São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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Ponto de Fuga

Através da matéria

Jorge Coli
especial para a Folha

Fayga Ostrower não gostava da palavra "suporte", tal como é usada no jargão artístico, sobretudo quando se refere ao papel, nas artes gráficas, na aquarela, no guache. Ela dizia que o papel é integrante de uma forma, é matéria concreta, trabalhada pelo artista. Basta, porém, percorrer sua obra para que esta outra palavra, matéria, pareça grosseira.
A arte de Fayga Ostrower depura sugestões sólidas, reduz densidades e pesos, como se formas e cores existissem habitadas por uma transparência sem corpo. Desde seus inícios figurativos e engajados, essa característica se mostra essencial. Há mesmo uma curiosa inversão, bastante inexplicável. A água-forte "Grupo na Favela", de 1950, pode servir de exemplo. Água-forte é uma técnica em que incisões permitem dosar as sombras. Quanto mais aproximados e numerosos os traços, mais escuro se obtém. Naquela gravura, porém, as sombras, que deveriam ser densas, deixam-se adentrar pela luz de modo muito sutil. Como se o sombrio não fosse considerado, como se, mesmo no mais escuro, a mão da gravadora buscasse sempre a claridade.
Fayga Ostrower ensina que o papel é matéria para o artista, mas sua obra nos diz que essa matéria é a luz, dando vida a arcabouços em tensão, a negrores vencidos, a cores sempre delicadas, mas impondo uma verdadeira alma luminosa. No apogeu criador da artista, é ela sempre a substância primordial, atravessando tons, penetrando espessuras, varrendo formas. Todo gravador sabe que no branco do papel encontra-se a luz. Fayga Ostrower faz dela o lugar de sua arte.

Perene - Fayga Ostrower empenhou-se no projeto de um livro consagrado à sua arte. Morreu em 12 de setembro de 2001, bem antes de vê-lo terminado. Carlos Martins levou a termo sua organização e publicação ["Fayga Ostrower", editora Sextante Artes, 194 págs., R$ 89]. Além de textos justos, esclarecedores, comovidos, apresenta reproduções de obras, em alta qualidade, boa escolha e grande número. Permite intuir e compreender a beleza dessa arte maior.

Excursão - É possível indicar lacunas muito importantes na lista dos artistas presentes. É possível assinalar o risco que representa pôr obras "em contexto" cultural e histórico. Pode-se arguir que a música erudita foi esquecida, que a literatura não teve a parte que mereceria, que as evocações do passado são incompletas. Não importa. A exposição "Caminhos do Contemporâneo", que está no Paço Imperial do Rio de Janeiro até 6 de outubro e que deve vir em seguida para a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, é um acontecimento maior.
Ela busca percorrer trilhas da arte feita no Brasil entre 1952 e 2002. Apresenta mais de 400 obras. Propõe uma ordenação um pouco exterior, por décadas. Reúne documentos evocadores de cada período. Impõe-se pela força das obras, permitindo uma idéia muito alta da arte brasileira dos últimos 50 anos. Cada artista surge com presença forte, estimulado pelos que estão ao lado, pelos que foram vistos antes, e preparam a compreensão dos seguintes. Formam, de fato, caminhos.
A exposição exime-se, deste modo, de uma exigência estritamente enciclopédica ou didática, para assumir escolhas significativas, que desenham trajetos convincentes. Mais ainda, consegue, de fato, sugerir climas culturais que alimentaram a inspiração dos artistas. Afasta certezas afirmativas e sabe incitar interrogações. Os organizadores prometem um catálogo. Se tiver a mesma qualidade da mostra, será uma excepcional ferramenta para o conhecimento da arte no Brasil destes últimos 50 anos.

Cio-Cio-San - No Teatro Municipal de São Paulo, Eliane Coelho foi, recentemente, uma "Mme. Butterfly" de que não se esquece. A beleza do timbre, a projeção da voz nas mais sutis modulações, o sentido dramático e musical que ela demonstrou elevaram a pequena gueixa a um personagem trágico e doloroso. Felizes os austríacos, que contrataram essa grande cantora brasileira como artista regular da Ópera Estatal de Viena. Em São Paulo, apesar de um elenco de apoio razoável, sua arte contrastou com uma regência truculenta e uma desconsolada montagem.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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