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Leia resenha do historiador francês inédita no Brasil
Braudel analisa Caio Prado Jr.
da Redação
Leia a seguir uma resenha publicada pelo historiador Fernand
Braudel em 1948 e ainda inédita
no Brasil sobre dois livros de Caio
Prado Júnior (1907-1990), obras
que se tornaram reflexões clássicas sobre o país: "Formação do
Brasil Contemporâneo" e "História Econômica do Brasil". O texto
é um dos destaques da revista
"praga" (tel. 0/xx/11/543-0653),
que será lançada no final deste
mês e traz ainda artigos de Celso
Furtado, José Luís Fiori e João
Adolfo Hansen, entre outros.
Fernand Braudel (1902-1985),
que no início da carreira -entre
1935 e 1937- deu aulas na USP, é
um dos mais importantes historiadores do século, autor, entre
outros, de "O Mediterrâneo e o
Mundo Mediterrânico".
FERNAND BRAUDEL
Caio Prado Júnior nos oferece
dois excelentes livros sobre o Brasil. Um deles constitui a melhor
história econômica de que dispomos sobre seu país; o outro é o
início de uma obra que se anuncia
-e que esperamos monumental- sobre o Brasil de hoje. Dois
livros, dois esboços, dois percursos diferentes, de calibres igualmente distintos, mas no mesmo
tom. Cabe indagar: no mesmo
tom científico?
Inspirados na "dialética materialista" e com um vigor singular,
acentuam os "processos" da história. Poderíamos dizer, as correntes e os fluxos da vida em que o
passado não cessa de inflar e de
alimentar o instável e efêmero
presente. Correto, toda história
implica uma filosofia, conforme
esclarece nosso autor no vigoroso
prefácio de "História Econômica
do Brasil". Quanto a isso, não procuraríamos desavenças. Não há
paisagem, nem história, sem posto de observação. Isso vale tanto
-se não mais- para nossas incertas ciências humanas, quanto
para as ciências da natureza. Trata-se, rigorosamente, de considerar a posição do observador.
Perdoem-nos esses alertas, não
há razão para desenvolvê-las aqui
nos "Annales". Desnecessário
afirmar o que há de justo, forte e
eficaz na dialética materialista
aplicada à história; graças a ela, o
manto da nossa disciplina foi iluminado. Isto é uma verdade trivial. Não é preciso lembrar quanto, nos "Annales", temos combatido pró e contra esses esclarecimentos, às vezes úteis e novos,
mas também terrivelmente deformadores quando realizados sem a
devida atenção.
Em todo caso, se o debate teve
que ser reaberto, não vamos dispensar apressadamente dois livros vigilantes, repletos de méritos e cheios de riquezas. Uma crítica, que seria também a defesa
dos nossos pontos de vista, revelar-se-ia tremendamente infeliz.
Apesar da prévia opção filosófica,
Caio Prado é, para bem e para
mal, um historiador nato. Trata-se de um observador habituado a
checar as fontes, a confrontar a relação entre os fatos, a avançar
com prudência e, principalmente,
atento à vida múltipla dos homens, que confunde os teóricos,
sempre caprichosos, mesmo em
relação às causas mais profundas
e determinadas...
Nesses livros, que ninguém se
deixe enganar pelo tom voluntariamente despojado de paixão exterior, de poesia fácil e pitoresca.
Mal-disfarçados, deixam entrever
uma violenta paixão pelo imenso
país, do qual estudam a infância e
adolescência, com aguda inquietação pela verdade, inteligência e
honestidade -que ainda é a melhor maneira de amar os homens,
onde quer que estejam. Compreender o Brasil, decifrar suas
origens, diagnosticar seus males
de maneira científica, válida, distante das vias fáceis e incertas do
ensaio, das veredas da pura poesia, das instituições... Logo se verá, se não agora (ninguém é profeta em seu país), que tais livros tendem a germinar, tomando assento na linhagem das grandes e belas obras nas quais o Brasil busca
descobrir sua verdadeira face,
desde Euclides da Cunha até Paulo Prado e Gilberto Freyre. Sinal
de novos tempos: nessa explicação nacional, sempre reiniciada,
os historiadores substituíram os
poetas, filósofos e ensaístas. Deixemos de lamúrias.
Foi para o ativo Fondo de Cultura Económica do México que
Caio Prado escreveu -primeiro
em espanhol- esta história econômica do Brasil a que nos referimos na edição em português. Ela
se apresenta sob a forma de um livro claro, rápido, de 300 e tantas
páginas, em que forçosa e deliberadamente os fatos do passado
são expostos em grandes linhas. O
autor, que não aprecia painéis,
narrativas rebuscadas e quadros
construídos de cima para baixo, é
bastante feliz em seus sucintos resumos, nos quais o importante é
destacado com precisão e dito
com vigor.
