São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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O historiador francês Jean Delumeau fala sobre as profecias do Padre Vieira e as correntes milenaristas que afetaram a formação da Europa e das Américas
Delumeau - O paraíso português

France Presse
Imagem de Cristo é pendurada em prédio em Havana, antes da visita do papa a Cuba, em janeiro


Milenarismo e violência andam frequentemente juntos. Essa é a convicção de Norman Cohn em seu livro, "Cosmos, Caos e o Mundo Que Virá".
Jean Delumeau - Um livro notável! De fato, ao longo da história certos grupos quiseram impor o Millenium (ou idéia que engendra o milenarismo, a esperança de que se viverá mil anos de felicidade terrestre) pela força. As manifestações mais violentas desse milenarismo revolucionário foram o movimento dos radicais tchecos nos anos 1420, a revolta dos "camponeses" de Turíngia, à frente dos quais se colocou Thomas Müntzer em 1525, a ocupação de Münster, em 1534-1535, por anabatistas exaltados que acreditavam que Cristo ia descer ali para fazer da cidade a nova Jerusalém!

Pergunta - É o episódio evocado por Marguerite Yourcenar em "A Obra em Negro".
Delumeau -
Exato. Houve também complôs urdidos na Inglaterra, nos meados do século 17, pelos "homens da quinta monarquia". Relembrei todos esses fatos em meu livro ("Mil Anos de Felicidade"), apresentando principalmente sobre os extremistas tchecos do século 15 documentos até agora desconhecidos fora da Boêmia.
Também pude fornecer uma análise detalhada de um trabalho estranho, o "Livro dos Cem Capítulos", redigido por volta de 1500 por um exaltado anônimo alsaciano habitualmente chamado "o Revolucionário do Alto Reno". Mas eu queria sobretudo mostrar a importância e a diversidade do milenarismo, para além dos movimentos sediciosos igualitaristas.

