São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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Hoje, as origens da democracia ocidental costumam ser identificadas em Atenas, mais do que na República Romana, coisa que teria causado espanto aos pais fundadores dos EUA e aos jacobinos franceses
A segunda queda de Roma

Reprodução
Stephen Boyd (Messala) e Charlton Heston (Ben Hur), em cena do filme Ben Hur (1959), de William Wyler


por Michael Lind

A reputação da civilização romana no mundo ocidental nunca esteve pior do que hoje. O legado cultural e político da República e do Império romanos foram extirpados da memória coletiva dos EUA e de outros países ocidentais em grau notável, não apenas por multiculturalistas críticos do cânone ocidental, mas também por supostos tradicionalistas que afirmam defendê-lo. Hoje as origens da democracia ocidental costumam ser identificadas em Atenas, mais do que na República Romana -coisa que teria causado espanto aos pais fundadores dos Estados Unidos e aos jacobinos franceses. O filósofo e estadista romano Cícero (106-43 a.C.), possivelmente o mais importante modelo histórico na cabeça dos primeiros europeus modernos e republicanos americanos, teve seu lugar tomado pelo líder ateniense Péricles como ideal de estadista ocidental. A arte da retórica, vista no passado como básica para a cultura republicana, passou a ser associada a políticos pomposos e consultores de mídia desonestos. Quanto ao Império Romano, muitas vezes é visto como a versão antiga da Itália fascista ou da Alemanha nazista do século 20, ou, se a ênfase é sobre a decadência, como um ensaio para a República de Weimar. A reputação da literatura romana não vem se saindo melhor do que a do governo romano. Autores romanos como Virgílio, Horácio, Sêneca e Plauto são frequentemente descritos, em tom displicente, como imitadores de segunda categoria dos gregos. Os três maiores poetas épicos do Ocidente são identificados, por consenso, como Homero, Dante e Milton. Embora o épico fosse especialidade romana, Virgílio, Estácio e Lucano são relegados a uma categoria secundária ou ignorados por completo. Em dois séculos e meio, Virgílio (70-19 a.C.) passou de mais importante poeta de todos os tempos a imitador pouco convincente de Homero e, finalmente, a propagandista pago comparável ao escritor pago a serviço de um Estado totalitário do século 20. O dramaturgo romano Sêneca (4 a.C.-64 d.C.), antes reverenciado como filósofo e autor de tragédias, deixou de ser levado a sério pelos estudantes de literatura ou filosofia. A depreciação dos romanos e a promoção dos gregos não têm sido produtos de conhecimento aumentado ou gosto mais refinado. Em lugar disso, é o resultado de um viés anti-romano e antilatino que vem deturpando a cultura européia ocidental e americana desde o final do século 18 -um viés que o modernismo do século 20 herdou do romantismo do século 19 e do neoclassicismo do século 18. Uma reavaliação imparcial do legado romano revela que as tradições artísticas e filosóficas da Antiguidade latina contêm muito do que tem valor para o mundo contemporâneo, ainda que o mesmo não possa ser dito de suas tradições de governo ou política externa. A baixa estima em que Roma é tida hoje parece espantosa quando se considera até que ponto o legado da civilização romana era central à identidade ocidental apenas alguns séculos atrás. Da Idade Média até o final do século 18, os clássicos romanos dominaram o currículo literário ocidental. Antes da Renascença, muitos clássicos gregos, preservados pelos bizantinos e pelos árabes, ainda eram desconhecidos no Ocidente. Dante (1265-1321), por exemplo, só conhecia Homero por sua fama. Mesmo quando um número maior de clássicos gregos se tornou disponível, poucos integrantes da elite ocidental educada em latim estudavam o grego. Foi apenas em 1777 que surgiu uma tradução inglesa de Ésquilo (525-456 a.C.). Apesar do interesse eclético que manifestavam pela tradição grega, além da egípcia e da judaica, os humanistas da Renascença se preocupavam principalmente com reviver a cultura da Antiguidade romana. O arquiteto Andreas Palladio (1508-1580) combinou motivos romanos com a arquitetura vernácula italiana para criar um estilo que tomou o lugar do gótico em toda a Itália e no oeste e norte da Europa. Os estudiosos literários criaram o chamado "latim ciceroniano", um dialeto artificial que empregava apenas palavras usadas por Cícero. Sêneca inspirou a tragédia renascentista, e seus colegas romanos Plauto (254-184 a.C.) e Terêncio (195-159? a.C.) serviram de modelos à comédia renascentista. Uma sucessão de governantes europeus, desde Carlos Magno até Carlos 5º, imperador do Sacro Império Romano de 1519 a 1556, compartilhou o sonho de reviver o Império Romano do Ocidente. Tanto Dante quanto Maquiavel imaginaram um novo Império Romano. Monarcas absolutistas como Luís 14 se retrataram como novos césares. Os republicanos setecentistas nos Estados Unidos e na França identificaram seus novos Estados com a República Romana e se identificavam com estadistas republicanos, como Cincinato, Catão e Cícero, ou com tiranicidas como Brutus. Diferentemente de alguns radicais da Revolução Francesa, a maioria dos pais fundadores da República Americana guardava reservas quanto a tratar a República Romana ou as cidades-Estado gregas como precedentes de uma República nacional e liberal moderna. Em 1791, James Wilson negou que "as nações gregas e romanas" compreendessem "os verdadeiros princípios da liberdade original, igual e sentimental". Ele declarou: "Mas não vamos mais buscar nas histórias antigas os princípios e sistemas da liberdade pura. O final do século 18, no qual vivemos, ensinará a humanidade a ser puramente livre". George Washington (1732-1799) expressou sentimento semelhante em seu chamado por um governo federal mais forte: "O alicerce de nosso Império foi fundado não na idade sombria da ignorância e da superstição, mas numa época em que os direitos da humanidade foram mais bem compreendidos e claramente definidos do que em qualquer outro período".

