São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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A busca infinita

O conceito universal do belo entrou em declinio com a modernidade, diz o psicanalista Chaim Katz

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Mesmo com a profusão de padrões de beleza que acompanha a expansão dos mercados de moda e cosméticos, mesmo com campanhas politicamente corretas pela beleza "real", não é possível escapar à imposição midiática da "supermodelo" como exemplo a ser seguido. A opinião é do psicanalista Chaim Samuel Katz, doutor em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"São 20 ou 30 mulheres e homens que representam toda a beleza. Essa é uma construção que leva tempo", disse à Folha Katz, que organizou, com Daniel Kupermann e Viviane Mosé, o livro "Beleza, Feiúra e Psicanálise" (ed. Contra Capa).

 

FOLHA - O que mudou na idéia de beleza ao longo da história?
CHAIM KATZ
- O que chamamos de "conceito" aparece primeiro na obra de Platão, que tenta mostrar que o conceito do belo só teria validade se correspondesse a uma essência no mundo das idéias.
A busca platônica pelo belo, o bom e o justo fica na história do Ocidente, buscar o "belo em si".
Com as grandes religiões, o belo situa-se sempre fora da experiência sensível.
Seria o divino aquilo que o humano tem como referência e que tenta alcançar.
Kant [1724-1804] realiza uma virada, dizendo que é impossível ter uma regra universal acerca do belo, pois todo juízo a respeito do belo é singular, determinado pelo gosto; não há mais uma determinação universalizante.
Ao mesmo tempo, para Kant, apesar de o gosto ser singular, todo mundo tem faculdades semelhantes; a decisão sobre o que é belo se rompe com a universalização, mas as condições são universalizáveis.
A mim interessou a descrição de Michel Foucault sobre Erasmo [c. 1466-1536].
No livro "Elogio da Loucura", de Erasmo, não há mais essa universalização. Para um homem bem velho que tem dinheiro, por exemplo, essas questões sobre o belo não aparecem. A loucura interna a cada um, sim, é universal.

FOLHA - Que paralelo podemos fazer entre essas formulações filosóficas e a psicologia?
KATZ
- Diante da afirmação kantiana há os trabalhos dos românticos, como Fichte [1762-1814] e Schelling [1775-1854], que enfatizam as experiências subjetivas sobre a beleza.
A decadência física e a doença passam a ser respeitadas como uma beleza do sujeito que corresponde a um lado "sombrio", uma beleza que é alegre, mas não feliz.

FOLHA - E qual o papel do belo na arte moderna?
KATZ
- O que se chama de arte moderna não busca mais estabelecer o belo, mas expandir as experiências reais.
Um homem como Picasso, digamos, que teve seu período belo, em que ilumina situações -por exemplo em 1900, 1905-, depois vai procurar expressar virtualidades que não estão visíveis aos olhos, a não ser quando o artista as mostra.
O belo, como conceito, já não tem a mesma eficácia.

FOLHA - O que antes era uma relação de interpretação psicológica e sensação fica de lado em favor de uma comunicação mais lógica?
KATZ
- Walter Benjamin [1892-1940] ajuda a compreender a contemporaneidade: ele mostra que há perda daquela experiência estética antiga, que tratava de produzir um objeto único que teria uma repercussão universal no sujeito, que ainda estaria ligada à experiência religiosa.

FOLHA - Assim, se desenvolveriam padrões de beleza na arte, como hoje falamos em padrões de beleza na moda?
KATZ
- Quando se produz um novo modo de sensibilidade, cria-se um padrão. Os utensílios, o ambiente, o modo de vestir começam a se produzir com um novo modelo.

FOLHA - O padrão de beleza é, portanto, mutável...
KATZ
- Essa idéia da mutabilidade é de Gabriel Tarde [sociólogo francês, 1843-1904]: as relações é que produzem o objeto.
O sociólogo francês Gilles Lipovetsky mostra que a moda das classes mais possuídas termina por permear todos os grupos sociais e passa a ser um modelo para a reprodução e a feitura de novos padrões.
E com isso entra a questão do corpo, desde a idéia da eugenia até o modelo do que deveria ser a vida social.
Há quem diga que o modelo de eugenia nasceu com o inglês Francis Galton [1822-1911], o pai dos testes de inteligência. Ele propõe famílias como a dele como modelo.

