São Paulo, domingo, 08 de março de 2009 |
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Viagem a Xangri-lá
ESCOLTADA O TEMPO TODO
POR MEMBROS DO GOVERNO
CHINÊS, REPORTAGEM
PRESENCIA A HOSTILIDADE
LATENTE CONTRA PEQUIM
NAS RUAS DE LHASA; PATRULHAS
ARMADAS PERCORREM A CAPITAL
TEMENDO QUE REBELIÃO
DE UM ANO ATRÁS SE REPITA
ALDO PEREIRA ENVIADO ESPECIAL AO TIBETE
A melhor época para
você visitar o Tibete é bem antes dos
76 anos. Sobretudo
se tiver, como eu tive, de chegar lá por trem.
Rodas de orações Os mais contritos caminham em silêncio, manuseando rosários e rodas de orações. As quais, aliás, não são propriamente rodas. As do tipo portátil são cilindros giratórios com aparência de chocalho, contornados por inscrição sagrada, em geral o mantra "Om Mani Padme Hum" ("Ó jóia no lótus", alusão à alegoria da flor que emerge pura da impureza do lodo). Meneios da mão que empunha o cabo imprimem giros ao cilindro, enquanto pequeno peso, preso ao cilindro por correntinha curta, sustenta a continuidade da rotação. Cada giro equivale a uma recitação do mantra; e cada recitação, acredita o devoto, rende crédito espiritual no carma. Alguns penitentes entremeiam a marcha com prostrações: param, retesam o corpo de bruços no chão, testa em contato com o solo, braços estendidos à frente, murmuram mantras e se erguem para continuar o ladário que talvez repitam durante horas. Mesmo protegidas por camadas de calos e certo tipo de sola, as palmas das mãos chegam a sangrar. Solidários, outros participantes dão esmolas aos penitentes, em geral uma nota ou moeda de um yuan (cerca de R$ 0,35). Muitos dos caminhantes interrompem a marcha diante do Potala para reverência ou prostração. O significado é ambíguo: estarão homenageando budas e outros milhares de ídolos dos oratórios e capelas do palácio-templo? Reverenciando os dalai-lamas ali sepultados? Ou -o que seria legalmente proibido- estarão saudando o dalai-lama atual, que passava invernos ali e hoje vive exilado na Índia, em Dharamsala? Circundamento ritual ("kora") é costume religioso em muitas partes do Tibete. Em Lhasa, peregrinos escolhem entre quatro percursos. O Lingkhor contorna todos os lugares sagrados da antiga capital, percurso de 11 quilômetros que trespassa áreas de trânsito compacto. O Tsekhor rodeia o Potala. O Barkhor compreende a extensão de 800 metros da rua circular de nome igual, a mais antiga de Lhasa. Ela contorna o Jokhang, o mais antigo e sagrado templo budista do Tibete. Nangkhor, o mais curto de todos esses quatro trajetos, é o anel inserido no Barkhor e restrito ao entorno do Jokhang. Além de via-sacra, a Barkhor é também rua comercial, margeada por barracas onde você pode comprar de amuletos e artesanato até blocos enormes de manteiga e postas de carne de iaque. No horário de funcionamento dessa feira, a "kora" se dilui na multidão que mistura turistas, devotos, mendigos, punguistas e patrulhas policiais. Prostrações, então, vão concentrar-se no espaço à frente do próprio templo. Na praça fronteiriça, toda manhã, dois enormes incensórios de concreto ("sangkang") exalam rolos de fumaça e cheiro acre dos ramos de zimbro (parente do cipreste) queimados neles. Na "kora" que passa a curta distância dali, o ritual se mistura com o social: muitos peregrinos e turistas riem e conversam entre si ou aos celulares. Abismo cultural O governo central chinês tem buscado construir entre os habitantes do Tibete uma identidade nacional acima das diferenças étnicas entre tibetanos e povos como os huis e uigures (duas etnias islâmicas) e, sobretudo, com os hans (92% da população da China e participação crescente na demografia tibetana). Mas a resistência é enorme, evidenciada na raridade dos casamentos interétnicos. Fuzis automáticos apontados para o chão, mas empunhados, as patrulhas que percorrem Lhasa dia e noite atestam o clima. Há também evidências menos explícitas de antagonismo latente, certa desarmonia interpessoal nas ruas e praças, restaurantes, shopping centers e outros lugares públicos onde diferentes etnias partilhem o espaço. Desconfiança e antipatia mútuas, mesmo dissimuladas, dão certo ressaibo à interação de tibetanos com o que a maioria deles parece ver como "invasores de seu país". A religiosidade tibetana, com suas implicações de dissidência política, também aparta tibetanos e hans. Para estes, por exemplo, como para tantos perplexos ocidentais, a "kora" cotidiana de Lhasa sempre se mostrará desconcertante. Mais ainda, pelo grau maior de mortificação, é a "kora" de remotos lugares sagrados. Segundo a teoria budista do carma (ato), os atos de cada pessoa terão fatal retribuição, benéfica ou maléfica, na vida futura que lhe couber ao reencarnar. Com a penitência de circundamento, a pessoa busca mérito que a eleve rumo à libertação da "samsara", o ciclo de reencarnações em que todo ser humano nasce aprisionado. Muitos também esperam, com a penitência, induzir divindades e espíritos a lhes aliviar adversidades mundanas como atribulações familiares, doenças, agruras financeiras e outras vicissitudes.