Pergunta - Que países foram mais atingidos pela utopia milenarista?
Delumeau -
Pouco se sabe, fora dos países lusitanos, que Portugal foi atravessado do século 15 ao 17, inclusive, por profundas correntes milenaristas, sem o conhecimento das quais a história desse país é incompreensível. Assim se pôde escrever que em Portugal "a persistência do messianismo, animando a mentalidade de um povo, durante um tempo tão longo, e conservando-lhe a mesma expressão, é um fenômeno que, com exclusão do povo judeu, não tem equivalente na história".
A pesquisa recente mostrou que era necessário dar uma significação escatológica aos projetos e às expedições ultramarinas de d. Manuel, o Venturoso. Ele sonhava com uma espécie de reino universal e messiânico, o quinto império de Daniel, que veria Portugal trazer para a religião de Cristo todas as nações não-cristãs.
Fato peculiar a Portugal: as trovas, notadamente as do inspirado sapateiro Bandarra, compostas entre 1530 e 1546, anunciavam a próxima aparição de um rei ainda escondido -o Encoberto- que seria o salvador do mundo. A esperança no reaparecimento do rei d. Sebastião, desaparecido em 1578 quando de uma batalha contra os "mouros" no Marrocos, inscreve-se nessa tradição. O sebastianismo, no século 17, se transformou num autêntico milenarismo, e isso graças principalmente ao padre Antônio Vieira.
O jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), o mais célebre pregador português do seu tempo, e que figura em seu país entre os grandes nomes da literatura barroca, era na verdade um autêntico milenarista. Nascido no Brasil, aí passou parte de sua vida e aí morreu. Foi um infatigável defensor dos índios. Partidário da independência de Portugal frente à Espanha, saudou em d. João 6º de Bragança o restaurador da pátria e o "rei encoberto" anunciado pelas trovas do Bandarra.
Independentemente de seus sermões de caráter escatológico, Vieira exprimiu suas concepções milenaristas em três escritos principais: as "Esperanças de Portugal" (1659); a "História do Futuro", começada provavelmente em 1649 e nunca acabada; enfim a "Chave das Profecias" (em latim), de que falou pela primeira vez em 1663, obra também inacabada da qual só restam fragmentos.
Vieira, em seus livros, passou muito tempo a provar que as profecias de Davi, Isaías e Daniel anunciavam o quinto império do mundo e viu nas viagens de descobrimento até os confins da Terra o começo de seu advento. Depois de ter demonstrado que haverá um quinto império, propõe a pergunta: será ele neste mundo ou no outro? Responde categoricamente: "É o sentimento comum dos santos, recebido e seguido por todos os comentadores, que este reino e império de Cristo, profetizado por Daniel, é um império da Terra e sobre a Terra".
Na concepção de Vieira, Cristo não reinará diretamente sobre o mundo regenerado, mas exercerá sua soberania por meio de seus dois representantes, o papa e o rei de Portugal, tendo a Igreja alcançado então seu último estado de perfeição. Jerusalém será restaurada em toda a sua glória. O pecado desaparecerá pela conversão dos infiéis e a morte antecipada dos pecadores que se recusarem a se converter.
Nessa quinta monarquia, a vida continuará como hoje, com agricultura, indústria e comércio, mas sem guerra. Esse estado de perfeição durará mil anos, antes do retorno do Anticristo e do fim do mundo. Lisboa estará no centro desse império de Cristo na Terra, porque ela é, dizia ele, "o sítio mais bem-proporcionado e o mais adequado ao destino que lhe reservou o Supremo Arquiteto (...). Ela espera entre seus dois promontórios, que são como dois braços abertos, (...) a voluntária obediência de todas as nações que descobrirão sua solidariedade, até com as populações das terras ainda desconhecidas hoje e que terão perdido a afronta deste nome".
Enquanto o papa será o único pastor espiritual da humanidade, o rei de Portugal, tornado imperador do mundo, será o árbitro universal. Ele porá fim a todos os conflitos pelos quais as nações se destroem umas às outras e "manterá o mundo inteiro na paz de Cristo cantada pelos profetas".

Pergunta - Fora Portugal, houve outros países europeus profundamente tocados pelas correntes milenaristas?
Delumeau -
Na França, muitos ignoram, mesmo no meio protestante, que Jurieu, o grande adversário reformado de Bossuet e o animador, desde Roterdã, da resistência a Luís 14, era milenarista. Quanto à história inglesa no século 17, ela é ininteligível se não se reconhece o lugar que nela ocupavam as expectativas escatológicas. O milenarismo teve um papel importante além-Mancha na época de Cromwell. De maneira mais geral, o nascimento e o desenvolvimento do protestantismo permitiram às correntes milenaristas se manifestar mais abertamente, e mais largamente, do que antes, embora seja verdade que os grandes reformadores, sobretudo Lutero e Calvino, continuaram fiéis à interpretação agostiniana do Apocalipse. Em nível global existiu um liame evidente entre milenarismo e heresia.
De outro lado, a entrada em cena da América deu novo impulso à esperança milenarista. Marcel Bataillon e Georges Baudot mostraram que os primeiros franciscanos que chegaram ao México, em 1524, estavam impregnados de joaquinismo e julgavam próxima a "última era do mundo", isto é, um período de paz, de reconciliação e de conversão geral ao cristianismo que precederia o fim da história.
Os dois franciscanos mais conhecidos da "conquista espiritual" do México no século 16, Motolonia e Mendieta, tiveram em comum a convicção de que iam poder reconstituir a idade de ouro da Igreja primitiva no outro lado do Atlântico, longe da cristandade européia pervertida, entre os índios pobres e simples. Mendieta sonhou levar os indígenas da Nova Espanha a viver "na virtude e na paz; a serviço de Deus, como num paraíso terrestre" -fórmula a que é preciso dar todo o seu sentido escatológico. Era essa também a esperança dos jesuítas quando criaram as "reduções" do Paraguai em benefício dos guaranis.

