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+(L)iteratura
O mundo canalha
Mario Vargas Llosa fala do uruguaio Juan Carlos Onetti, "o primeiro escritor moderno
da língua espanhola" e tema de seu novo livro
DO "CLARÍN"
El Viaje a la Ficción" [A
Viagem à Ficção, ed.
Alfaguara, 240 págs.,
21,88, R$ 65] é o novo livro no qual o peruano Mario Vargas Llosa retorna ao ensaio para mergulhar
na obra do narrador uruguaio
Juan Carlos Onetti [1909-94].
Na entrevista abaixo, ele antecipa a análise dos personagens derrotados e do mundo
canalha de Onetti. No reverso
do pessimismo onettiano, Vargas Llosa enxerga o fulgor de
uma criatividade literária que
se destaca como a mais moderna do continente.
PERGUNTA - Há ensaios seus sobre
vários escritores: Joan Martorell,
García Márquez, Gustave Flaubert e,
agora, Onetti. O que lhe proporciona essa intromissão literária e vital
em outros escritores?
MARIO VARGAS LLOSA - Todos esses ensaios nasceram de meu
entusiasmo de leitor. Nunca escrevi ensaios literários sobre
autores que não tivessem me
impressionado muito. E é esse
o caso de Onetti, é claro.
Eu o descobri nos anos 1960,
quando ainda era muito difícil
conseguir suas obras, pois circulavam em edições pequenas.
Lembro-me muito bem da leitura dos primeiros contos seus,
que me impressionaram tremendamente.
Penso que foi um contista extraordinário; há pelo menos
meia dúzia de contos seus que
são verdadeiras obras-primas.
Sempre tive vontade de algum dia ler tudo de Onetti em
sequência, porque ele é um desses autores que, quando lidos
em conjunto, as partes se enriquecem e o conjunto se enriquece com as partes.
E isso aconteceu graças a um
curso que dei em Washington,
durante um semestre. Reli tudo
seu, em sequência, fiz muitas
anotações, me enchi de fichas e,
quando terminei, fiquei com
muito material, que decidi converter neste ensaio.
PERGUNTA - O que mais o impressionou nele?
VARGAS LLOSA - Várias coisas.
Uma, fundamental: creio que
ele é um dos primeiros, senão o
primeiro escritor na língua espanhola a fazer uma literatura
completamente moderna, uma
narrativa moderna. Há Borges,
claro, que é um escritor absolutamente universal.
Mas, para mim, não há nenhum escritor antes de Onetti
que use a técnica narrativa moderna como ele faz e que, além
disso, empregue uma prosa
desligada da prosa tradicional.
Ele inventa uma prosa a partir de uma linguagem oral, uma
prosa que simula a oralidade.
E isso desde seu primeiro romance. Vale lembrar que esse
primeiro romance é dos anos
1930, quando o que prevalecia,
tanto na Espanha como na
América Latina, era uma narrativa muito de costumes, com
ecos da estética modernista.
Então há uma verdadeira revolução nesses textos que
Onetti escreve, que refletem
com grande clareza as leituras
dos grandes narradores de seu
tempo, de Céline, Joyce, depois
Faulkner, que tem tanta influência sobre ele.
Por outro lado, me impressiona muito o mundo tão pessoal de Onetti. É um mundo de
grande autenticidade, evidentemente direcionado ao pessimismo, a uma visão muito negativa da condição humana, das
relações humanas.
PERGUNTA - O sr. diz que "o homem se humaniza quando narra".
Imagino Onetti nessa tribo...
VARGAS LLOSA - Acho que Onetti
era um desses escritores cuja
imaginação nasce da autobiografia. Creio que inventava,
fantasiava, a partir de sua experiência de vida. E sobretudo,
talvez, das limitações, frustrações ou vazios que sentia em
sua maneira de viver.
Havia nele uma contradição
curiosa: por um lado, era um
homem muito inteligente,
muito culto; por outro, era um
homem muito desvalido.
Onetti era uma pessoa, digamos, muito mal preparada para
o que se dá o nome de luta pela
vida. Era um homem que não
fazia concessões, tinha horror a
renunciar a certos princípios
para escalar posições.
Era algo que ele não apenas
detestava como não sabia fazer;
ou seja, na vida real ele estava
condenado a ser sempre muito
marginal, a ter uma existência
mais ou menos medíocre.
Por outro lado, era uma pessoa que sentia muito claramente que havia nele, tanto do ponto de vista intelectual como
moral, uma hierarquia em relação a muitas pessoas que o rodeavam. Acho que com tudo isso ele faz literatura; é um desses escritores que se entregam,
naquilo que possuem de melhor e de pior, no que escrevem.
E por isso penso que toda sua
obra tem uma autenticidade
rara. Não havia nada de impostado nele.
PERGUNTA - O sr. fala dessa espécie
de mundo suplente que se inventa
para sobreviver, como no conto
"Um Sonho Realizado"?
VARGAS LLOSA - Esse é um dos
contos mais belos de Onetti,
uma de suas pequenas obras-primas. Por outro lado, é muito
interessante comprovar o
quanto ele está desligado, culturalmente falando, do meio
que o rodeia. Não há muitos autores desse nível que seja possível identificar numa genealogia
latino-americana.
PERGUNTA - O sr. estabelece vínculos com Robert Arlt.
VARGAS LLOSA - Claro, Arlt é
uma das exceções; Onetti chegou a ter muita simpatia e admiração por ele.
