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FILOSOFIA
Há 30 anos, em 6 de agosto de 1969, morria o filósofo Theodor Adorno
Desordem do mundo
MARCOS NOBRE
especial para a Folha
Pouco antes de morrer, Adorno
concedeu uma entrevista à revista
alemã "Der Spiegel". No início daquele ano de 1969, os protestos
políticos de estudantes e trabalhadores tomavam as ruas novamente. Foi por isso que o jornalista começou a entrevista com a seguinte consideração: "Professor, há
três semanas o mundo parecia em
ordem...". Adorno o interrompeu: "Não para mim".
O que seria um mundo "em ordem" para Adorno? Não se deve
responder a essa pergunta, diria
ele. Imaginar o que deve ser um
mundo livre é o mesmo que acreditar que o mundo justo possa
sair da cabeça do filósofo; é o mesmo que dizer que a história não é
a surpresa renovada da ação humana, mas já está decidida de antemão, congelada numa imagem
a ser alcançada.
Mas, se não se deve fazer imagens da sociedade justa, é possível
dizer por que a nossa sociedade é
injusta, é possível dizer por que a
"ordem" na qual vivemos não está "em ordem". Isto é o que Adorno denomina "ontologia do estado falso". E o modo de apresentação desse estado falso é o que ele
chama de "dialética negativa". Estes conceitos filosóficos básicos
do pensamento de Adorno estão
ancorados num determinado
diagnóstico do que seja a sociedade em que vivemos, vale dizer,
uma sociedade capitalista. Adorno ainda qualifica um pouco mais
esse sistema social: trata-se para
ele do "capitalismo tardio".
E aqui já se mostra melhor por
que esse "capitalismo tardio" não
está "em ordem". As formas anteriores do "capitalismo" (como se
queira chamá-las: clássica, concorrencial, monopolista etc.) tinham uma característica marcante: elas apontavam para além de si
mesmas, continham em si mesmas a possibilidade da sociedade
justa. A característica marcante
do "capitalismo tardio", segundo
Adorno, está em circunscrever
um sistema social que se fecha sobre si mesmo, que bloqueia qualquer possibilidade de superação
virtuosa da injustiça atual. Nenhuma ação, seja empreendida
pelo indivíduo ou pelo coletivo, é
capaz de alterar a lógica profunda
que rege esse sistema injusto.
O "capitalismo tardio" é, portanto, para Adorno, paradoxal.
Não é necessário que nenhuma
pessoa passe fome sobre a Terra.
A capacidade de produção de alimentos é mais do que suficiente
para atender a todos. E ninguém
em seu juízo perfeito pode desejar
que outra pessoa passe fome. E,
no entanto, a fome é uma realidade cotidiana para dois terços da
humanidade. O paradoxo se explica (mas não se dissolve) pelo
fato de as relações sociais típicas
do capitalismo tardio estarem
congeladas como se fossem "naturais": as relações sociais são interpretadas por nós, habitantes
do capitalismo tardio, como se
fossem a mesma coisa que o "destino". A forma mais comum desse
pretenso "destino" se chama
"mercado": o "mercado" funciona assim, ou o "mercado" quer
assado.
Mas, até aqui, nada distinguiria
essa fase "tardia" do capitalismo
de suas outras fases. O distintivo
aqui está em que não há, para
Adorno, elementos que permitam destruir o "capitalismo tardio" num sentido positivo, no
sentido de criar a sociedade verdadeiramente justa. Esta é a "novidade" do capitalismo tardio
frente a suas fases anteriores: ele
paralisa a ação genuinamente
transformadora.
Isto ocorre porque o velho paradigma do capitalismo liberal -o
da auto-regulação do mercado-
não mais se aplica, na visão de
Adorno, e o novo mecanismo que
o substituiu é ainda mais opaco. O
sistema econômico no capitalismo tardio é controlado de fora,
politicamente, e, no entanto, esse
controle político não é exercido
de maneira transparente. Esse
controle é exercido burocraticamente, segundo a racionalidade
própria da burocracia. Esta racionalidade chama-se, na linguagem
de Adorno, "instrumental": trata-se de uma racionalidade que pondera, calcula e ajusta os melhores
meios a fins dados exteriormente
ao agente. A sua lógica é a do sucesso ou fracasso. A sua lógica é a
da administração. Daí que Adorno utilize também a expressão
"mundo administrado" como
quase sinônimo de "capitalismo
tardio".
