São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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INTELIGÊNCIA À LUZ DO DIA



O coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp analisa a dificuldade de lidar com os estigmas deixados pelos órgãos de informação brasileiros, como o SNI


Caio Caramico Soares
da Redação

Como conciliar eficácia e transparência nas atividades de inteligência? Cada vez mais problemática no Primeiro Mundo, com a escalada da paranóia antiterrorista, essa equação é especialmente grave no Brasil. A experiência de dois regimes autoritários no século 20, em 1937-1945 e 1964-1985, parece ter ligado o conceito de inteligência, no país, a abusos e ilegalidade. Daí o poder público deixar de dispor de um instrumento vital para desafios como o combate ao crime organizado. Tais teses são defendidas na entrevista a seguir pelo estudioso Geraldo Cavagnari, 68. Ele é coronel reformado do Estado-Maior do Exército, órgão em que atuou como professor e analista nas áreas de inteligência estratégica e estratégia, entre 1979 e 86. É também coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas.

O terrorismo é uma ameaça concreta ao Brasil?
Não, nem o terrorismo islâmico. Podemos considerá-lo uma possibilidade teórica, mas na realidade essa possibilidade não existe.
Por que a criação da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), em 1999, gerou tanto mal-estar no Congresso e na sociedade civil?
Por causa do contencioso histórico que o mundo político no Brasil teve com o SNI. Eles não queriam que se estivesse recriando o "monstro" em que se tornou o SNI, nas palavras do [general] Golbery do Couto e Silva. Mas a Abin foi a ressurreição do SNI, só que com o cuidado de afastar toda possibilidade de no futuro ser mal empregada.
Como garantir isso?
Houve a necessidade de exercer um duplo controle sobre a Abin. Um controle técnico, para garantir que o órgão ao mesmo tempo seja eficiente e não saia dos trilhos, isto é, não realize ações que não sejam autorizadas. Quanto ao controle político, quem o exerce é o Congresso, que tem que ter uma comissão voltada à inteligência e que vai controlar o orçamento, as atividades de inteligência no exterior etc. Você tem de criar uma cultura no Congresso: essa comissão tem de ser representativa dos vários partidos e, ao mesmo tempo, tem de haver o compromisso de que o assunto ali discutido não saia dali nem no âmbito do respectivo partido.
Quem no Brasil é hoje alvo de operações de inteligência?
Um exemplo é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Por quê? Por que os órgãos estão tomando papel policial? Não. Porque, se esse movimento chegar a ponto de poder quebrar a ordem constitucional, o Estado democrático de direito, é óbvio que esses órgãos têm a oportunidade de informar o governo a respeito. Todo movimento reivindicatório que tem uma certa natureza revolucionária, é óbvio que você tem que ter um acompanhamento cerrado deles, para que o país não venha a ser surpreendido no futuro. Isso se faz em qualquer parte do mundo.
Isso pode envolver inclusive o uso de espionagem?
Sim, pode envolver o emprego de agentes. Mas às vezes não é necessário. Como o MST tem uma ação muito aberta, ostensiva, basta o noticiário dos jornais para você saber o que está ocorrendo.
Partidos políticos também podem ser acompanhados?
Não, partido não tem o que acompanhar, partido é acompanhado pelos jornais. Não precisa disso.
Tendo em vista a força do crime organizado, como avalia o desempenho dos sistemas de inteligência no Brasil?
Os governos civis que sucederam ao regime militar não estão acostumados a trabalhar com esse tipo de atividade, assim como na área de segurança pública, que foi abandonada há muito tempo. Nós estamos colhendo o fruto da negligência, do desleixo, do relapso em relação a ela. Governadores e presidentes da República tinham, eu diria, um nojo, um desprezo, em lidar com esses temas. Hoje eles são obrigados a arregaçar as mangas e ver que a segurança pública é agora a mais alta prioridade do país. E grande parte da eficiência da polícia no combate ao crime organizado passa por uma boa inteligência.
Como vê o episódio, revelado pela Folha, da infiltração, pelo Gradi (Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância), de presos em grupos criminosos, em SP?
O combate ao crime tem que ser implacável. Usar bandido contra bandido não é inédito. Isso se faz nos países mais civilizados do mundo. Mas retirar bandidos da cadeia para serem infiltrados dentro de um grupo, isso só pode ser feito com autorização judicial. O juiz que der essa autorização não estará pecando. Nós temos que ser mais realistas, não podemos ser formalistas quanto ao que é legal ou não.
A campanha eleitoral tem sido marcada por denúncias de uso de espionagem com interesse político. A Polícia Federal e a Abin são suscetíveis de tais manipulações?
O que eu sei é que a Polícia Federal estava já na cola de Roseana Sarney muito antes da candidatura dela; foi uma ação conjugada à ação do Ministério Público. Não há nada de ilegal aí. Pode ter havido uma exploração política? Se eles tinham esse conhecimento bem antes, tinham que ter divulgado aquilo bem antes. Se eles esperaram para divulgar aquilo num momento político propício para o candidato do governo, isso foi um erro político gravíssimo.


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