São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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A ERA DA INCERTEZA


Filmes de espionagem tiveram seu maior boom com o nazismo e comunismo, atraindo diretores como Hitchcock, mas a maior transformação do gênero ocorreria com o surgimento de James Bond nos anos 60


Inácio Araujo
Crítico da Folha

Espiões, seres ambíguos por excelência, se dão bem com a imagem cinematográfica, ela também carregada de ambiguidade. São seres quase sempre duplos, assim como as imagens, que sempre transmitem mais de um sentido.
Tomemos um dos mais ilustres deles, Philipp Vandamm, interpretado por James Mason, em "Intriga Internacional" ("North by Northwest", 1959). Esse homem poderia transitar em qualquer ambiente, com sua elegância, finesse e cortesia.
No entanto, no filme de Hitchcock, Thornhill é um espião com intenções sinistras, embora nem saibamos ao certo a quem serve. Basta saber que serve a alguém e que sua capa de civilidade é antes de tudo um disfarce. Se observarmos seu rosto com atenção, veremos que a crueldade é tão presente ali quanto o cinismo e a perversidade. Além de Hitchcock, outro mestre do cinema que se dedicou com intensidade ao gênero foi Fritz Lang. Se Hitchcock colocava a ênfase sobretudo nos personagens, a Lang interessavam antes de tudo as situações, isso desde o cinema mudo, quando fez "Spione" (1928): ali, como em boa parte dos filmes de Lang dos anos 20, a pretensão de um homem de tomar conta do mundo é o centro dos acontecimentos.
O nazismo, primeiro, e o comunismo, em seguida, foram os grandes incentivadores do gênero. Hitchcock dizia que a Guerra Fria era, para ele, uma mão na roda, à medida que lhe propiciava a atmosfera de incerteza em que ambos, público e personagem, são jogados nesses filmes, ainda que não raro seja quase indiferente saber para quem trabalham os espiões (é assim em "Os 39 Degraus", também de Hitchcock, feito na Inglaterra, antes da Segunda Guerra, por exemplo). No período do chamado esforço de guerra, no entanto, esses espiões são, inequivocamente, infiltrados a serviço da Alemanha (como em "O Sabotador", de 1942).
A Guerra Fria motivou alguns belos trabalhos, ainda no período da "caça às bruxas", nos EUA, começando por "Anjo do Mal" ("Pickup on South Street", 1953), de Samuel Fuller, em que um batedor de carteiras se apossa inadvertidamente de preciosos microfilmes destinados a um espião soviético. A rede de espionagem russa pinta e borda, na tentativa de reaver as preciosas informações ali contidas.
Esse clima de incerteza, a insegurança sobre quem é, verdadeiramente, a pessoa ao nosso lado, favorecia de maneira impressionante os filmes de espionagem. E o espião nem sempre era um inimigo: o Paul Newman de "Cortina Rasgada" ("Torn Curtain",1966, de Hitchcock) é um cientista americano que se infiltra na Alemanha Oriental em busca de uma complexa fórmula.
A história do filme de espionagem foi mudada para sempre, para o bem ou para o mal, desde que James Bond entrou em cena, em 1962, na pessoa de Sean Connery, dando ao espião o estatuto de aventureiro charmoso, capaz de enfrentar os perigos mais implausíveis sem perder a pose e, com igual desenvoltura, conquistar todas as garotas ao seu redor.
Se Bond colocou os espiões na moda, como esperar que Jean-Luc Godard deixasse passar o fato em branco? Também ele criou seu agente secreto, o Lemmy Caution (Eddie Constantine) de "Alphaville" (1965). Na verdade, trata-se de um espião a serviço dos "países exteriores" que defende, em última análise, a poesia do mundo contra a ditadura tecnocrática de Alphaville (uma espécie de somatória de EUA e URSS). Bem à moda de Godard, no entanto, Caution é uma mistura de jornalista, agente secreto e espião, assim como a espionagem é um pretexto num filme com aspectos de ficção científica e policial "noir".
Com o fim da Guerra Fria, a importância da espionagem perdeu intensidade, e passaram a pontificar quase brincadeiras, como "Missão Impossível", de Brian de Palma, que resgata uma antiga série de TV, ou "Homens de Preto", de Barry Sonnenfeld, este último misturando também ficção científica e comédia. Agora como antes, raras vezes o cinema soube ver a espionagem como realmente é, ou seja, um negócio sujo e ingrato. Uma exceção a notar: "O Espião que Saiu do Frio" (1965), de Martin Ritt.


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