São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Em "De Volta ao Éden", biólogo americano faz previsões sinistras para a espécie humana

Muito além da clonagem

Marcelo Coelho
do Conselho Editoria

l Sempre me considerei bem moderninho em questões como aborto, seleção de embriões ou engenharia genética. Mesmo a clonagem humana não me assusta muito. Mas este livro de Lee M. Silver, professor de biologia em Princeton, é capaz de dar arrepios no mais avançado dos leitores. Você já ouviu falar em "quimeras humanas"? É mais esquisito do que os clones. Trata-se de seres humanos criados a partir da "fusão" de dois embriões diferentes. Em camundongos, a técnica existe desde 1961. Silver projeta para logo seu uso na espécie humana. Eis o caso hipotético que ele descreve. Duas lésbicas, Cheryl e Madelaine, querem ter uma criança. Não uma adotada. Não uma que seja filha de Cheryl com um homem. Ou de Madelaine. Querem uma criança que de fato misture o patrimônio genético das duas. Nenhum problema. A médica retira óvulos de Cheryl e de Madelaine. Os óvulos são fecundados in vitro com os espermatozóides de um doador escolhido por catálogo. Surgem saudáveis embriões. A médica escolhe um embrião de Cheryl e outro de Madelaine. "Com um empurrão delicado, a doutora Shapiro faz o embrião de Cheryl aproximar-se do de Madelaine. Ao entrar em contato, os dois embriões se colam instantaneamente." O procedimento é repetido com outros embriões. As duas decidem ser mães: um embrião é implantado no útero de cada uma, e ambas ficam grávidas. Um detalhe: não é muito bom que Cheryl e Madelaine tenham cores de pele muito diferentes. Pois o bebê provavelmente nasceria malhado. Como uma vaca ou um dálmata. Silver não se abala muito e discute técnicas que possam contornar esse problema. Outra coisa: se, em vez de Cheryl e Madelaine, tivermos Bob e Jimmy, não há impedimentos de monta para que ambos fiquem grávidos. Embriões não precisam de útero para se desenvolver -a gravidez extra-uterina ocorre em muitas mulheres- e, com dosagem hormonal adequada, qualquer homem poderia engravidar. O procedimento há de ser interessante para transexuais, por exemplo.

Nada antinatural Tudo parece brincadeira ou ficção científica. O mais fascinante no livro de Silver, entretanto, é que seus argumentos são expostos com máxima honestidade e bom senso. Para cada ponto que defende -do aborto às quimeras humanas- o autor tem detalhadas explicações provando que nada do que imagina é tão antinatural assim.
Tome-se o caso da clonagem humana. Em primeiro lugar, a própria natureza produz clones -são os gêmeos idênticos- e não há motivos para alguém se sentir traumatizado com isso. Produzir um clone de si mesmo seria a mesma coisa do que ter um irmão gêmeo vários anos mais moço -que, obviamente, terá experiências de vida distintas e criará sua própria personalidade.
Por que clonar um ser humano? Silver dá exemplos de situações em que isso pode não ser um simples capricho narcisista. Conta um caso real, o de uma estudante chamada Anissa Ayala, vítima de leucemia mielóide. Poderia ser salva por transplante de medula. Ninguém de sua família tinha compatibilidade de tecidos para ser doador. A solução seria os pais de Anissa, já quarentões, terem outra criança. Mesmo assim, só haveria 25% de chance de nascer uma criança capaz de doar tecidos para o transplante. Deu certo. Anissa hoje deve sua vida à irmã, que também está muito feliz.
Ora, se em vez de uma irmã "natural" Anissa tivesse um clone, a chance de transplante seria de 100%, e não de 25%. E a irmã-clone de Anissa ficaria duplamente feliz: não só salvou a vida da irmã, mas deve sua própria vida a ela. Um argumento contra essa clonagem seria o de que não se deve gerar uma criança apenas com um propósito utilitário, como quem compra um remédio na farmácia.
Mas Silver é convincente. Se a irmã de Anissa fosse "descartada" depois do transplante, é óbvio que estaríamos diante de uma imoralidade absoluta. Não parece plausível que isso viesse a acontecer; a clone seria tão amada quanto a original ou como qualquer irmã gêmea deste mundo.
No tocante à seleção de embriões e à engenharia genética, as previsões feitas em "De Volta ao Éden" são bem mais assustadoras. Silver sugere que, daqui a três ou quatro séculos, a espécie humana terminará se dividindo em duas.
Haverá os "genricos", ou seja, frutos de gerações e gerações selecionadas em função de características genéticas desejáveis, e os "naturais", isto é, os filhos de pais pobres e sem acesso à tecnologia. A partir de certo momento, esses dois grupos não mais serão compatíveis. Filhos de um "genrico" com uma "natural" serão estéreis como um jegue ou tão impossíveis de existir como o resultado do cruzamento de um orangotango com uma mulher.
Bem, talvez em 2400 também seja possível cruzar orangotangos e mulheres. Aliás, produzir espermatozóides humanos em testículos de porco é uma possibilidade da qual alguns cientistas, desde já, cogitam seriamente.
Desnecessário dizer que a futurologia de Silver pode ser contestada de inúmeras maneiras. Mas o ponto forte do livro, nesse aspecto, está em apontar o pequeno poder de pseudo-argumentos éticos e religiosos diante do desenvolvimento tecnológico, ainda mais quando aliado ao natural interesse dos pais em ter filhos saudáveis e, digamos, "bem equipados" para a vida competitiva em sociedade. Nunca fomos tão darwinistas.
Diante de possibilidades tão estranhas quanto as discutidas por Silver, o leitor termina no mínimo um pouco nervoso. Daí o tom meio humorístico desta resenha, que não faz justiça à seriedade do livro. "De Volta ao Éden" exige certa paciência do leitor, dada a quantidade de descobertas que tem para explicar e de preconceitos que tem a dissolver. A exposição de pormenores científicos é contudo bastante acessível, e as discussões éticas do livro me parecem conduzidas com grande sensatez. Insensata, mesmo, parece ser a Criação.

De Volta ao Éden
316 págs., R$ 35,00 de Lee M. Silver. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. Ed. Mercuryo (al. dos Guaramomis, 1.267, CEP 04076-012, SP, tel. 0/xx/ 11/ 531-8222).


Texto Anterior: + livros: Um pensamento sem sotaque
Próximo Texto: Um épico da colonização
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.