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+ memória
Mais importante fotógrafo do século 20, Henri Cartier-Bresson, morto na última segunda-feira, jamais deixou de assumir a condição de autor em uma atividade que se tornou comercial e obcecada pela tecnologia
O FILTRO MÁGICO DE UM SER INVISÍVEL
por Cristiano Mascaro
Sempre imaginei que, assim como
sua obra grandiosa, ele também, aos
95 anos, fosse imortal. Sabia que havia deixado de fotografar e passara a
se dedicar ao desenho (o que, confesso, me
pareceu uma pequena traição), no entanto
nunca deixei de imaginá-lo eternamente
com uma câmera à espreita de algum momento luminoso que nos pudesse revelar.
Portanto, ao saber de sua morte, fiquei um
tanto atordoado.
Recebi a notícia na fila do cinema e, enquanto aguardava a bilheteira fazer o troco, em poucos segundos minha vida de fotógrafo, como em um filme rápido, passou
diante de mim. Desisti da sessão, resolvi
voltar para casa e refletir a respeito da importância de Henri Cartier-Bresson para
todos aqueles que um dia sonharam ser fotógrafos, inclusive eu mesmo, que devo a
ele o meu encanto pela fotografia.
Por essa razão, não posso deixar de reverenciá-lo, mesmo que ele não tenha a menor idéia do ocorrido. Lembro-me com a
maior clareza e em todos os seus detalhes o
momento decisivo da revelação. Fugindo
de uma aula aborrecida, refugiei-me na biblioteca da faculdade onde estudava e, entre uma infinidade de livros ali guardados,
fui escolher bem aquele. Não sei se foi o desenho da lombada, o título "Images à la
Sauvette" [Imagens Não-Autorizadas] ou
o nome do autor, Henri Cartier-Bresson,
de quem eu já havia mais ou menos ouvido
falar, que me atraiu. Puxei-o da estante e,
como se estivesse me preparando para o
que iria acontecer, sentei-me confortavelmente em uma poltrona que havia por ali e
comecei a folhear.
Peça-chave
A capa era em pano-couro
marrom, as páginas iniciais de texto, apresentações etc, pelas quais passei rapidamente. E afinal veio a primeira foto que tinha tudo para não impressionar: um jovem e anônimo casal de noivos em um
parque parisiense. A segunda fotografia,
mais despojada ainda, retratava um velho
senhor entre cadeiras vazias de um café, e a
terceira era a de uma família fazendo piquenique na beira de um rio. Mas foi o que
me bastou. Aquelas situações tão banais e
cotidianas, sem brilho, foram observadas
de uma maneira tão sensível, construídas
de forma tão elaborada e fixadas em momento tão preciso que se tornaram grandiosas, reveladoras de sensações que jamais teria percebido se não estivesse diante daquelas imagens. Senti que a pobre e
opaca realidade havia passado por um filtro mágico. Fiquei verdadeiramente muito
impressionado e tomado por um sentimento de enlevo e admiração. Jamais imaginara a possibilidade de poder observar o
mundo daquela forma. E decidi, naquele
instante, que deveria ser fotógrafo.
De fato, Henri Cartier-Bresson é um
grande mestre, cujo trabalho arrebata e representa, em toda a história da fotografia,
sua peça-chave. Senão vejamos: a partir da
primeira fotografia realizada por Joseph
Nicéphore Nièpce, em 1826, o entendimento do que era o mundo mudou radicalmente. Até então o universo visual das
pessoas muitas vezes se encerrava na esquina mais próxima, e foram as imagens
dos fotógrafos pioneiros que desvendaram
aos olhos dos europeus como eram as cidades do Oriente, as paisagens da África e
a fisionomia dos povos distantes com a veracidade que a fotografia oferecia.
