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Em "De Volta ao Éden", biólogo americano faz previsões sinistras para a espécie humana
Muito além da clonagem
Marcelo Coelho
do Conselho Editoria l
Sempre me considerei bem moderninho em questões como aborto,
seleção de embriões ou engenharia genética. Mesmo a clonagem
humana não me assusta muito. Mas este
livro de Lee M. Silver, professor de biologia em Princeton, é capaz de dar arrepios
no mais avançado dos leitores.
Você já ouviu falar em "quimeras humanas"? É mais esquisito do que os clones. Trata-se de seres humanos criados a
partir da "fusão" de dois embriões diferentes. Em camundongos, a técnica existe desde 1961. Silver projeta para logo seu
uso na espécie humana. Eis o caso hipotético que ele descreve.
Duas lésbicas, Cheryl e Madelaine,
querem ter uma criança. Não uma adotada. Não uma que seja filha de Cheryl
com um homem. Ou de Madelaine. Querem uma criança que de fato misture o
patrimônio genético das duas. Nenhum
problema. A médica retira óvulos de
Cheryl e de Madelaine. Os óvulos são fecundados in vitro com os espermatozóides de um doador escolhido por catálogo. Surgem saudáveis embriões. A médica escolhe um embrião de Cheryl e outro
de Madelaine.
"Com um empurrão delicado, a doutora Shapiro faz o embrião de Cheryl aproximar-se do de Madelaine. Ao entrar em
contato, os dois embriões se colam instantaneamente." O procedimento é repetido com outros embriões. As duas decidem ser mães: um embrião é implantado no útero de cada uma, e ambas ficam
grávidas.
Um detalhe: não é muito bom que
Cheryl e Madelaine tenham cores de pele
muito diferentes. Pois o bebê provavelmente nasceria malhado. Como uma vaca ou um dálmata. Silver não se abala
muito e discute técnicas que possam
contornar esse problema.
Outra coisa: se, em vez de Cheryl e Madelaine, tivermos Bob e Jimmy, não há
impedimentos de monta para que ambos fiquem grávidos. Embriões não precisam de útero para se desenvolver -a
gravidez extra-uterina ocorre em muitas
mulheres- e, com dosagem hormonal
adequada, qualquer homem poderia engravidar. O procedimento há de ser interessante para transexuais, por exemplo.
Nada antinatural
Tudo parece
brincadeira ou ficção científica. O mais
fascinante no livro de Silver, entretanto, é
que seus argumentos são expostos com
máxima honestidade e bom senso. Para
cada ponto que defende -do aborto às
quimeras humanas- o autor tem detalhadas explicações provando que nada
do que imagina é tão antinatural assim.
Tome-se o caso da clonagem humana.
Em primeiro lugar, a própria natureza
produz clones -são os gêmeos idênticos- e não há motivos para alguém se
sentir traumatizado com isso. Produzir
um clone de si mesmo seria a mesma coisa do que ter um irmão gêmeo vários
anos mais moço -que, obviamente, terá experiências de vida distintas e criará
sua própria personalidade.
Por que clonar um ser humano? Silver
dá exemplos de situações em que isso
pode não ser um simples capricho narcisista. Conta um caso real, o de uma estudante chamada Anissa Ayala, vítima de
leucemia mielóide. Poderia ser salva por
transplante de medula. Ninguém de sua
família tinha compatibilidade de tecidos
para ser doador. A solução seria os pais
de Anissa, já quarentões, terem outra
criança. Mesmo assim, só haveria 25%
de chance de nascer uma criança capaz
de doar tecidos para o transplante. Deu
certo. Anissa hoje deve sua vida à irmã,
que também está muito feliz.
Ora, se em vez de uma irmã "natural"
Anissa tivesse um clone, a chance de
transplante seria de 100%, e não de 25%.
E a irmã-clone de Anissa ficaria duplamente feliz: não só salvou a vida da irmã, mas deve sua própria vida a ela.
Um argumento contra essa clonagem
seria o de que não se deve gerar uma
criança apenas com um propósito utilitário, como quem compra um remédio
na farmácia.
Mas Silver é convincente. Se a irmã de
Anissa fosse "descartada" depois do
transplante, é óbvio que estaríamos
diante de uma imoralidade absoluta.
Não parece plausível que isso viesse a
acontecer; a clone seria tão amada
quanto a original ou como qualquer irmã gêmea deste mundo.
No tocante à seleção de embriões e à
engenharia genética, as
previsões feitas em "De
Volta ao Éden" são bem
mais assustadoras. Silver
sugere que, daqui a três
ou quatro séculos, a espécie humana terminará se
dividindo em duas.
Haverá os "genricos",
ou seja, frutos de gerações e gerações selecionadas em função de características
genéticas desejáveis, e os "naturais", isto é, os filhos de pais pobres e sem acesso à tecnologia. A partir de certo momento, esses dois grupos não mais serão compatíveis. Filhos de um "genrico" com uma "natural" serão estéreis
como um jegue ou tão impossíveis de
existir como o resultado do cruzamento
de um orangotango com uma mulher.
Bem, talvez em 2400 também seja
possível cruzar orangotangos e mulheres. Aliás, produzir espermatozóides
humanos em testículos de porco é uma
possibilidade da qual alguns cientistas, desde já,
cogitam seriamente.
Desnecessário dizer
que a futurologia de Silver pode ser contestada
de inúmeras maneiras.
Mas o ponto forte do livro, nesse aspecto, está
em apontar o pequeno poder de pseudo-argumentos éticos e religiosos diante do desenvolvimento tecnológico, ainda mais quando aliado ao natural interesse dos pais em ter filhos saudáveis e,
digamos, "bem equipados" para a vida
competitiva em sociedade. Nunca fomos tão darwinistas.
Diante de possibilidades tão estranhas
quanto as discutidas por Silver, o leitor
termina no mínimo um pouco nervoso.
Daí o tom meio humorístico desta resenha, que não faz justiça à seriedade do
livro. "De Volta ao Éden" exige certa paciência do leitor, dada a quantidade de
descobertas que tem para explicar e de
preconceitos que tem a dissolver. A exposição de pormenores científicos é
contudo bastante acessível, e as discussões éticas do livro me parecem conduzidas com grande sensatez. Insensata,
mesmo, parece ser a Criação.
De Volta ao Éden
316 págs., R$ 35,00
de Lee M. Silver. Tradução de
Dinah de Abreu Azevedo. Ed.
Mercuryo (al. dos Guaramomis,
1.267, CEP 04076-012, SP, tel.
0/xx/ 11/ 531-8222).
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