São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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+(L)iteratura

O mundo canalha

Mario Vargas Llosa fala do uruguaio Juan Carlos Onetti, "o primeiro escritor moderno da língua espanhola" e tema de seu novo livro

DO "CLARÍN"

El Viaje a la Ficción" [A Viagem à Ficção, ed. Alfaguara, 240 págs., 21,88, R$ 65] é o novo livro no qual o peruano Mario Vargas Llosa retorna ao ensaio para mergulhar na obra do narrador uruguaio Juan Carlos Onetti [1909-94].
Na entrevista abaixo, ele antecipa a análise dos personagens derrotados e do mundo canalha de Onetti. No reverso do pessimismo onettiano, Vargas Llosa enxerga o fulgor de uma criatividade literária que se destaca como a mais moderna do continente.

 

PERGUNTA - Há ensaios seus sobre vários escritores: Joan Martorell, García Márquez, Gustave Flaubert e, agora, Onetti. O que lhe proporciona essa intromissão literária e vital em outros escritores?
MARIO VARGAS LLOSA
- Todos esses ensaios nasceram de meu entusiasmo de leitor. Nunca escrevi ensaios literários sobre autores que não tivessem me impressionado muito. E é esse o caso de Onetti, é claro. Eu o descobri nos anos 1960, quando ainda era muito difícil conseguir suas obras, pois circulavam em edições pequenas.
Lembro-me muito bem da leitura dos primeiros contos seus, que me impressionaram tremendamente. Penso que foi um contista extraordinário; há pelo menos meia dúzia de contos seus que são verdadeiras obras-primas.
Sempre tive vontade de algum dia ler tudo de Onetti em sequência, porque ele é um desses autores que, quando lidos em conjunto, as partes se enriquecem e o conjunto se enriquece com as partes. E isso aconteceu graças a um curso que dei em Washington, durante um semestre. Reli tudo seu, em sequência, fiz muitas anotações, me enchi de fichas e, quando terminei, fiquei com muito material, que decidi converter neste ensaio.

PERGUNTA - O que mais o impressionou nele?
VARGAS LLOSA
- Várias coisas. Uma, fundamental: creio que ele é um dos primeiros, senão o primeiro escritor na língua espanhola a fazer uma literatura completamente moderna, uma narrativa moderna. Há Borges, claro, que é um escritor absolutamente universal.
Mas, para mim, não há nenhum escritor antes de Onetti que use a técnica narrativa moderna como ele faz e que, além disso, empregue uma prosa desligada da prosa tradicional. Ele inventa uma prosa a partir de uma linguagem oral, uma prosa que simula a oralidade.
E isso desde seu primeiro romance. Vale lembrar que esse primeiro romance é dos anos 1930, quando o que prevalecia, tanto na Espanha como na América Latina, era uma narrativa muito de costumes, com ecos da estética modernista. Então há uma verdadeira revolução nesses textos que Onetti escreve, que refletem com grande clareza as leituras dos grandes narradores de seu tempo, de Céline, Joyce, depois Faulkner, que tem tanta influência sobre ele.
Por outro lado, me impressiona muito o mundo tão pessoal de Onetti. É um mundo de grande autenticidade, evidentemente direcionado ao pessimismo, a uma visão muito negativa da condição humana, das relações humanas.

PERGUNTA - O sr. diz que "o homem se humaniza quando narra". Imagino Onetti nessa tribo...
VARGAS LLOSA
- Acho que Onetti era um desses escritores cuja imaginação nasce da autobiografia. Creio que inventava, fantasiava, a partir de sua experiência de vida. E sobretudo, talvez, das limitações, frustrações ou vazios que sentia em sua maneira de viver.
Havia nele uma contradição curiosa: por um lado, era um homem muito inteligente, muito culto; por outro, era um homem muito desvalido. Onetti era uma pessoa, digamos, muito mal preparada para o que se dá o nome de luta pela vida. Era um homem que não fazia concessões, tinha horror a renunciar a certos princípios para escalar posições.
Era algo que ele não apenas detestava como não sabia fazer; ou seja, na vida real ele estava condenado a ser sempre muito marginal, a ter uma existência mais ou menos medíocre. Por outro lado, era uma pessoa que sentia muito claramente que havia nele, tanto do ponto de vista intelectual como moral, uma hierarquia em relação a muitas pessoas que o rodeavam. Acho que com tudo isso ele faz literatura; é um desses escritores que se entregam, naquilo que possuem de melhor e de pior, no que escrevem.
E por isso penso que toda sua obra tem uma autenticidade rara. Não havia nada de impostado nele.

PERGUNTA - O sr. fala dessa espécie de mundo suplente que se inventa para sobreviver, como no conto "Um Sonho Realizado"?
VARGAS LLOSA
- Esse é um dos contos mais belos de Onetti, uma de suas pequenas obras-primas. Por outro lado, é muito interessante comprovar o quanto ele está desligado, culturalmente falando, do meio que o rodeia. Não há muitos autores desse nível que seja possível identificar numa genealogia latino-americana.