Crença animista Alguns dos percursos de "kora" cobrem quilômetros a serem cumpridos pelo peregrino sem nenhuma interrupção, sejam quais forem as condições do caminho; neve ou lama gelada, por exemplo, não justificam hesitação em prostrar-se. Devotos analfabetos podem acrescentar às costas quilos de escrituras sagradas, fiados na crença de que circundamento com essa carga equivale ao mérito de haver lido todos os textos nela contidos. No ritual de circundar certas montanhas e seus lagos adjacentes, remanesce a crença animista de que tais lugares são moradas de divindades de disposição volúvel, capazes de generosidades ou indizíveis crueldades. Um peregrino precavido cuida então de secundar o circundamento com a queima de zimbro; com recitação simbólica de mantras e preces; com giro de rodas de orações; com frases ou textos sagrados inscritos em lápides empilhadas; e com bandeirolas de pano coloridas que ele deverá estender em varais na esperança de que o vento "leia" para os deuses as orações impressas nelas. Um dos mais famosos pontos de circundamento ritual no Tibete é o lago Manasarovar, elemento feminino do "casal" que se completa com o soberbo monte Kailash, uns 20 quilômetros a sua frente. Para hindus que ali também afluem, o Manasarovar simboliza "yoni" (vulva), enquanto o piramidal Kailash é representação icônica do "lingam", este o elemento fálico da mesma dualidade mística "yang-yin" da filosofia taoísta. O circundamento do lago compreende um percurso pedregoso e traiçoeiro de 70 a 100 quilômetros (há muitas e sinuosas variantes), quatro a cinco dias de marcha e acampamento, com exigência de boa forma física, sobretudo a estrangeiros não adaptados às altitudes tibetanas. Não se conhece o número certo de devotos que morreram sem completar o circuito, ou por enregelamento ou por escorregões fatais no gelo ou ainda por algum dos efeitos mortíferos da altitude, que em certos trechos ultrapassa 5.000 m. No verão, em questão de horas, a temperatura pode cair dos 40 graus ao meio-dia a menos de zero no avanço da noite. Há quem se contente com a alternativa, tida como válida, de comprar metade do crédito espiritual gerado pelo circundamento cumprido por outra pessoa. Muitos acreditam que, no centro do lago, frutifica incessantemente uma árvore mágica, invisível e submersa; à medida que amadurecem, os frutos se tornam de ouro e vão caindo ao fundo. A crença pode refletir a realidade geológica da ocorrência de ouro em certo ponto da periferia do lago. Mas, dizem, desde que o espírito do lago puniu garimpeiros sacrílegos com uma epidemia de varíola, ninguém mais se atreveu à profanadora prospecção. Fala-se de gente audaz ter feito circundamento ritual do Manasarovar e do monte Kailash na mesma temporada, mas não se sabe de ninguém que haja circundado o Raksas Tal (que tibetanos chamam de "Langak Tso", lago do Diabo), embora apenas estreito istmo separe os dois lagos. É que budistas e hindus acreditam viver incorporada àquela água salgada, enganosamente límpida e sedutora, uma classe de demônios antropófagos. Cadáveres aos abutres O Kailash ("Kang Rinpoche", Jóia da Neve) é uma pirâmide quase toda branca no inverno, mas que no verão expõe mais da rocha negra abaixo da geleira que o coroa. Na maior parte do tempo, o Kailash embuça o pico nas nuvens que se condensam em torno. Mas a imagem ganha majestade quando se recorta contra o céu limpo, seja iluminado por lua cheia, seja nas horas em que a transparência do ar confere intensidade ao azul do fundo e solenidade inspiradora ao imponente colosso. Inspiradora, inclusive, de vã cobiça em alpinistas de todo o mundo: a escalada é legalmente proibida em razão de essa montanha ser venerada como a mais sagrada em toda a Ásia. Para budistas tibetanos, "kora" do Kailash homenageia Demchog (em sânscrito, Chakrasamvara) e sua consorte, Dorje Phagmo (Vajravarahi), deuses residentes no pico. Para bonistas ortodoxos, porém, a suástica anti-horária que eles apontam como evidente na face