Historicamente, o grande projeto de emancipação da razão humana esteve sempre colocado na
determinação racional dos fins,
ou seja, no debate e na efetivação
daqueles valores julgados belos,
justos e verdadeiros. No capitalismo tardio, a razão se vê reduzida a
uma capacidade de adaptação a
fins dados de antemão, vê-se reduzida à capacidade de calcular os
melhores meios para alcançar fins
que lhe são estranhos. Esta racionalidade é dominante em nossa
sociedade não apenas por moldar
a economia, o sistema político ou
a burocracia estatal: ela faz parte
de nossa socialização, de nosso
processo de aprendizado, da formação de nossa personalidade.
Esta é a razão pela qual o capitalismo tardio se fecha sobre si mesmo sem falhas. Para criticá-lo, para destruí-lo, é preciso lançar mão
da mesma racionalidade que o
constitui, o que o reforça em lugar
de abalá-lo. Esta também é a razão pela qual a filosofia de Adorno é difícil: é uma filosofia que
pensa contra o pensamento, que
se vira contra nossas próprias estruturas de pensamento, denunciando o conluio da forma de nossa racionalidade com a forma de
dominação vigente.
É uma filosofia radical, sem dúvida. Radical naquele sentido já
desvendado pelo jovem Marx: ser
radical é tomar as coisas pela raiz;
e, nas coisas humanas, a raiz é o
próprio homem. Mas, diferentemente de Marx, para Adorno a
porta da práxis, da ação revolucionária, está fechada por tempo
indeterminado. Diferentemente
de Marx, a teoria não é capaz de
detectar, de iluminar na sociedade injusta os germes da nova sociedade verdadeiramente racional.
Essa radicalidade do pensamento de Adorno permitiu-lhe jogar
luz, como nenhum outro antes
dele, sobre as patologias da nossa
modernidade e sua racionalidade
peculiar. Adorno percebeu bem
cedo que a racionalidade instrumental tinha uma lógica de expansão que exigia um aumento e
uma complexificação constantes
dos mecanismos de controle social.
Sua perspectiva radical pinçou e
colocou sob a lupa aqueles elementos aparentemente insignificantes que constituem a "ordem"
de nosso cotidiano. Adorno não
queria negligenciar nada. Escreveu sobre tráfego, sobre propaganda, sobre a televisão nascente,
sobre o misticismo dos horóscopos, como também sobre o significado de Hedda Gabler, sobre a
dialética de Hegel. Não há assunto
"menor", se se trata sempre de denunciar uma forma de racionalidade que não apenas se torna
mais e mais hegemônica, mas que
sufoca qualquer alternativa, qualquer transformação.
Como escreveu Adorno junto
com Max Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento" (Jorge
Zahar, págs. 221-222): "Se o pensamento não se limita a ratificar
os preceitos vigentes, ele deverá se
apresentar de maneira ainda mais
segura de si, mais universal, mais
autoritária, do que quando se limita a justificar o que está em vigor. Será que você considera injusto o poder dominante? Quem
sabe você quer que impere o caos
e não o poder? Você está criticando a uniformização da vida e o
progresso? Será que, à noite, a
gente deve voltar a acender velas
de cera? Será que o fedor do lixo
deve voltar a empestear nossas cidades, como na Idade Média? Você não gosta dos matadouros, será
que a sociedade deve passar a comer legumes crus?". O poder da
racionalidade instrumental não
está simplesmente em estabelecer
verdades: seu poder está em reduzir toda racionalidade ao "ou isto
ou aquilo", sempre uma alternativa entre a ordem vigente e um
despautério.
