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O historiador francês Jean Delumeau fala sobre as profecias do Padre Vieira
e as correntes milenaristas que afetaram a formação da Europa e das Américas
Delumeau - O paraíso português
France Presse
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Imagem de Cristo é pendurada em prédio em Havana, antes da visita do papa a Cuba, em janeiro |
Milenarismo e violência andam
frequentemente juntos. Essa é a
convicção de Norman Cohn em
seu livro, "Cosmos, Caos e o
Mundo Que Virá".
Jean Delumeau - Um livro notável! De fato, ao longo da história
certos grupos quiseram impor o
Millenium (ou idéia que engendra o milenarismo, a esperança
de que se viverá mil anos de felicidade terrestre) pela força. As manifestações mais violentas desse
milenarismo revolucionário foram o movimento dos radicais
tchecos nos anos 1420, a revolta
dos "camponeses" de Turíngia, à
frente dos quais se colocou Thomas Müntzer em 1525, a ocupação de Münster, em 1534-1535,
por anabatistas exaltados que
acreditavam que Cristo ia descer
ali para fazer da cidade a nova Jerusalém!
Pergunta - É o episódio evocado por Marguerite Yourcenar
em "A Obra em Negro".
Delumeau - Exato. Houve também complôs urdidos na Inglaterra, nos meados do século 17,
pelos "homens da quinta monarquia". Relembrei todos esses fatos
em meu livro ("Mil Anos de Felicidade"), apresentando principalmente sobre os extremistas tchecos do século 15 documentos até
agora desconhecidos fora da Boêmia.
Também pude fornecer uma
análise detalhada de um trabalho
estranho, o "Livro dos Cem Capítulos", redigido por volta de 1500
por um exaltado anônimo alsaciano habitualmente chamado "o
Revolucionário do Alto Reno".
Mas eu queria sobretudo mostrar
a importância e a diversidade do
milenarismo, para além dos movimentos sediciosos igualitaristas.
Pergunta - Que países foram
mais atingidos pela utopia milenarista?
Delumeau - Pouco se sabe, fora
dos países lusitanos, que Portugal
foi atravessado do século 15 ao 17,
inclusive, por profundas correntes milenaristas, sem o conhecimento das quais a história desse
país é incompreensível. Assim se
pôde escrever que em Portugal "a
persistência do messianismo, animando a mentalidade de um povo, durante um tempo tão longo,
e conservando-lhe a mesma expressão, é um fenômeno que,
com exclusão do povo judeu, não
tem equivalente na história".
A pesquisa recente mostrou que
era necessário dar uma significação escatológica aos projetos e às
expedições ultramarinas de d.
Manuel, o Venturoso. Ele sonhava com uma espécie de reino universal e messiânico, o quinto império de Daniel, que veria Portugal trazer para a religião de Cristo
todas as nações não-cristãs.
Fato peculiar a Portugal: as trovas, notadamente as do inspirado
sapateiro Bandarra, compostas
entre 1530 e 1546, anunciavam a
próxima aparição de um rei ainda
escondido -o Encoberto- que
seria o salvador do mundo. A esperança no reaparecimento do rei
d. Sebastião, desaparecido em
1578 quando de uma batalha contra os "mouros" no Marrocos,
inscreve-se nessa tradição. O sebastianismo, no século 17, se
transformou num autêntico milenarismo, e isso graças principalmente ao padre Antônio Vieira.
O jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), o mais célebre pregador
português do seu tempo, e que figura em seu país entre os grandes
nomes da literatura barroca, era
na verdade um autêntico milenarista. Nascido no Brasil, aí passou
parte de sua vida e aí morreu. Foi
um infatigável defensor dos índios. Partidário da independência
de Portugal frente à Espanha, saudou em d. João 6º de Bragança o
restaurador da pátria e o "rei encoberto" anunciado pelas trovas
do Bandarra.
Independentemente de seus
sermões de caráter escatológico,
Vieira exprimiu suas concepções
milenaristas em três escritos principais: as "Esperanças de Portugal" (1659); a "História do Futuro", começada provavelmente em
1649 e nunca acabada; enfim a
"Chave das Profecias" (em latim),
de que falou pela primeira vez em
1663, obra também inacabada da
qual só restam fragmentos.