Estabilidade ausente
Apesar disso, as Constituições estaduais americanas e a Constituição federal de 1787 incorporam o que federalistas de elite, tais como John Adams e os autores dos "Federalist Papers" (Documentos Federalistas, publicados entre 1787 e 1788), consideravam ser as características que conferiam à Constituição romana uma estabilidade ausente nas cidades-Estado repletas de facções da Grécia antiga e Itália medieval: um magistrado-chefe forte e um Legislativo bicameral dotado de Senado poderoso.
Rejeitando essa fórmula, os populistas e democratas radicais americanos identificaram um precedente diferente não na democracia grega, mas na "Antiga Constituição Saxônica" da Inglaterra, cuja assembléia era evocada como modelo de um Legislativo unicameral com membros que cumpriam mandatos de curta duração.
Thomas Jefferson (1743-1826), que acreditava no mito populista dos anglo-saxões democráticos, informou a seu colega e então ex-presidente John Adams, em dezembro de 1819, que estivera lendo as cartas de Cícero: "Quando o entusiasmo (...) despertado pela pena e os princípios de Cícero amainam, dando lugar à reflexão serena, eu me pergunto: "Qual foi o governo que as virtudes de Cícero tanto zelo demonstravam em restaurar, e as ambições de César, em subverter?'".
Adams tinha escrito, certa vez, que "a Constituição romana formou o povo mais nobre e a mais importante potência que já existiram". Mas passou a concordar com Jefferson quanto à visão que este tinha dos romanos: "Nunca pude descobrir se eles eles possuíram verdadeira virtude ou real liberdade em Roma" (essa concessão, entretanto, era menos contundente do que poderia parecer, porque Adams e os outros federalistas acreditavam que instituições como o Senado romano eram mais importantes para a virtude cívica do que assegurar o êxito do governo republicano).
Apesar das dúvidas que nutriam quanto à relevância dos precedentes clássicos para a política, os fundadores dos EUA não hesitaram em fazer uso das imagens da República Romana. Entre outras coisas, essa prática disfarçou o fato de que os EUA eram, em grande medida, um produto orgânico da sociedade inglesa. O próprio nome "república" era uma versão da "res publica" latina. O edifício que abrigava o Legislativo recebeu o nome de Capitólio, não de Parlamento; a câmara superior foi chamada de Senado; um riacho que existia no morro do Capitólio foi batizado, em tom de brincadeira, de Tibre, em homenagem ao rio que atravessava Roma. O Grande Selo dos EUA inclui dois lemas de Virgílio: "annuit coeptis" (ele aprova os inícios) e "novus ordo seclorum" (uma nova ordem dos tempos).
Os inimigos do republicanismo que eles descreveram -a divisão em facções, a avareza, a corrupção, a ambição- eram aqueles identificados por Cícero, Tácito e outros escritores romanos. Mas a vitória das imagens romanas nas revoluções Americana e Francesa marcou o veranico do prestígio romano no Ocidente. No final do século 18, novas tendências na cultura ocidental já solapavam os valores clássicos simbolizados pela Roma republicana e a imperial.

