São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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[Multidão a caminho do estádio. Vendedores de lenços. Carros estacionados. Multidão com guarda-chuvas.]
Chove na Inglaterra e mesmo assim toda a Inglaterra está na rua. Por quê? Porque tem futebol em Wembley.
[Multidão agitando lenços. Entrada dos times. O rei, as tribunas. Sorteio. Começa a partida.]
Como em todos os grandes espetáculos esportivos, o ritual de abertura é observado com solenidade.
[Primeiro, estádio visto de longe. Segundo, estádio visto do alto das arquibancadas.]
Em certas épocas, em certas sociedades, o teatro teve uma grande função social: reunia toda a cidade numa experiência comum -o conhecimento de suas próprias paixões. Hoje em dia, é o esporte que, à sua maneira, detém essa função.
Mas a cidade cresceu, agora ela é um país e, muitas vezes, por assim dizer, o mundo inteiro: o esporte é uma grande instituição moderna vertida nas formas ancestrais do espetáculo. Por quê? Por que amar o esporte?
[Garoto de boina com pompom.]
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que tudo o que acontece ao jogador acontece também ao espectador. Mas ao passo que, no teatro, o espectador é apenas um voyeur, no esporte ele é um ator.
[Dribles com a bola.]
Ademais, no esporte um homem não enfrenta diretamente o outro; entre eles, há um intermediário, está em jogo algum objeto, máquina, disco ou bola. E essa coisa é o próprio símbolo das coisas: é para possuí-la, dominá-la, que se procura ser forte, firme, valente.
Observar, aqui, não é apenas viver, sofrer, esperar, compreender, mas também e sobretudo manifestar tudo isso, com a voz, o gesto, as feições -é tomar o mundo inteiro por testemunha: em uma palavra, é comunicar.
[Defesas do goleiro. Multidão. Rostos. Explosões de alegria. Homem sem chapéu, rindo, aplaudindo. Duas mulheres sorridentes; dois homens angustiados.]
Pois há no homem certas forças, alegrias conflitos e angústias: o esporte as exprime, libera, exacerba, sem permitir que se tornem destrutivas. No esporte, o homem vive o combate fatal da vida, mas esse combate é distanciado pelo espetáculo, reduzido a suas formas, livrado de seus efeitos, perigos e vergonhas: ele perde seu poder nocivo, mas não o brilho e o sentido.
[Multidão na tribuna.]
[Rostos. Corrida de dois jogadores. Arrancada irresistível de um jogador. Rostos felizes. Recomeço da partida. Dribles. Jogador avançando para o gol, perseguido por dois outros.]
O que é o esporte? O esporte responde com uma nova pergunta: quem é o melhor?
Mas o esporte confere um novo sentido a essa questão, que vem dos antigos duelos: pois aqui a excelência humana se mede em relação às coisas. Quem se sai melhor em vencer a resistência das coisas, a imobilidade da natureza? Quem se sai melhor em trabalhar o mundo, oferecê-lo aos homens... A todos os homens?
[Multidão agitando bandeiras. Outro episódio de bandeiras agitadas. Bandeira francesa. Bandeira nazista. Multidão e time fazendo a saudação nazista.]
É o que diz o esporte.
[Homens de kilt dançando.]
Por vezes, querem forçá-lo a dizer outra coisa. Mas o esporte não foi feito para isso.
[Outras danças. Líder de torcida. Multidão compacta nas arquibancadas. Segunda multidão compacta nas arquibancadas. Visão frontal da multidão, agitando os lenços. Outra multidão. Imagens do final em "frozen frames".]
Mas por que esses homens precisam atacar? Por que os homens se perturbam diante desse espetáculo? Por que se envolvem de corpo e alma? Por que esse combate inútil? O que é o esporte? O que os homens depositam no esporte? A si mesmos, seu universos de homens. O esporte foi feito para dizer o contrato humano.
[Imagens do final em "hook shots".]

Trecho extraído de "Le sport e les hommes"
Tradução de Samuel Titan Jr.


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