sul atesta ser o Tise (como eles chamam o Kailash) a morada da deusa celeste Sipaimen. Para peregrinos hindus, quem reside no topo do Kailash -para eles monte Meru- é Shiva, um dos deuses da trindade hinduísta. Já fiéis jainistas vão ao que chamam de monte Ashtapada reverenciar o espírito de Rishabanatha, fundador do jainismo. Outra das peculiaridades que distanciam culturalmente os tibetanos dos demais chineses são seus ritos funerários. Em Lhasa, como nas demais cidades do Tibete, não há cemitérios: na maioria, os defuntos são "sepultados no ar", processo que descrevo adiante. Exceções: panchen-lamas e outros hierarcas do budismo tibetano têm sido cremados e, suas cinzas, preservadas em estupas. E estupas do Potala preservam múmias de dalai-lamas. Apesar de variantes, o processo de embalsamamento começa por evisceração e meticulosa limpeza do cadáver, seguida pela salga. Substância altamente hidrófila, o sal absorve quase toda a água do corpo. Embora menos que noutros tempos, sal encharcado de fluidos do corpo de um dalai-lama ainda é "princípio ativo" de fórmulas farmacêuticas ("duntsa"), às quais se atribuem miraculosas propriedades curativas e exorcísticas. Para anular algum aversivo odor remanescente, o cadáver é imerso em cerca de meia tonelada de ervas medicinais, preservativas e aromáticas. Antes da acomodação definitiva, o corpo ressequido é impermeabilizado com ouro. Isto é, revestido por delgadíssima película de ouro. Gente comum que morre em Lhasa, contudo, tem primeiro o corpo eviscerado e esquartejado; o esqueleto, depois de descarnado, é moído a golpes de marreta e pesada pedra (usada no esmagamento do crânio). Um carniceiro investido de poderes rituais, o "tomden", e seus auxiliares se incumbem do "sepultamento no ar" ("jhator" ou "esmola aos abutres"); isto é, de levar o cadáver a ser comido por abutres. O "tomden" conduz a cerimônia em lugar sagrado que a maioria das pessoas evita frequentar, nos arredores da cidade. O ato começa com a queima de incenso de zimbro a alguns metros de onde o corpo será trabalhado. Abutres avistam e reconhecem, de longe, a fumaça que sobe rápida no ar frio. Logo, centenas deles convergirão para o lugar. Comportamento condicionado, dirá o psicólogo. Muita gente crê, porém, que espíritos conjurados pela queima do incenso convocam os abutres para a cerimônia. Enquanto estes não chegam, o "tomden" começa a trabalhar o cadáver debruçado numa laje de pedra. À medida que desmembra o corpo, atira pedaços aos auxiliares, que os vão moendo a golpes de marreta para reduzi-los a pasta. Esta será misturada a farinha de cevada torrada, possivelmente para facilitar aos abutres a deglutição da mistura. O "tomden" esmaga o crânio a golpes de pesada pedra, desferidos enquanto murmura uma prece. Esse é o único momento em que ele e seus auxiliares não conversam; nos outros, esses homens dessensibilizados pela rotina do ofício chegam a rir enquanto trabalham. Restos que os abutres rejeitem serão incinerados depois, e a cinza terá de ser esparzida no campo. Rejeição volumosa será interpretada como sinal nefasto que irá exigir esconjuros oficiados por lamas. A cerimônia com os abutres dura em média cerca de uma hora. Mas os preparativos levam dias, e começam antes mesmo de a pessoa morrer. A preparação do agonizante, inclusive cantoria e recitação de sutras, segundo os lamas, terá efeito de atenuar o apego à vida e, assim, facilitar o desprendimento da alma. Consumada a morte, um ou mais monges (dependendo de quanto a família possa gastar com o rito) deverão oficiar cerimônia propiciatória do desprendimento da alma ("namshe") do defunto pelo topo do crânio. (Sem essa precaução, garantem eles, a alma deixaria o corpo pelo ânus e, por consequência, cairia no inferno.) A partir daí, ninguém terá permissão de tocar o corpo, que deverá permanecer no leito em que tiver morrido, rosto coberto por lenço branco, até que um xamã, adivinho ou vidente determine data e hora propícias para o "sepultamento".
