São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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FILOSOFIA
Há 30 anos, em 6 de agosto de 1969, morria o filósofo Theodor Adorno
Desordem do mundo

MARCOS NOBRE
especial para a Folha

Pouco antes de morrer, Adorno concedeu uma entrevista à revista alemã "Der Spiegel". No início daquele ano de 1969, os protestos políticos de estudantes e trabalhadores tomavam as ruas novamente. Foi por isso que o jornalista começou a entrevista com a seguinte consideração: "Professor, há três semanas o mundo parecia em ordem...". Adorno o interrompeu: "Não para mim".
O que seria um mundo "em ordem" para Adorno? Não se deve responder a essa pergunta, diria ele. Imaginar o que deve ser um mundo livre é o mesmo que acreditar que o mundo justo possa sair da cabeça do filósofo; é o mesmo que dizer que a história não é a surpresa renovada da ação humana, mas já está decidida de antemão, congelada numa imagem a ser alcançada.
Mas, se não se deve fazer imagens da sociedade justa, é possível dizer por que a nossa sociedade é injusta, é possível dizer por que a "ordem" na qual vivemos não está "em ordem". Isto é o que Adorno denomina "ontologia do estado falso". E o modo de apresentação desse estado falso é o que ele chama de "dialética negativa". Estes conceitos filosóficos básicos do pensamento de Adorno estão ancorados num determinado diagnóstico do que seja a sociedade em que vivemos, vale dizer, uma sociedade capitalista. Adorno ainda qualifica um pouco mais esse sistema social: trata-se para ele do "capitalismo tardio".
E aqui já se mostra melhor por que esse "capitalismo tardio" não está "em ordem". As formas anteriores do "capitalismo" (como se queira chamá-las: clássica, concorrencial, monopolista etc.) tinham uma característica marcante: elas apontavam para além de si mesmas, continham em si mesmas a possibilidade da sociedade justa. A característica marcante do "capitalismo tardio", segundo Adorno, está em circunscrever um sistema social que se fecha sobre si mesmo, que bloqueia qualquer possibilidade de superação virtuosa da injustiça atual. Nenhuma ação, seja empreendida pelo indivíduo ou pelo coletivo, é capaz de alterar a lógica profunda que rege esse sistema injusto.
O "capitalismo tardio" é, portanto, para Adorno, paradoxal. Não é necessário que nenhuma pessoa passe fome sobre a Terra. A capacidade de produção de alimentos é mais do que suficiente para atender a todos. E ninguém em seu juízo perfeito pode desejar que outra pessoa passe fome. E, no entanto, a fome é uma realidade cotidiana para dois terços da humanidade. O paradoxo se explica (mas não se dissolve) pelo fato de as relações sociais típicas do capitalismo tardio estarem congeladas como se fossem "naturais": as relações sociais são interpretadas por nós, habitantes do capitalismo tardio, como se fossem a mesma coisa que o "destino". A forma mais comum desse pretenso "destino" se chama "mercado": o "mercado" funciona assim, ou o "mercado" quer assado.
Mas, até aqui, nada distinguiria essa fase "tardia" do capitalismo de suas outras fases. O distintivo aqui está em que não há, para Adorno, elementos que permitam destruir o "capitalismo tardio" num sentido positivo, no sentido de criar a sociedade verdadeiramente justa. Esta é a "novidade" do capitalismo tardio frente a suas fases anteriores: ele paralisa a ação genuinamente transformadora.
Isto ocorre porque o velho paradigma do capitalismo liberal -o da auto-regulação do mercado- não mais se aplica, na visão de Adorno, e o novo mecanismo que o substituiu é ainda mais opaco. O sistema econômico no capitalismo tardio é controlado de fora, politicamente, e, no entanto, esse controle político não é exercido de maneira transparente. Esse controle é exercido burocraticamente, segundo a racionalidade própria da burocracia. Esta racionalidade chama-se, na linguagem de Adorno, "instrumental": trata-se de uma racionalidade que pondera, calcula e ajusta os melhores meios a fins dados exteriormente ao agente. A sua lógica é a do sucesso ou fracasso. A sua lógica é a da administração. Daí que Adorno utilize também a expressão "mundo administrado" como quase sinônimo de "capitalismo tardio".
Historicamente, o grande projeto de emancipação da razão humana esteve sempre colocado na determinação racional dos fins, ou seja, no debate e na efetivação daqueles valores julgados belos, justos e verdadeiros. No capitalismo tardio, a razão se vê reduzida a uma capacidade de adaptação a fins dados de antemão, vê-se reduzida à capacidade de calcular os melhores meios para alcançar fins que lhe são estranhos. Esta racionalidade é dominante em nossa sociedade não apenas por moldar a economia, o sistema político ou a burocracia estatal: ela faz parte de nossa socialização, de nosso processo de aprendizado, da formação de nossa personalidade.
Esta é a razão pela qual o capitalismo tardio se fecha sobre si mesmo sem falhas. Para criticá-lo, para destruí-lo, é preciso lançar mão da mesma racionalidade que o constitui, o que o reforça em lugar de abalá-lo. Esta também é a razão pela qual a filosofia de Adorno é difícil: é uma filosofia que pensa contra o pensamento, que se vira contra nossas próprias estruturas de pensamento, denunciando o conluio da forma de nossa racionalidade com a forma de dominação vigente.
É uma filosofia radical, sem dúvida. Radical naquele sentido já desvendado pelo jovem Marx: ser radical é tomar as coisas pela raiz; e, nas coisas humanas, a raiz é o próprio homem. Mas, diferentemente de Marx, para Adorno a porta da práxis, da ação revolucionária, está fechada por tempo indeterminado. Diferentemente de Marx, a teoria não é capaz de detectar, de iluminar na sociedade injusta os germes da nova sociedade verdadeiramente racional.
