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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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O ILUMINISMO CONTRA-ATACA

1. Sem dúvida, Marx. Mas houve várias etapas na apropriação de Marx no Brasil. Passei por quase todas, menos pelo stalinismo, que sempre me inspirou uma franca aversão. Eu estava preparado para uma leitura hegelianizada de Marx graças às aulas sobre a "Fenomenologia do Espírito" [de Hegel], dadas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) por esse extraordinário professor, totalmente inocente de simpatias marxistas, que foi Jerzy Zbrozek. Essa predisposição, somada à influência da vaga existencialista que chegara ao Brasil nos anos 50, me levou a achar que o "verdadeiro" Marx era o dos "Manuscritos Econômico-Filosóficos", de 1844, profeta de um marxismo humanista, misto de Hegel e de Feurbach, com laivos de Kierkegaard, que faziam com que o conceito de alienação parecesse mais importante que o de mais-valia. Depois descobri Althusser, que me convenceu de que tudo isso pertencia à fase metafísica de Marx, de que o Marx que contava era o posterior ao "corte", o Marx duro e puro do materialismo histórico. Foi nessa fase que passei a ler sistematicamente "O Capital". Mas as sucessivas autocríticas de Althusser, motivadas em parte por sua ligação com o Partido Comunista francês, me levaram a buscar outros rumos, que assumiram, no que diz respeito ao marxismo, a forma de um interesse crescente por Gramsci e mais tarde por Walter Benjamin e pela Escola de Frankfurt -Marcuse, Adorno e Horkheimer.

2. Não se pode falar em um só filósofo, mas sim numa perspectiva filosófica. Em grande parte essa perspectiva tem como eixos as figuras de Marx e Freud. Quanto a Marx, ele está longe de ocupar o lugar dominante que tinha em meu passado filosófico. Mas a queda do Muro [de Berlim] não o transformou num autor obsoleto. Chego a suspeitar que é somente agora, quando o marxismo é dado por morto, que algumas de suas teses clássicas -como a que denuncia o caráter maciçamente excludente da economia capitalista- podem encontrar sua validação, pois o processo de globalização neoliberal está tendendo a eliminar contratendências (políticas keynesianas, Estado de Bem-Estar Social, ação sindical) que antes serviam como amortecedores, protegendo o sistema e bloqueando a realização das previsões de Marx. Quanto a Freud, é impossível compreender a ressurreição contemporânea de velhas patologias, como o fundamentalismo, o nacionalismo, o racismo, a agressividade interétnica e o terrorismo, tanto o religioso como o de Estado, praticado por Bush e [o primeiro-ministro israelense Ariel] Sharon, sem o auxílio de categorias como narcisismo de grupo, pulsão de morte, medo da castração e nostalgia da horda. Sem prejuízo de autores mais recentes, Marx e Freud representam, assim, os dois pólos do Iluminismo moderno.

3. Jürgen Habermas. Foi ele que nos revelou o duplo rosto da modernidade, ao mesmo tempo o reino da racionalidade sistêmica, voltada para a adequação de meios a fins, e o lugar da racionalidade comunicativa, voltada para o entendimento mútuo, através da argumentação racional. É o verdadeiro herdeiro do Iluminismo contemporâneo, o primeiro a recodificar segundo um paradigma pragmático-linguístico os ideais clássicos da Ilustração e a demonstrar que sob essa forma aqueles ideais continuam relevantes para o presente.


Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. Acaba de lançar "Os Dez Amigos de Freud" (dois volumes, Companhia das Letras). Ele escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.".


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