Oito capítulos cronológicos
conduzem o leitor do princípio
do século 16 aos tempos atuais:
"Preliminares (1500-1530)"; "A
Ocupação Efetiva (1530-1640)";
"Expansão Colonial (1640-1770)";
"Apogeu da Colônia (1770-1808)"; "A Era do Liberalismo
(1808-1850)"; "O Império Escravocrata e a Aurora Burguesa
(1850-1889)"; "A República Burguesa (1889-1930)"; "A Crise de
um Sistema (1930 até hoje)". Nota-se rapidamente que Caio Prado
não conferiu aos capítulos, todos
com enfoques excelentes, os supostos títulos sobre o pau-brasil,
o açúcar, a pecuária, o ouro, o café, a borracha, o algodão... Esses
títulos são reveladores.
A história econômica não é para
Caio Prado um campo fechado,
mas uma história interligada,
mesclada e intimamente vinculada à vida política e à evolução social. Não será aqui, nos "Annales", que protestaremos. Imagino
que outro historiador marxista
não hesitaria em decompor, em
uma parte, a massa viva da história do Brasil, reservando o etéreo
em suas formas diversas para a introdução (e seria necessário comentar tais introduções...).
Poder-se-ia afirmar que a novidade reside no estudo do último
século, de 1850 aos nossos dias, ou
ainda no mais de meio século que
vai da revolução de 1889 e da queda do Império de d. Pedro 2º até
hoje? Esse penúltimo capítulo do
livro se subdivide em cinco tópicos, sucessivamente: o apogeu de
um sistema (advento de uma burguesia de negócios, triunfo do capitalismo estrangeiro e consolidação de uma corrente de exportação de produtos primários); uma
crise de transição (entendida,
principalmente, como a crise financeira que é a consequência
crônica do sistema, oscilações no
câmbio, quase bancarrota, consolidação do enorme montante da
dívida externa); expansão e crise
da produção agrícola (um destacado estudo sobre o comércio do
café); a industrialização; o imperialismo (esse título, sem epítetos,
parece-me muito discutível,
mas...).
Todas essas questões mereceriam um exame cuidadoso que
não podemos desenvolver aqui.
Seria desejável que uma tradução
francesa colocasse essas riquezas
ao alcance de nossos leitores, professores, especialistas e do público
esclarecido da política e dos negócios. Insurjo-me contra qualquer
explicação da indústria brasileira
que, como indica Caio Prado, não
considere suas curiosas origens.
Mais do que um nacionalismo
econômico, não foi a instável política alfandegária que originou
uma indústria artificial, sem perspectiva de conjunto e que ainda se
ressente do passado?
Na verdade, o que a análise dessas descrições densas e inovadoras revela é a atenção do autor ao
conjunto da paisagem histórica
(uma vez que o Brasil menos conhecido é o de ontem e o de hoje,
deformado ano após ano pelos
desconcertantes e ininterruptos
fogos de artifício das inovações
econômicas e humanas). Isso o
leitor percebe nos demais capítulos do livro, bem como a clareza, a
sutileza das análises e explicações.
Exemplo: em 1889, há cem anos
de distância, a revolução brasileira segue a grande Revolução
Francesa. Simples acidente, dirão
alguns; apenas um golpe militar,
com a participação de alguns civis, afirmarão outros. O povo brasileiro permaneceu inerte, bestializado, na expressão de um dos
fundadores da República, "sem
consciência alguma do que se
passava". Simples acidente.
Entretanto, com ele tudo muda
na história do imenso país. Completa-se uma evolução lentamente preparada. Sob o impacto das
novas águas, rompem-se todos os
diques (incontáveis) do conservantismo imperial. Assim, o militar é introduzido na cena política,
por anos a fio. Melhor e mais característico da nova época são os
homens de negócios, alçados pela
República a uma posição dominante, cheios de importância. O
Império, entendido aqui não apenas o regime político, mas a sociedade imperial, a atmosfera da vida brasileira, sempre lhes fora
contrário. Mauá, esse extraordinário corretor de negócios, por
quem Henri Hauser tem tanto interesse, foi posto no índex do Império... Outros tempos, outros hábitos: nos primeiros anos da República, até mesmo os áulicos do
Império lançaram-se às especulações e empreendimentos. Vê-se
com esse exemplo, rapidamente
tratado, mas suficientemente esclarecedor, que Caio Prado sabe
observar, ponderar suas explicações -e que, embora tão distante
de nós, segue a mesma trilha dos
"Annales".