Essa radicalidade do pensamento de Adorno permitiu-lhe jogar luz, como nenhum outro antes dele, sobre as patologias da nossa modernidade e sua racionalidade peculiar. Adorno percebeu bem cedo que a racionalidade instrumental tinha uma lógica de expansão que exigia um aumento e uma complexificação constantes dos mecanismos de controle social.
Sua perspectiva radical pinçou e colocou sob a lupa aqueles elementos aparentemente insignificantes que constituem a "ordem" de nosso cotidiano. Adorno não queria negligenciar nada. Escreveu sobre tráfego, sobre propaganda, sobre a televisão nascente, sobre o misticismo dos horóscopos, como também sobre o significado de Hedda Gabler, sobre a dialética de Hegel. Não há assunto "menor", se se trata sempre de denunciar uma forma de racionalidade que não apenas se torna mais e mais hegemônica, mas que sufoca qualquer alternativa, qualquer transformação.
Como escreveu Adorno junto com Max Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento" (Jorge Zahar, págs. 221-222): "Se o pensamento não se limita a ratificar os preceitos vigentes, ele deverá se apresentar de maneira ainda mais segura de si, mais universal, mais autoritária, do que quando se limita a justificar o que está em vigor. Será que você considera injusto o poder dominante? Quem sabe você quer que impere o caos e não o poder? Você está criticando a uniformização da vida e o progresso? Será que, à noite, a gente deve voltar a acender velas de cera? Será que o fedor do lixo deve voltar a empestear nossas cidades, como na Idade Média? Você não gosta dos matadouros, será que a sociedade deve passar a comer legumes crus?". O poder da racionalidade instrumental não está simplesmente em estabelecer verdades: seu poder está em reduzir toda racionalidade ao "ou isto ou aquilo", sempre uma alternativa entre a ordem vigente e um despautério.
É também neste contexto que se deve entender o célebre conceito de "indústria cultural", cunhado por Adorno e Horkheimer em 1944. Não se trata apenas de constatar que o capital se expande para a área da cultura, criando o "show business" e a "indústria do entretenimento". Adorno pretende entender esse fenômeno também como uma contrapartida necessária da lógica do mundo administrado.
A cada vez maior necessidade de controle social exigida pela lógica do capitalismo tardio impõe o controle também do período de "lazer". Os "produtos culturais" postos à disposição dos "consumidores" servem para mantê-los alertas e treinados, além de garantirem que a "ordem" do mundo será sempre confirmada como ordem inabalável das coisas. A arte não se torna apenas integralmente mercadoria, mas também se mostra como eficiente mecanismo de treinamento e de controle social.
Mas, se é assim, se a única tendência real constatável para Adorno é a do aumento do grau de controle social despersonalizado, que lugar ainda pode restar para a política e, mais especificamente, para a ação política? Não há possibilidade, para Adorno, de fazer imagens do que seria um mundo "em ordem". Também não é possível identificar neste nosso mundo falso os germes do mundo verdadeiro que deveria sucedê-lo. Desse modo, resta ao filósofo reiterar a cada vez maior perda de liberdade da sociedade. Cabe a ele prosseguir denunciando o absurdo real do capitalismo tardio, na esperança de que a porta para a práxis se abra novamente um dia.
Com razão, portanto, diz-se que o pensamento político de Adorno é o da hibernação, ainda que seja uma hibernação de olhos bem abertos. E a lição e a atualidade do pensamento de Adorno estão em que, mesmo se se julgar indefensável a hibernação política, qualquer um que pretenda hoje fazer uma política de cunho verdadeiramente transformador não pode deixar de lado as lições radicais de Adorno quanto às raízes de nossas patologias sociais.
Este é justamente o caso do mais importante discípulo de Adorno, Jürgen Habermas, de quem o Mais! publicou um artigo (em 18/7/99) em que este filósofo discutia as possibilidades da política sob o impacto da globalização econômica. Nesse texto, podemos ver em ação o herdeiro do pensamento de Adorno, consciente de que as patologias do capitalismo são produto do próprio funcionamento desse sistema e não uma "falha" qualquer de operação. Mas, diferentemente de Adorno, vemos também em Habermas a preocupação em discernir os elementos potencialmente emancipatórios presentes no capitalismo, elementos que devem ser, segundo ele, preservados e cultivados.
Na visão de Habermas, o essencial está em que o Estado social do pós-guerra na Europa trouxe uma nova dinâmica de inclusão igualitária de todos os cidadãos que deu nova dimensão política ao processo democrático. Interessante notar que Adorno, ainda que de maneira extremamente ambígua, tendeu a qualificar essa mesma formação histórica (o chamado "Estado de Bem-Estar Social") como um passo no caminho do "mundo totalmente administrado".
Para Adorno, os avanços democráticos registrados por Habermas são, no limite, mero exercício administrativo e só fazem reforçar estruturas de poder injustas, sem transformá-las. Habermas quer nos convencer de que a esfera pública, apesar de todos os entraves que inegavelmente contém, dispõe ainda de uma boa margem de manobra para que o desenvolvimento social esteja não apenas submetido ao controle público, mas também a serviço de escolhas vitais obtidas por processos comunicativos.
Seja como for, de uma perspectiva adorniana ou habermasiana (ou de outras perspectivas ainda), a questão colocada por Habermas merece ser enfrentada: "Será que essa forma de atuação democrática das sociedades modernas sobre si mesmas deixa-se ampliar para além das fronteiras nacionais?". E o mais interessante é que Adorno nos dá e nos tira, ao mesmo tempo, a base a partir da qual podemos responder à questão.


Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de "A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno" (Iluminuras/ Fapesp).

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