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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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+ sociedade

O escritor americano comenta as marcas do pluralismo religioso em seu país, a "nação mais devota do mundo"

SOMOS INFIÉIS?

por E.L. Doctorow

Ultimamente temos sido chamados de infiéis. No entanto talvez sejamos a nação mais devota do mundo. Tanto Tocqueville quanto Dickens, quando estiveram aqui dando uma olhada em nós, ficaram surpresos com a quantidade de Deus que havia na sociedade americana. Na verdade, o infiel não é necessariamente um descrente; ele também pode ser um crente com o uniforme errado. Mas, diante da variedade de práticas religiosas existentes em nosso país, incluindo a do islamismo, acredito que o termo "infiel" como tem sido aplicado a nós nos últimos tempos provavelmente não se refere a uma determinada religião que possamos adotar como nação, mas ao fato de, entre nossa população de 290 milhões, adotarmos todas elas.

Supermercado
É claro que a maioria de nossas religiões, incluindo o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e o budismo, chegou aqui em épocas diferentes, vinda de outras partes do mundo. Foram vulneráveis, como costumam ser as religiões, a tantas fraturas denominacionais a ponto de oferecer a um potencial paroquiano um virtual supermercado de opções espirituais. Algumas de nossas religiões -o mormonismo, a ciência cristã, o antropomorfismo dos nativos americanos- foram inventadas ou reveladas aqui mesmo. E, se pensarmos, mesmo casualmente, no desfile de religionários criativos e influentes em nossas terras -dos colonizadores Anne Hutchinson e Roger Williams, Jonathan Edwards e Cotton Mather, a nossos cidadãos evangélicos Aimee Semple McPherson, Billy Sunday, Father Divine e Billy Graham-, perceberemos imediatamente que deixamos de fora os adventistas, os milleritas, os shakers, os swedenborguianos e os perfeccionistas do século 19, para não falar nos estádios cheios de noivos da Igreja da Unificação do reverendo Moon ou dos sectários suicidas de Jim Jones ou do desafortunado Ramo Davidiano, em Waco, Texas, ou dos crentes dos Portões do Paraíso que se castraram e tiraram as próprias vidas para embarcar no cometa Hale-Bopp quando ele passou voando em 1997. Um dos debates menos brilhantes entre os teólogos é sobre a distinção entre uma religião e um culto. Mas de modo geral nossas religiões ou cultos religiosos testemunham a profunda sede americana por conexão celestial. Queremos uma libertação espiritual da sociedade que criamos a partir do humanismo secular. Que nosso país encharcado de Deus é, pela ciência política, secular pode ser indicado pelo fato de que a palavra que denota o estado de ser infiel, "infidelidade", traz a nossas mentes não uma violação da fé no verdadeiro Deus, mas uma violação do contrato de casamento entre simples mortais. Maridos traidores e mulheres adúlteras podem ser considerados imorais e tratados com desprezo ou pena, mas geralmente não são considerados infiéis. O termo, porém, pode ser justamente aplicado a todos, incluindo os mais pios e monógamos dentre nós, devido a um grande pecado cometido mais de 200 anos atrás, quando a religião e o Estado americanos foram separados e todo culto foi reservado à vida privada. Foi Jefferson quem disse: "Nossos direitos civis independem de nossas opiniões religiosas assim como de nossas opiniões sobre física ou geometria". E, embora seja exatamente devido a esse princípio de liberdade religiosa que desfrutamos desse constante furor de orações e cantos, estudos e jejuns, confissão e expiação, exaltação e pregação, danças e banhos, tremores e convulsões, abstenção e ordenação, surge um paradoxo dessa expressão de nossa democracia religiosa: se vocês extraíram a ética básica da invenção religiosa e encontraram o mecanismo para instalá-la nos estatutos da ordem secular civil, como fizemos em nossa Constituição e em nossa Carta de Direitos, mas relegaram toda doutrina, rito e ritual, todos os símbolos e práticas tradicionais aos recintos da vida privada, estão dizendo que não há um caminho comprovado para a salvação, há apenas tradições. Se vocês relegam as antigas histórias às opções pessoais de adoração particular, admitem que o inefável é inefável e em termos de um possível triunfalismo teológico vale-tudo.

Ofensa ao fundamentalista
Nosso pluralismo tem de ser uma profunda ofensa ao fundamentalista, que por definição é um absolutista intolerante de qualquer forma de crença, exceto a dele, de qualquer história, exceto a dele. Em nossa democracia desordenada, a fé religiosa fundamentalista se organizou com perspicácia política para promulgar leis que minariam exatamente os princípios seculares humanistas que incentivaram seu florescimento em liberdade. É claro que raramente houve um período em nossa história em que Deus não tenha sido invocado a marchar. Os abolicionistas condenaram a escravidão como um pecado contra Deus. O Sul alegou autoridade bíblica para possuir escravos. A desobediência civil do movimento pelos direitos civis de Martin Luther King Jr. extraiu sua força da oração e dos exemplos de moral cristã, enquanto a Ku Klux Klan e outros grupos de supremacia branca invocavam Jesus como padroeiro de seu racismo. Mas houve uma diferença crucial de ênfase entre essas invocações tradicionais e as ações politicamente astutas e bem organizadas nos últimos anos dos líderes do movimento conhecido como Direita Cristã, que nem recorrem tanto à fé para justificar sua política como recorrem a um país que certifique sua fé.

Punição ao secularismo
O fundamentalismo realmente não pode fazer nada -é absolutista e não pode se comprometer com nada, nem mesmo com a democracia. Não é de surpreender que, imediatamente depois do atentado ao World Trade Center e ao Pentágono, dois destacados fundamentalistas cristãos o teriam explicado como uma punição justificada de Deus a nosso secularismo, nosso libertarismo civil, nossas feministas, nossos cidadãos gays e lésbicas, nossos provedores de aborto e tudo e todos que sua fé fundamentalista condena.
Honrando dessa maneira os assassinos de quase 3.000 americanos como agentes da justiça divina, eles estabeleceram sua consanguinidade com o princípio da guerra justa em nome de tudo o que é sagrado e fizeram uma declaração de fidelidade ao ideal de governo teocrático de um texto sagrado qualquer.
Não apenas em outras terras somos considerados uma nação de infiéis.


E.L. Doctorow é escritor norte-americano, autor de, entre outros, "A Grande Feira" e "Billy Bathgate" (Companhia das Letras). O texto acima foi extraído de "Reporting the Universe" (Harvard University Press). Copyright: E.L. Doctorow, 2003.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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