Estatuto ambíguo O principal fator de antagonismo e ressentimento dos tibetanos em relação a outras etnias tem sido a aspiração de independência. O governo chinês alega que em 1950 o Tibete era Província chinesa e que sua intervenção se deu no exercício do mesmo direito antisseparatista que todas as maiores nações do mundo já exerceram. O caso que se discute perante o júri da opinião pública mundial, portanto, está centrado no acolhimento ou na rejeição do argumento de que o Tibete era Estado soberano, e não Província, quando da ocupação pelo Exército de Libertação Popular (ELP). De fato, não falta ao Tibete quase nenhum dos elementos de identidade nacional tradicionalmente considerados quando uma nação pleiteia ou assume soberania: população ocupante, por muitas gerações, de território demarcado; caráter nacional definido por elementos próprios como, além da língua, também história, leis, religião e costumes. Mas, em termos estritamente jurídicos, esses elementos, embora necessários, não são suficientes. Estado soberano pressupõe reconhecimento formal desse status na comunidade de nações. O Tibete, porém, jamais foi reconhecido como Estado soberano por outro de igual status jurídico, como, digamos, Reino Unido e EUA. No estrito plano formal do consenso internacional, o Tibete é Província chinesa em razão de, pelo menos desde o século 17, ter sido sempre visto como subordinado à China. Críticas ao governo chinês, onde ocorrem, ficam circunscritas a denúncias de violações de direitos humanos. Nenhum membro das Nações Unidas formaliza endosso ao pleito de independência para o Tibete. Em perspectiva histórica, o caso é outro. Desde 1949, o governo norte-americano já se movimentava para explorar o tema do Tibete na frente asiática da Guerra Fria. Com o concurso de dois irmãos mais velhos do dalai-lama, a CIA (Agência Central de Inteligência) financiou, treinou e armou guerrilheiros tibetanos para uma operação de resistência à presença do ELP no Tibete. Da parte dos norte-americanos, o objetivo realista não era os guerrilheiros expulsarem o formidável ELP, e sim a produção de mártires e consequente denúncia de ferocidade comunista. A visita do presidente norte-americano Richard Nixon à China em 1972 e o subsequente degelo nas relações entre os dois países puseram fim ao programa de guerrilha e desviaram o foco da ação da CIA para a alternativa de propaganda e desinformação. Desde a década de 1960, a CIA e organizações de fachada canalizavam fundos para a organização de exilados chefiada pelo dalai-lama. Pode-se compulsar detalhes dos estipêndios da CIA ao dalai-lama no site do próprio Departamento de Estado (www.state.gov/www/about_state/ history/vol_xxx/337_343.html). O financiamento continua por outras vias. Isso anima a campanha de radicais em favor da quixotesca fantasia de que poderão derrotar o ELP e proceder a uma limpeza étnica de estilo iugoslavo para recriar um "Tibete para os tibetanos". Patrick French (1966), escritor e historiador inglês que na juventude militou em favor da independência do Tibete, tem hoje outra posição. Uma das reflexões que o levaram a ela parece ter provindo de uma conversa tida há dez anos com Namdrub, nômade veterano da guerrilha dos anos 1960. Quando French lhe pediu a opinião sobre a linha dura da comunidade de exilados, Namdrub respondeu: "Pode levá-los a sentir-se bem, mas torna a vida mais difícil para nós [que vivemos no Tibete]. Leva os chineses a criarem mais controles sobre nós. O Tibete é tão importante para os comunistas que eles nem sequer discutirão sua independência". Texto Anterior: +(a)utores: E os quadrados sumiram Próximo Texto: Proibição de show do Oasis e leilão de peças chinesas reacendem polêmica sobre Tibete Índice |
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