Supõem-se que tenha algumas
restrições. Elas derivam de divergências no enfoque inicial. Aquilo
que um brasileiro -penso em
Gilberto Freyre- entrevê como
tendência a explicar a história do
Brasil de dentro para fora (e é seu
direito e mesmo dever), imputando-lhe maior responsabilidade
por seu destino do que teve realmente. Cada parte do planeta reflete a história do mundo todo,
sofre-a, acomodando-se a ela. Por
mais atento que Caio Prado esteja
à vida desse vasto conjunto, à intervenção dos grandes trustes
bancários, por exemplo, limita-se
muitas vezes ao horizonte brasileiro. Esse, de tão amplo, torna-se
uma prisão para o historiador.
Por que Caio Prado não dá maior
atenção à história do Atlântico
Sul? Para o Brasil, o oceano não é
o instrumento de sua ligação com
o mundo? Acredito, como ele, que
a uma economia brasileira, feita
pelo homem brasileiro, se opõe
dramaticamente uma economia
imposta de fora, inumana, ligada
ao "imperialismo" mundial. Essa
distinção ilumina uma série de
pontos e fatos notáveis. Afinal, o
Brasil não está condenado a abrir-se para o mundo, como todas as
partes do globo?
A organização do livro merece
algumas ressalvas. Tendo seguido
um caminho cronológico, Caio
Prado não foi levado a acentuar
antes a mudança, em detrimento
daquilo que persiste? Assim, para
falar como Gaston Roupnel, mais
do que uma história estrutural,
nos é oferecida uma história conjuntural.
E ainda mais: por inclinação, e
também por hábito, Caio Prado,
salvo engano, crê antes na história, nas realidades vivas da relação
das coisas entre si, do que nas coisas mesmas. Procura, por instinto, os cruzamentos e as fronteiras,
a maneira como a história econômica reencontra a política e a vida
social, mesmo que comprometa o
desenvolvimento claro da argumentação. Também esteve pouco
atento ao problema dos preços,
abordado obliquamente, sem
ocupar-se devidamente com as
crises cíclicas e intercíclicas, sempre presentes na matéria econômica e humana do Brasil. Nesses
domínios, o grande livro de C. E.
Labrousse, intelectualmente tão
revolucionário, não teve tempo
de despertar curiosidades e reações do outro lado do Atlântico.
Haveria muito a dizer sobre esta
magnífica análise do Brasil contemporâneo, da qual Caio Prado
nos deu o primeiro volume. Considero o livro mais rico e aberto
do que o estudo de história econômica. Mas o que Caio Prado
nos oferece é apenas uma introdução; um balanço do Brasil colonial, do qual o país é o filho legítimo, um e outro, diz, não emancipados. É em nome dessa herança
viva, mesmo quando transformada, que este primeiro volume, dedicado à atualidade, inicia um balanço amplo, minucioso e inteligente dos três primeiros séculos
europeus do Brasil.
Voltam-se as costas para a atualidade, mas para melhor apreendê-la. A matéria viva do Brasil
atual é uma sucessão de transformações. Contudo ainda não encontrou os marcos nos quais se
amalgamar de forma minimamente durável: "Sente-se a presença de uma realidade já muito
antiga que até nos admira de aí
achar e que não é senão aquele
passado colonial". Daí a necessidade de estabelecer construtivamente um marco, no início do século 19, mas não apenas para oferecer um quadro da história. O
autor, repito, não aprecia essas
histórias imóveis, dissociadas do
tempo, cronologias superficiais e,
portanto, inconsistentes e irreais.
Para ele a história é movimento,
agitação, hidrografia viva. O início do século 19, em que tudo se
precipita, não é apenas a topografia das partes visíveis. É também o
manancial de onde partem os
veios d'água e os rios, toda essa
ebulição da vida fustigada pelo
tempo.
Três partes amplamente concebidas: o povoamento, a vida material, a vida social. Esses títulos
revelam apenas parte do dinamismo dos estudos. Podemos afirmar seu rico conteúdo ou escolher alguns filões, algumas páginas de testemunho. Um livro como este se lê com paixão, explora-se como uma mina de fatos e de
idéias. Difícil resumi-lo. Posso
afirmar que o considero muito
breve, apesar de sua amplitude?
Apreciaria um estudo que atentasse mais para as ligações entre o
homem e o meio brasileiro e que,
geógrafo de formação e vocação,
Caio Prado poderia e deveria escrever. Eis um grande tema, o das
relações entre o homem e a terra
brasileira. E, sempre na minha
opinião, talvez ainda falte a esta
brilhante análise um estudo sistemático da civilização, conduzido
segundo as idéias inovadoras de
Lucien Febvre e Marcel Mauss,
para além das habituais e estéreis
rotinas...
Tradução de Paulo Henrique Martinez e
Bernardo Ricupero.
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