Vieira, em seus livros, passou
muito tempo a provar que as profecias de Davi, Isaías e Daniel
anunciavam o quinto império do
mundo e viu nas viagens de descobrimento até os confins da Terra o começo de seu advento. Depois de ter demonstrado que haverá um quinto império, propõe a
pergunta: será ele neste mundo
ou no outro? Responde categoricamente: "É o sentimento comum dos santos, recebido e seguido por todos os comentadores, que este reino e império de
Cristo, profetizado por Daniel, é
um império da Terra e sobre a
Terra".
Na concepção de Vieira, Cristo
não reinará diretamente sobre o
mundo regenerado, mas exercerá
sua soberania por meio de seus
dois representantes, o papa e o rei
de Portugal, tendo a Igreja alcançado então seu último estado de
perfeição. Jerusalém será restaurada em toda a sua glória. O pecado desaparecerá pela conversão
dos infiéis e a morte antecipada
dos pecadores que se recusarem a
se converter.
Nessa quinta monarquia, a vida
continuará como hoje, com agricultura, indústria e comércio, mas
sem guerra. Esse estado de perfeição durará mil anos, antes do retorno do Anticristo e do fim do
mundo. Lisboa estará no centro
desse império de Cristo na Terra,
porque ela é, dizia ele, "o sítio
mais bem-proporcionado e o
mais adequado ao destino que lhe
reservou o Supremo Arquiteto
(...). Ela espera entre seus dois
promontórios, que são como dois
braços abertos, (...) a voluntária
obediência de todas as nações que
descobrirão sua solidariedade, até
com as populações das terras ainda desconhecidas hoje e que terão
perdido a afronta deste nome".
Enquanto o papa será o único
pastor espiritual da humanidade,
o rei de Portugal, tornado imperador do mundo, será o árbitro universal. Ele porá fim a todos os
conflitos pelos quais as nações se
destroem umas às outras e "manterá o mundo inteiro na paz de
Cristo cantada pelos profetas".
Pergunta - Fora Portugal, houve outros países europeus profundamente tocados pelas correntes milenaristas?
Delumeau - Na França, muitos
ignoram, mesmo no meio protestante, que Jurieu, o grande adversário reformado de Bossuet e o
animador, desde Roterdã, da resistência a Luís 14, era milenarista.
Quanto à história inglesa no século 17, ela é ininteligível se não se
reconhece o lugar que nela ocupavam as expectativas escatológicas.
O milenarismo teve um papel importante além-Mancha na época
de Cromwell. De maneira mais
geral, o nascimento e o desenvolvimento do protestantismo permitiram às correntes milenaristas
se manifestar mais abertamente, e
mais largamente, do que antes,
embora seja verdade que os grandes reformadores, sobretudo Lutero e Calvino, continuaram fiéis à
interpretação agostiniana do
Apocalipse. Em nível global existiu um liame evidente entre milenarismo e heresia.
De outro lado, a entrada em cena da América deu novo impulso
à esperança milenarista. Marcel
Bataillon e Georges Baudot mostraram que os primeiros franciscanos que chegaram ao México,
em 1524, estavam impregnados
de joaquinismo e julgavam próxima a "última era do mundo", isto
é, um período de paz, de reconciliação e de conversão geral ao cristianismo que precederia o fim da
história.
Os dois franciscanos mais conhecidos da "conquista espiritual" do México no século 16, Motolonia e Mendieta, tiveram em
comum a convicção de que iam
poder reconstituir a idade de ouro
da Igreja primitiva no outro lado
do Atlântico, longe da cristandade européia pervertida, entre os
índios pobres e simples. Mendieta
sonhou levar os indígenas da Nova Espanha a viver "na virtude e
na paz; a serviço de Deus, como
num paraíso terrestre" -fórmula
a que é preciso dar todo o seu sentido escatológico. Era essa também a esperança dos jesuítas
quando criaram as "reduções" do
Paraguai em benefício dos guaranis.