PERGUNTA - O sr. estabelece vínculos com Robert Arlt.
VARGAS LLOSA
- Claro, Arlt é uma das exceções; Onetti chegou a ter muita simpatia e admiração por ele. E sem dúvida nenhuma há um rastro, se bem que em Arlt tudo fosse muito mais caótico, mais espontâneo, mais anárquico do que em Onetti. Mas há uma certa pegada perceptível na visão um pouco apocalíptica das coisas, da vida.
De modo geral, porém, é um autor que, do ponto de vista intelectual, não responde a nada de seu meio, que não se nutre de leituras estrangeiras. E, com isso, elabora um mundo muito próprio.

PERGUNTA - Há em Onetti uma galeria de derrotados radicais. O sr. vê pontos de contato entre eles?
VARGAS LLOSA
- O interessante, no caso de Onetti, é que esses derrotados acabam escapando por meio da ficção. Todos vivem experiências de derrota efetivamente radical no mundo tal como ele é.
Alguns são levados a suicidar-se por isso -há um grande número de personagens suicidas em Onetti-, mas os que não se suicidam escapam por meio da fantasia. Inventam para si mundos puramente imaginários nos quais se refugiam e conseguem sobreviver.
E penso que é essa a origem da ficção; creio que começamos a inventar porque o mundo não nos parecia suficiente. Ou nos parecia hostil, não o entendíamos, nos sentíamos golpeados ou atemorizados por ele.
E então acabamos por encontrar essa fórmula, que era inventar outros mundos para viver a ilusão do relato, do relato oral, no princípio, e depois o relato escrito ou filmado. Uma das originalidades de Onetti consiste em que praticamente toda sua obra mostra esse processo em diferentes indivíduos, homens e mulheres.

PERGUNTA - Suponho que, quando o sr. encarou a leitura das obras completas de Onetti, se sentia psiquicamente muito bem.
VARGAS LLOSA
- (Ri). Bem, claro, sim. Penso que essa é uma das razões pelas quais Onetti não tem sido mais lido, apesar de seu talento enorme. Porque seu mundo é um mundo que nos entristece, nos desmoraliza. Ao mesmo tempo, porém, ele tem tanto talento que é possível pensar que o mundo não deve ser tão mau.

PERGUNTA - O sr. aponta as influências de Céline e Faulkner, que são bastante identificáveis. Mas onde está a de Joyce?
VARGAS LLOSA
- O mundo de Joyce é de uma relação harmoniosa e total entre conteúdo e forma; uma forma criada absolutamente para expressar esse mundo complexo, diverso, fragmentário, totalizante, em que o exterior, o interior, as condutas, as motivações, os atos e os sonhos se misturam num grande todo.
Bem, penso que é o que faz Onetti dentro de sua própria realidade, digamos assim. Há textos dele em que é muito difícil saber se o que ele está narrando ou o que estamos lendo está acontecendo ou se está simplesmente sendo fantasiado pelos personagens. Em muitos casos, as fronteiras desapareceram. Essa lição vem muito claramente de Joyce. Joyce foi o primeiro a fazer isso.

PERGUNTA - Existem teorias feministas sobre a visão que Onetti tem da mulher.
VARGAS LLOSA
- Imagino que as feministas não devam estar muito contentes com Onetti.

PERGUNTA - Elas criticam sobretudo essa visão coisificada da mulher. E a sua teoria, qual é?
VARGAS LLOSA
- Seu mundo é um mundo machista, claro, mas onde os homens, de modo geral, são muito fracos. Em "El Infierno Tan Temido" [O Inferno Tão Temido], quem é mais temível: o jornalista ou a atriz? É a atriz quem concebe a vingança, que ao mesmo tempo não se sabe se é uma vingança ou uma busca de recuperação com uma frieza mental e uma amoralidade que homem nenhum chega a superar.
Ou seja: essas mulheres são mulheres também tremendas, que têm uma capacidade feroz de resistência às adversidades. Mas é um mundo que se pode chamar de machista; não é um mundo igualitário.

PERGUNTA - Que consolo nos resta depois de ler Onetti?
VARGAS LLOSA
- O consolo da ficção. Sua obra parece destinada a ilustrar como, por meio da ficção, somos recompensados por tudo aquilo que nos faz sofrer ou que nos desmoraliza na vida, como, ao mesmo tempo, vivemos mais, enriquecemos nossa experiência, amamos, vivemos aventuras extraordinárias. Ou seja, a função da ficção não é apenas compensatória -é também enriquecedora da experiência.
Graças à ficção podemos converter em realidade apetites, desejos, anseios que, sem a ficção, ficariam para sempre frustrados, pois jamais na vida alguém estará à altura do que são seus sonhos e seus desejos. Esse é um tema fundamental, e por isso chamei meu livro de "A Viagem à Ficção", pois esse é um tema recorrente nos contos e nos romances.

PERGUNTA - Como ensaísta, ainda lhe resta algum escritor a abordar?
VARGAS LLOSA
- O mundo está cheio de grandes autores sobre os quais eu gostaria de escrever. Mas, bem, não há tempo para fazer todos os projetos que gostaríamos.
Eu gostaria de escrever sobre Faulkner, que é o autor que mais marcou seu tempo, ou sobre Conrad, outro autor que admiro enormemente. E poderia passar muito tempo lhe dando uma lista de autores sobre os quais gostaria de escrever.


Tradução de Clara Allain.

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