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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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O PORTO SEGURO DA FILOSOFIA

1. Embora eu tenha tido uma excelente oportunidade, iniciando-me na leitura de Wittgenstein já no ano escolar 1961-2, na França, com um curso de meu professor Gilles Granger (o primeiro a lá ser ministrado sobre nosso autor), só muito mais tarde, nos anos 80, viria a descobrir a importância central de sua obra, graças à ajuda de colegas como Luis Henrique L. dos Santos, Balthazar Barbosa Filho e Arley Ramos Moreno (mas também de meu filho, Bento Prado Neto). Nada em minha formação parecia levar-me aonde hoje estou, mesmo se, como aluno do [José Arthur] Giannotti, em 1956, tenha pensado em consagrar-me à filosofia da matemática, num projeto que sensatamente deixei de lado muito rapidamente. Desde antes de entrar na universidade, minhas obsessões pessoais misturavam filosofia, poesia e política num único bloco. É claro que estava assim condenado a ceder à fascinação da escrita e da prática de Sartre. Disciplina e vontade de autocrítica fizeram-me escolher como objeto de minha tese a obra de Bergson, que se me apresentava como o anti-Sartre por excelência (ignorava então que Sartre descobrira a filosofia justamente por meio de Bergson). Mas, sendo uma análise imanente da obra de Bergson, minha tese retomava indiretamente os debates contemporâneos (principalmente os textos póstumos de Merleau-Ponty): subjetividade, negatividade, temporalidade. Obrigado ao exílio em 1969, na França dei continuidade a meu trabalho, visando agora a questão da subjetividade na sua relação com a linguagem, ou seja, estudando a concepção da linguagem não como representação, mas como práxis e como horizonte da intersubjetividade, tal como se exprime na obra de Rousseau. Foi, portanto, a influência de vários filósofos (Bergson, Sartre, Merleau-Ponty, todos franceses, como é de notar), ao longo de minha formação, que me levou de volta ao filósofo austríaco. Sem o saber, estava preparado, no fim dos anos 70, a retornar à leitura do filósofo que começara a estudar 19 anos antes sob orientação de Granger. Estranho itinerário? De qualquer maneira foi o meu, e talvez não falte sentido nessa ruminação permanente, nessa constante tentativa de pensar o mesmo de uma maneira outra (que é a definição heideggeriana da filosofia).

2. Compreende-se, assim, a importância das aporias wittgensteinianas sobre o estatuto do Sujeito: daquele "mínimo de reflexividade" sem o qual não há projeção de um estado de coisas numa proposição (cf. L.H.L. dos Santos) do "Tractatus" até aquele sujeito que, exercendo sua liberdade por meio da prática da variação imaginária, dissolve as ilusões "platônicas". A idéia do "ver como" não seria um retorno ao puro pháinestai, em seu essencial pluralismo, que Platão queria reduzir ao monismo do eidos? Mas, sobretudo, cumpre assinalar a importância e a originalidade dessa nova "dedução transcendental da apercepção", entre os modelos opostos de Peter Strawson [1919] e de Heidegger, tanto em seus textos sobre Kant como em suas obras de "metafísica descritiva" ou de "ontologia fundamental". Daí o lugar privilegiado que Wittgenstein deverá ocupar no livro sobre "A Ipseidade e Suas Formas de Expressão" que estou começando a escrever.

3. É claro que posso distinguir, dentre meus contemporâneos, aqueles que caminham na mesma direção que busco e aqueles aos que me oponho mais frontalmente. Não se trata, no caso da filosofia, da oposição entre amigos e inimigos. Leio com mais atenção aqueles de que discordo, para verificar se tenho de fato razão ou bons argumentos para me opor a eles. Falo essencialmente dos relativistas (ou os céticos, como meu bom amigo [Oswaldo] Porchat) e dos naturalistas (especialmente aqueles que querem "naturalizar" a fenomenologia através das ciências cognitivas) que definem os dois escolhos que nossa nau deve evitar, para reencontrar o porto seguro da filosofia, depois de errar pelo oceano infinito das aporias.


Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp).


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