E sem dúvida nenhuma há
um rastro, se bem que em Arlt
tudo fosse muito mais caótico,
mais espontâneo, mais anárquico do que em Onetti. Mas há
uma certa pegada perceptível
na visão um pouco apocalíptica
das coisas, da vida.
De modo geral, porém, é um
autor que, do ponto de vista intelectual, não responde a nada
de seu meio, que não se nutre
de leituras estrangeiras. E, com
isso, elabora um mundo muito
próprio.
PERGUNTA - Há em Onetti uma galeria de derrotados radicais. O sr. vê
pontos de contato entre eles?
VARGAS LLOSA - O interessante,
no caso de Onetti, é que esses
derrotados acabam escapando
por meio da ficção. Todos vivem experiências de derrota
efetivamente radical no mundo
tal como ele é.
Alguns são levados a suicidar-se por isso -há um grande
número de personagens suicidas em Onetti-, mas os que
não se suicidam escapam por
meio da fantasia. Inventam para si mundos puramente imaginários nos quais se refugiam e
conseguem sobreviver.
E penso que é essa a origem
da ficção; creio que começamos
a inventar porque o mundo não
nos parecia suficiente. Ou nos
parecia hostil, não o entendíamos, nos sentíamos golpeados
ou atemorizados por ele.
E então acabamos por encontrar essa fórmula, que era
inventar outros mundos para
viver a ilusão do relato, do relato oral, no princípio, e depois o
relato escrito ou filmado.
Uma das originalidades de
Onetti consiste em que praticamente toda sua obra mostra esse processo em diferentes indivíduos, homens e mulheres.
PERGUNTA - Suponho que, quando
o sr. encarou a leitura das obras
completas de Onetti, se sentia psiquicamente muito bem.
VARGAS LLOSA - (Ri). Bem, claro,
sim. Penso que essa é uma das
razões pelas quais Onetti não
tem sido mais lido, apesar de
seu talento enorme. Porque seu
mundo é um mundo que nos
entristece, nos desmoraliza.
Ao mesmo tempo, porém, ele
tem tanto talento que é possível pensar que o mundo não deve ser tão mau.
PERGUNTA - O sr. aponta as influências de Céline e Faulkner, que
são bastante identificáveis. Mas onde está a de Joyce?
VARGAS LLOSA - O mundo de
Joyce é de uma relação harmoniosa e total entre conteúdo e
forma; uma forma criada absolutamente para expressar esse
mundo complexo, diverso,
fragmentário, totalizante, em
que o exterior, o interior, as
condutas, as motivações, os
atos e os sonhos se misturam
num grande todo.
Bem, penso que é o que faz
Onetti dentro de sua própria
realidade, digamos assim. Há
textos dele em que é muito difícil saber se o que ele está narrando ou o que estamos lendo
está acontecendo ou se está
simplesmente sendo fantasiado pelos personagens.
Em muitos casos, as fronteiras desapareceram.
Essa lição vem muito claramente de Joyce. Joyce foi o primeiro a fazer isso.
PERGUNTA - Existem teorias feministas sobre a visão que Onetti tem
da mulher.
VARGAS LLOSA - Imagino que as
feministas não devam estar
muito contentes com Onetti.
PERGUNTA - Elas criticam sobretudo essa visão coisificada da mulher.
E a sua teoria, qual é?
VARGAS LLOSA - Seu mundo é um
mundo machista, claro, mas
onde os homens, de modo geral, são muito fracos. Em "El
Infierno Tan Temido" [O Inferno Tão Temido], quem é mais
temível: o jornalista ou a atriz?
É a atriz quem concebe a vingança, que ao mesmo tempo
não se sabe se é uma vingança
ou uma busca de recuperação
com uma frieza mental e uma
amoralidade que homem nenhum chega a superar.
Ou seja: essas mulheres são
mulheres também tremendas,
que têm uma capacidade feroz
de resistência às adversidades.
Mas é um mundo que se pode
chamar de machista; não é um
mundo igualitário.
PERGUNTA - Que consolo nos resta
depois de ler Onetti?
VARGAS LLOSA - O consolo da ficção. Sua obra parece destinada
a ilustrar como, por meio da ficção, somos recompensados por
tudo aquilo que nos faz sofrer
ou que nos desmoraliza na vida,
como, ao mesmo tempo, vivemos mais, enriquecemos nossa
experiência, amamos, vivemos
aventuras extraordinárias.
Ou seja, a função da ficção
não é apenas compensatória
-é também enriquecedora da
experiência.
Graças à ficção podemos
converter em realidade apetites, desejos, anseios que, sem a
ficção, ficariam para sempre
frustrados, pois jamais na vida
alguém estará à altura do que
são seus sonhos e seus desejos.
Esse é um tema fundamental, e por isso chamei meu livro
de "A Viagem à Ficção", pois esse é um tema recorrente nos
contos e nos romances.
PERGUNTA - Como ensaísta, ainda
lhe resta algum escritor a abordar?
VARGAS LLOSA - O mundo está
cheio de grandes autores sobre
os quais eu gostaria de escrever.
Mas, bem, não há tempo para
fazer todos os projetos que gostaríamos.
Eu gostaria de escrever sobre
Faulkner, que é o autor que
mais marcou seu tempo, ou sobre Conrad, outro autor que admiro enormemente. E poderia
passar muito tempo lhe dando
uma lista de autores sobre os
quais gostaria de escrever.
Tradução de Clara Allain.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
espanhol podem ser encomendados
pelo site www.casadellibro.com
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