FOLHA - Há experimentos em que são apresentadas fotografias a voluntários, e, segundo os resultados, rostos mais simétricos são considerados mais bonitos. Que pensa dessa definição de beleza?
KATZ
- Para mim, essa história passa por algo que os alemães, desde 1870, aproximadamente, quiseram impor como um padrão de beleza.
Tinham uma ciência, a fisiognomonia, em que o sujeito era lido, perfilado, pelo modo de ser do rosto, das posturas corporais, da cor da pele etc.
Se a ciência tem experiências que mostram essa percepção da beleza, eu me resguardo para poder pensar que a beleza é uma conquista, e não um dado genético. Ela se conquista dentro de um grupo social; há inúmeras batalhas para impor padrões.

FOLHA - E a juventude? Hoje, as pessoas querem parecer mais jovens, e no limite a aparência pueril é um ideal. O sr. lembra, em "Beleza, Feiúra e Psicanálise", que Erasmo iguala velhos e crianças como fora do padrão comum...
KATZ
- Mas a criança hoje é a chamada "criança sábia", que aos dois anos de idade já escreve ao computador. Há uma mimetização das roupas infantis, da comida infantil.
É uma tendência, mas ser tendência não quer dizer que se trate de um objeto único.
Há outras tendências, como a internet. Quando pessoas se conhecem pela internet, a beleza aparece na escrita, no modo de se expressar.
Temos casos, em consultório, de namoros em que as pessoas, quando chegam a se ver, ficam muito decepcionadas.

FOLHA - Em que direção atua a construção midiática da beleza?
KATZ
- Sou um pouco pessimista. Atua num sentido de restrição porque exige do "eu" do sujeito que se recomponha permanentemente.
Mas também aprendi que as modas vão se fazendo e precisam ampliar seu alcance, seu mercado e, com isso, também conservam padrões. Obrigam o sujeito a se refazer e a ter uma imagem de si sempre voltada para si -mas ele nunca se conhece direito.
É sempre uma luta muito difícil com o que deve ser o corpo para corresponder a um padrão.

FOLHA - Que elementos são usados para construir o padrão?
KATZ
- Tem que haver algum tipo de homogeneidade nos interesses partilhados entre produtores e consumidores.
Não dá para marcar esses interesses apenas psicologicamente -essa subjetividade é produzida. Os marqueteiros sabem produzir o consumo mas também respondem ao desejo que produzem.

FOLHA - A publicidade e o cinema tendem mais a promover a mutabilidade e pluralidade do belo ou tentam congelar o padrão?
KATZ
- Não consigo encontrar na contemporaneidade uma forma de escapar aos modelos de beleza. São 20 ou 30 mulheres e homens que representam toda a beleza subsumível numa figura. Essa é uma construção que leva tempo. Falar em beleza média é uma coisa ilusória.

FOLHA - Que pensa das campanhas voltadas às "mulheres comuns"? Acha que é hipocrisia?
KATZ
- É uma produção, como quando se pega o cabelo das brasileiras para alisar, que é uma produção que vende e que caminha em direção a um padrão dolicocéfalo.
Quando um marqueteiro abre esse campo, abre o campo do consumo. Com isso há a degradação de um padrão e o realce de outro, digamos, disso que você chamou "pessoa comum".

FOLHA - Acha que isso representa uma corrente tentando induzir uma beleza politicamente correta?
KATZ
- Acho que sim. É na Dove que isso aparece. Nas novelas, padrões são louvados e depois desaparecem. São permanentemente substituíveis.

FOLHA - E quando a mídia diz para a mulher se sentir bela como é? As mulheres vão ficar satisfeitas?
KATZ
- A conquista da beleza é infinita. As mulheres não vão ficar satisfeitas nem os homens. É isso que produz a beleza: o movimento incessante na busca de uma perfeição que não é nem definida.

FOLHA - A beleza é hoje a grande moeda de troca para o indivíduo contemporâneo?
KATZ
- Não diria isso. É uma grande moeda de troca, mas continuo achando que as relações de poder ainda são a grande moeda. Mas fui tirar uma fotografia para passaporte e me perguntaram se não queria pagar mais para apagar marcas do meu pescoço na foto!


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