No entanto eram imagens estáticas, próximas da pintura. Os fotógrafos eram prisioneiros de um equipamento pesado que
muitas vezes precisava ser transportado
por carroças e apoiados em enormes tripés. Além disso, os filmes eram muito
pouco sensíveis, o que obrigava os modelos a posarem, imóveis, durante longos minutos sem piscar os olhos.
Surgiram, nesses primórdios, alguns fotógrafos que já desconfiavam que aquela
forma extraordinária de fixar as imagens
das pessoas e dos objetos não se resumia a
uma simples técnica. Retratistas como Nadar e Julia Margareth Cameron e os primeiros fotógrafos de rua, como Eugène
Atget e Charles Marville, já revelavam que
a fotografia não era simplesmente um registro literal da realidade e exploravam sua
capacidade de expressão e de representação. No entanto ainda era pouco.
O acaso
Por volta de 1920 surgiram as
primeiras câmeras portáteis e filmes mais
sensíveis e longos o suficiente para permitirem inúmeras fotos em seqüência. Pronto, estavam criadas as condições para Henri Cartier-Bresson entrar em cena.
Desde suas primeiras imagens realizadas
na África, em 1931, ele percebeu as novas
possibilidades que tinha à disposição e não
cessou de, a partir dos elementos que fixou
para criar suas imagens (a paciência, a reflexão, o acaso, a forma, o tempo), capturar a vida em movimento em um instante
decisivo -o que veio a se tornar o fundamento primordial da linguagem fotográfica e que passou a influenciar, desde então,
no mínimo cinco gerações de fotógrafos
assim como, seguramente, influenciará todas as outras que estão por vir.
Tratá-lo somente como "pai do fotojornalismo", o que não seria pouco, é, no entanto, uma redução. De fato, Cartier-Bresson foi repórter quando cobriu a tomada
do poder na China por Mao Tse-tung, a
morte de Ghandi, em 1949, e a libertação de
Paris pela Resistência francesa e pelos aliados. Mas foi também um retratista excepcional ao nos revelar a fisionomia torturada de Ezra Pound, o vigor de Leonard
Bernstein, a bonomia de Jean Renoir, de
quem foi assistente em "A Regra do Jogo",
a severidade do olhar de André Malraux, a
delicadeza de gestos de Truman Capote e o
caráter de muitos outros famosos e anônimos, assim como foi também um documentarista perfeito ao viajar pelo mundo.
E o que o torna singular é o fato de ter
construído toda sua obra monumental
acompanhado unicamente de uma câmera
muito simples, sem disparar um flash, em
atitudes tão discretas que o transformavam
em um ente invisível. Misturava-se com os
protagonistas da cena a ponto de fazer parte dela, evitando o papel de simples curioso. Todas essas qualidades podem ser reunidas em uma só verdade: Henri Cartier-Bresson foi grande porque, como fotógrafo, jamais deixou de assumir a condição de
autor em uma atividade que se tornou comercial, obcecada pela tecnologia e por atitudes vanguardeiras. Permaneceu fiel a
seus princípios do começo ao fim.
Portanto, nada mais justo do que o espaço generoso que os jornais do mundo todo,
inclusive os brasileiros, destinaram ao
anúncio de sua morte e à reafirmação da
importância de sua obra. O que, habitualmente, somente acontece com os grandes
vultos da história geral.
Portanto, decididamente, ele não foi simplesmente o mais importante fotógrafo do
século 20. Se tivéssemos de elaborar uma
lista dos dez fotógrafos mais importantes
de toda a história da fotografia, certamente
ele estaria incluído. Mas isto diz pouco ainda, pois em uma lista de cinco ele também
estaria presente. E para encurtar a história,
se tivéssemos de reduzi-la para uma lista de
um só personagem, não haveria problema:
seria ele, fatalmente, o escolhido.
Cristiano Mascaro, 59, é um dos principais fotógrafos brasileiros. Formado em arquitetura pela USP, seu
trabalho retrata sobretudo a cidade de São Paulo,
mas também o cotidiano das cidades.
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