Pergunta - O sr. lembra também que os primeiros puritanos
que foram se estabelecer no outro lado do Atlântico tinham a
convicção de que a América era
o lugar a partir do qual ia se estender o reino universal de Cristo.
Delumeau - Realmente, e na
Europa isso não é bastante conhecido. Na Inglaterra, em 1628,
quando a um grupo prestes a partir alguém tentou dissuadir de
embarcar, um dos promotores da
aventura declarou: "Não retardem a partida... Saibam que lá o
Senhor criará um novo céu e uma
nova Terra, novas igrejas e uma
nova república (Commonwealth)".
Para o teólogo John Cotton,
imigrado na América no século
17, a Nova Inglaterra ocupava
"uma situação sem precedente na
história". Seus habitantes constituíam uma sociedade "liberta da
Besta". Para ele a América era "legível nas promessas", isto é, nas
profecias do Antigo Testamento.
Em 1652, John Eliot, o primeiro
missionário protestante dos índios, afirmava que o reino de
Cristo estava agora "em via de se
levantar nas partes ocidentais do
mundo".
Mas é na obra de Jonathan Edwards, propugnador do "grande
despertar" protestante dos anos
de 1740-1744, que se encontra a
expressão mais candente de um
milenarismo ligado à América do
Norte. Ele declarou por exemplo:
"Este novo mundo foi provavelmente descoberto em nossos dias
para que o novo e mais glorioso
Estado da igreja de Deus na Terra
possa ter início aqui (isto é, na
América) e para que Deus faça começar aqui um novo mundo espiritual, criando os novos céus e a
nova Terra (...). Deus já concedeu
a outro continente a honra de ter
feito nascer lá o Cristo, no sentido
literal do termo, e de ter aí assegurado a Redenção. Ora, como a
Providência observa uma espécie
de igualdade na distribuição das
coisas, não é desarrazoado pensar
que o grande nascimento espiritual de Cristo e a mais gloriosa
aplicação da Redenção devem começar aqui (...). O outro continente matou Cristo e de geração
em geração derramou o sangue
dos santos e dos mártires de Jesus.
Foi como que inundado pelo sangue da Igreja. Por isso Deus provavelmente reservou a honra de
edificar o glorioso templo à filha
(a América) que não derramou
tanto sangue, no momento em
que vai começar esse tempo de
paz, de prosperidade e de glória
denotado outrora pelo reinado de
Salomão (...). Diversos fatos me
parecem indicar (...) que o sol se
levantará no Oeste".
Pergunta - Não tem o sr. a impressão de que a América está
ainda fortemente impregnada
dessas idéias? Tomemos apenas
os discursos de George Bush,
após a Guerra do Golfo, sobre a
América defensora de uma "nova ordem mundial" de paz e justiça.
Delumeau - Disso estou persuadido e, historicamente, temos sérias razões de pensar que o milenarismo americano constituiu
uma das componentes da identidade da nova nação que se formava.
Em 1785, o neto de Jonathan Edwards, Timothy Dwight, milenarista como ele, publicou um poema de título significativo, "The
Conquest of Canaan". Os soldados tombados durante a Guerra
da Independência eram aí comparados aos hebreus conduzidos
por Josué para a Terra Prometida.
Um novo Éden, o quinto império
anunciado por Daniel, ia surgir
-"império de paz, de justiça e de
liberdade".
A nova república seria o agente
e o motor do Millenium. Um pregador garantiu em 1795 que os habitantes dos Estados Unidos podiam "dizer uns aos outros com
alegria no rosto: "Nós somos um
povo particularmente favorecido
pelo céu (...). Os Estados Unidos
são agora a vinha do Senhor".
Para um outro milenarista do
início do século 19, David Austin,
a pedra que, segundo a profecia
de Daniel, se desprende da montanha para encher toda a Terra
anunciava, com toda a evidência,
a Declaração de Independência
de julho de 1776, acontecimento a
partir do qual os mil anos de felicidade iam poder começar.
Tradução de José Laurenio de Melo.
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