários.
Em Lhasa, como nas demais cidades do Tibete, não há cemitérios: na maioria, os defuntos são "sepultados no ar", processo que descrevo adiante. Exceções: panchen-lamas e outros hierarcas do budismo tibetano têm sido cremados e, suas cinzas, preservadas em estupas.
E estupas do Potala preservam múmias de dalai-lamas.
Apesar de variantes, o processo de embalsamamento começa por evisceração e meticulosa limpeza do cadáver, seguida pela salga. Substância altamente hidrófila, o sal absorve quase toda a água do corpo.
Embora menos que noutros tempos, sal encharcado de fluidos do corpo de um dalai-lama ainda é "princípio ativo" de fórmulas farmacêuticas ("duntsa"), às quais se atribuem miraculosas propriedades curativas e exorcísticas.
Para anular algum aversivo odor remanescente, o cadáver é imerso em cerca de meia tonelada de ervas medicinais, preservativas e aromáticas.
Antes da acomodação definitiva, o corpo ressequido é impermeabilizado com ouro. Isto é, revestido por delgadíssima película de ouro.
Gente comum que morre em Lhasa, contudo, tem primeiro o corpo eviscerado e esquartejado; o esqueleto, depois de descarnado, é moído a golpes de marreta e pesada pedra (usada no esmagamento do crânio).
Um carniceiro investido de poderes rituais, o "tomden", e seus auxiliares se incumbem do "sepultamento no ar" ("jhator" ou "esmola aos abutres"); isto é, de levar o cadáver a ser comido por abutres. O "tomden" conduz a cerimônia em lugar sagrado que a maioria das pessoas evita frequentar, nos arredores da cidade. O ato começa com a queima de incenso de zimbro a alguns metros de onde o corpo será trabalhado.
Abutres avistam e reconhecem, de longe, a fumaça que sobe rápida no ar frio. Logo, centenas deles convergirão para o lugar. Comportamento condicionado, dirá o psicólogo.
Muita gente crê, porém, que espíritos conjurados pela queima do incenso convocam os abutres para a cerimônia.
Enquanto estes não chegam, o "tomden" começa a trabalhar o cadáver debruçado numa laje de pedra. À medida que desmembra o corpo, atira pedaços aos auxiliares, que os vão moendo a golpes de marreta para reduzi-los a pasta. Esta será misturada a farinha de cevada torrada, possivelmente para facilitar aos abutres a deglutição da mistura.
O "tomden" esmaga o crânio a golpes de pesada pedra, desferidos enquanto murmura uma prece. Esse é o único momento em que ele e seus auxiliares não conversam; nos outros, esses homens dessensibilizados pela rotina do ofício chegam a rir enquanto trabalham.
Restos que os abutres rejeitem serão incinerados depois, e a cinza terá de ser esparzida no campo. Rejeição volumosa será interpretada como sinal nefasto que irá exigir esconjuros oficiados por lamas.
A cerimônia com os abutres dura em média cerca de uma hora. Mas os preparativos levam dias, e começam antes mesmo de a pessoa morrer.
A preparação do agonizante, inclusive cantoria e recitação de sutras, segundo os lamas, terá efeito de atenuar o apego à vida e, assim, facilitar o desprendimento da alma.
Consumada a morte, um ou mais monges (dependendo de quanto a família possa gastar com o rito) deverão oficiar cerimônia propiciatória do desprendimento da alma ("namshe") do defunto pelo topo do crânio. (Sem essa precaução, garantem eles, a alma deixaria o corpo pelo ânus e, por consequência, cairia no inferno.)
A partir daí, ninguém terá permissão de tocar o corpo, que deverá permanecer no leito em que tiver morrido, rosto coberto por lenço branco, até que um xamã, adivinho ou vidente determine data e hora propícias para o "sepultamento".


Em Lhasa não há cemitérios: os defuntos são sepultados "no ar"


Estatuto ambíguo
O principal fator de antagonismo e ressentimento dos tibetanos em relação a outras etnias tem sido a aspiração de independência.
O governo chinês alega que em 1950 o Tibete era Província chinesa e que sua intervenção se deu no exercício do mesmo direito antisseparatista que todas as maiores nações do mundo já exerceram.
O caso que se discute perante o júri da opinião pública mundial, portanto, está centrado no acolhimento ou na rejeição do argumento de que o Tibete era Estado soberano, e não Província, quando da ocupação pelo Exército de Libertação Popular (ELP).
De fato, não falta ao Tibete quase nenhum dos elementos de identidade nacional tradicionalmente considerados quando uma nação pleiteia ou assume soberania: população ocupante, por muitas gerações, de território demarcado; caráter nacional definido por elementos próprios como, além da língua, também história, leis, religião e costumes.
Mas, em termos estritamente jurídicos, esses elementos, embora necessários, não são suficientes. Estado soberano pressupõe reconhecimento formal desse status na comunidade de nações. O Tibete, porém, jamais foi reconhecido como Estado soberano por outro de igual status jurídico, como, digamos, Reino Unido e EUA.
No estrito plano formal do consenso internacional, o Tibete é Província chinesa em razão de, pelo menos desde o século 17, ter sido sempre visto como subordinado à China.
Críticas ao governo chinês, onde ocorrem, ficam circunscritas a denúncias de violações de direitos humanos. Nenhum membro das Nações Unidas formaliza endosso ao pleito de independência para o Tibete.
Em perspectiva histórica, o caso é outro. Desde 1949, o governo norte-americano já se movimentava para explorar o tema do Tibete na frente asiática da Guerra Fria.
Com o concurso de dois irmãos mais velhos do dalai-lama, a CIA (Agência Central de Inteligência) financiou, treinou e armou guerrilheiros tibetanos para uma operação de resistência à presença do ELP no Tibete. Da parte dos norte-americanos, o objetivo realista não era os guerrilheiros expulsarem o formidável ELP, e sim a produção de mártires e consequente denúncia de ferocidade comunista.
A visita do presidente norte-americano Richard Nixon à China em 1972 e o subsequente degelo nas relações entre os dois países puseram fim ao programa de guerrilha e desviaram o foco da ação da CIA para a alternativa de propaganda e desinformação.
Desde a década de 1960, a CIA e organizações de fachada canalizavam fundos para a organização de exilados chefiada pelo dalai-lama.
Pode-se compulsar detalhes dos estipêndios da CIA ao dalai-lama no site do próprio Departamento de Estado (www.state.gov/www/about_state/
history/vol_xxx/337_343.html
)
.
O financiamento continua por outras vias. Isso anima a campanha de radicais em favor da quixotesca fantasia de que poderão derrotar o ELP e proceder a uma limpeza étnica de estilo iugoslavo para recriar um "Tibete para os tibetanos".
Patrick French (1966), escritor e historiador inglês que na juventude militou em favor da independência do Tibete, tem hoje outra posição.
Uma das reflexões que o levaram a ela parece ter provindo de uma conversa tida há dez anos com Namdrub, nômade veterano da guerrilha dos anos 1960.
Quando French lhe pediu a opinião sobre a linha dura da comunidade de exilados, Namdrub respondeu: "Pode levá-los a sentir-se bem, mas torna a vida mais difícil para nós [que vivemos no Tibete]. Leva os chineses a criarem mais controles sobre nós. O Tibete é tão importante para os comunistas que eles nem sequer discutirão sua independência".


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