Pergunta - O sr. lembra também que os primeiros puritanos que foram se estabelecer no outro lado do Atlântico tinham a convicção de que a América era o lugar a partir do qual ia se estender o reino universal de Cristo.
Delumeau -
Realmente, e na Europa isso não é bastante conhecido. Na Inglaterra, em 1628, quando a um grupo prestes a partir alguém tentou dissuadir de embarcar, um dos promotores da aventura declarou: "Não retardem a partida... Saibam que lá o Senhor criará um novo céu e uma nova Terra, novas igrejas e uma nova república (Commonwealth)".
Para o teólogo John Cotton, imigrado na América no século 17, a Nova Inglaterra ocupava "uma situação sem precedente na história". Seus habitantes constituíam uma sociedade "liberta da Besta". Para ele a América era "legível nas promessas", isto é, nas profecias do Antigo Testamento. Em 1652, John Eliot, o primeiro missionário protestante dos índios, afirmava que o reino de Cristo estava agora "em via de se levantar nas partes ocidentais do mundo".
Mas é na obra de Jonathan Edwards, propugnador do "grande despertar" protestante dos anos de 1740-1744, que se encontra a expressão mais candente de um milenarismo ligado à América do Norte. Ele declarou por exemplo: "Este novo mundo foi provavelmente descoberto em nossos dias para que o novo e mais glorioso Estado da igreja de Deus na Terra possa ter início aqui (isto é, na América) e para que Deus faça começar aqui um novo mundo espiritual, criando os novos céus e a nova Terra (...). Deus já concedeu a outro continente a honra de ter feito nascer lá o Cristo, no sentido literal do termo, e de ter aí assegurado a Redenção. Ora, como a Providência observa uma espécie de igualdade na distribuição das coisas, não é desarrazoado pensar que o grande nascimento espiritual de Cristo e a mais gloriosa aplicação da Redenção devem começar aqui (...). O outro continente matou Cristo e de geração em geração derramou o sangue dos santos e dos mártires de Jesus. Foi como que inundado pelo sangue da Igreja. Por isso Deus provavelmente reservou a honra de edificar o glorioso templo à filha (a América) que não derramou tanto sangue, no momento em que vai começar esse tempo de paz, de prosperidade e de glória denotado outrora pelo reinado de Salomão (...). Diversos fatos me parecem indicar (...) que o sol se levantará no Oeste".

Pergunta - Não tem o sr. a impressão de que a América está ainda fortemente impregnada dessas idéias? Tomemos apenas os discursos de George Bush, após a Guerra do Golfo, sobre a América defensora de uma "nova ordem mundial" de paz e justiça.
Delumeau -
Disso estou persuadido e, historicamente, temos sérias razões de pensar que o milenarismo americano constituiu uma das componentes da identidade da nova nação que se formava.
Em 1785, o neto de Jonathan Edwards, Timothy Dwight, milenarista como ele, publicou um poema de título significativo, "The Conquest of Canaan". Os soldados tombados durante a Guerra da Independência eram aí comparados aos hebreus conduzidos por Josué para a Terra Prometida. Um novo Éden, o quinto império anunciado por Daniel, ia surgir -"império de paz, de justiça e de liberdade".
A nova república seria o agente e o motor do Millenium. Um pregador garantiu em 1795 que os habitantes dos Estados Unidos podiam "dizer uns aos outros com alegria no rosto: "Nós somos um povo particularmente favorecido pelo céu (...). Os Estados Unidos são agora a vinha do Senhor".
Para um outro milenarista do início do século 19, David Austin, a pedra que, segundo a profecia de Daniel, se desprende da montanha para encher toda a Terra anunciava, com toda a evidência, a Declaração de Independência de julho de 1776, acontecimento a partir do qual os mil anos de felicidade iam poder começar.


Tradução de José Laurenio de Melo.


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