É também neste contexto que se
deve entender o célebre conceito
de "indústria cultural", cunhado
por Adorno e Horkheimer em
1944. Não se trata apenas de constatar que o capital se expande para a área da cultura, criando o
"show business" e a "indústria do
entretenimento". Adorno pretende entender esse fenômeno também como uma contrapartida necessária da lógica do mundo administrado.
A cada vez maior necessidade
de controle social exigida pela lógica do capitalismo tardio impõe
o controle também do período de
"lazer". Os "produtos culturais"
postos à disposição dos "consumidores" servem para mantê-los
alertas e treinados, além de garantirem que a "ordem" do mundo
será sempre confirmada como ordem inabalável das coisas. A arte
não se torna apenas integralmente mercadoria, mas também se
mostra como eficiente mecanismo de treinamento e de controle
social.
Mas, se é assim, se a única tendência real constatável para
Adorno é a do aumento do grau
de controle social despersonalizado, que lugar ainda pode restar
para a política e, mais especificamente, para a ação política? Não
há possibilidade, para Adorno, de
fazer imagens do que seria um
mundo "em ordem". Também
não é possível identificar neste
nosso mundo falso os germes do
mundo verdadeiro que deveria
sucedê-lo. Desse modo, resta ao
filósofo reiterar a cada vez maior
perda de liberdade da sociedade.
Cabe a ele prosseguir denunciando o absurdo real do capitalismo
tardio, na esperança de que a porta para a práxis se abra novamente um dia.
Com razão, portanto, diz-se que
o pensamento político de Adorno
é o da hibernação, ainda que seja
uma hibernação de olhos bem
abertos. E a lição e a atualidade do
pensamento de Adorno estão em
que, mesmo se se julgar indefensável a hibernação política, qualquer um que pretenda hoje fazer
uma política de cunho verdadeiramente transformador não pode
deixar de lado as lições radicais de
Adorno quanto às raízes de nossas patologias sociais.
Este é justamente o caso do mais
importante discípulo de Adorno,
Jürgen Habermas, de quem o
Mais! publicou um artigo (em
18/7/99) em que este filósofo discutia as possibilidades da política
sob o impacto da globalização
econômica. Nesse texto, podemos
ver em ação o herdeiro do pensamento de Adorno, consciente de
que as patologias do capitalismo
são produto do próprio funcionamento desse sistema e não uma
"falha" qualquer de operação.
Mas, diferentemente de Adorno,
vemos também em Habermas a
preocupação em discernir os elementos potencialmente emancipatórios presentes no capitalismo, elementos que devem ser, segundo ele, preservados e cultivados.
Na visão de Habermas, o essencial está em que o Estado social do
pós-guerra na Europa trouxe uma
nova dinâmica de inclusão igualitária de todos os cidadãos que deu
nova dimensão política ao processo democrático. Interessante
notar que Adorno, ainda que de
maneira extremamente ambígua,
tendeu a qualificar essa mesma
formação histórica (o chamado
"Estado de Bem-Estar Social") como um passo no caminho do
"mundo totalmente administrado".
Para Adorno, os avanços democráticos registrados por Habermas são, no limite, mero exercício
administrativo e só fazem reforçar estruturas de poder injustas,
sem transformá-las. Habermas
quer nos convencer de que a esfera pública, apesar de todos os entraves que inegavelmente contém, dispõe ainda de uma boa
margem de manobra para que o
desenvolvimento social esteja não
apenas submetido ao controle
público, mas também a serviço de
escolhas vitais obtidas por processos comunicativos.
Seja como for, de uma perspectiva adorniana ou habermasiana
(ou de outras perspectivas ainda),
a questão colocada por Habermas
merece ser enfrentada: "Será que
essa forma de atuação democrática das sociedades modernas sobre si mesmas deixa-se ampliar
para além das fronteiras nacionais?". E o mais interessante é que
Adorno nos dá e nos tira, ao mesmo tempo, a base a partir da qual
podemos responder à questão.
Marcos Nobre é professor de filosofia da
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de "A
Dialética Negativa de Theodor W. Adorno"
(Iluminuras/ Fapesp).
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