Suposto épico
O primeiro desafio saiu da Escócia. Em 1762, o escritor escocês James Macpherson publicou uma suposta tradução de um suposto épico do século 3º do lendário bardo de língua gaélica Ossian. Constava que os poemas eram uma coletânea de baladas primitivas e não o trabalho refinado de um escritor civilizado. Antes de ser exposta como fraude, a obra inspirou uma moda que se estendeu por toda a Europa. Goethe a elogiou, e Napoleão levou um exemplar dela ao Egito. O influente filósofo alemão Johann Gottfried von Herder (1744-1803) argumentou que também os épicos de Homero se basearam nas canções espontâneas do folclore grego da Antiguidade.
Virgílio, antes preferido a Homero por ser mais civilizado, passou a ser visto como inferior a Homero -pela mesma razão. O neoclassicismo do final do século 18 não foi tanto a fase final do humanismo da Renascença e do barroco quanto o início de um novo primitivismo romântico que iria se manifestar no romantismo do século 19 e no modernismo do século 20. O primitivo passou a ser associado à virtude e à imaginação, e a sofisticação, à imoralidade e ao trivialismo. Entre os escritores gregos, os mais primitivos e sublimes, como Ésquilo, passaram a ter preferência sobre outros, como Eurípedes (484-406 a.C.), demasiado sofisticados para o gosto dos europeus que buscavam tirar férias intelectuais da vida civilizada.
A Alemanha era o epicentro do helenismo romântico. O romantismo alemão era, entre outras coisas, uma declaração de independência da hegemonia cultural e política da França. Como a França se identificava com Roma (tanto a republicana quanto a imperial), a Alemanha optou por seguir o exemplo dos gregos. "Rompeu-se com a tradição latina do humanismo e surgiu um humanismo inteiramente novo, um verdadeiro novo helenismo", escreve o historiador Rudolph Pfeiffer.
Goethe (1749-1832) chamou o século 18 "a era de Winckelmann", identificando-o ao esteta alemão Johann Joachim Winckelmann (1717-68), que transformou a crítica da arte ao atribuir a perfeição da arte grega à perfeição social e até mesmo física dos próprios gregos da Antiguidade. "O mais belo corpo nosso talvez fosse tão inferior ao mais belo corpo grego quanto Íficles foi inferior a seu irmão Hércules", especulou Winckelmann. O humanista Wilhelm von Humboldt (1767-1835) inspirou o sistema educacional da elite alemã do século 19, que fundamentou os currículos universitários e colegiais no estudo dos gregos (o "gymnasium", ou ginásio -escola de ensino médio-, alemão se inspirou na instituição grega que unia a arena de esportes à escola).
Sob a influência do filelenismo alemão, Thomas Arnold, diretor da Escola Rugby entre 1828 e 1842, reformou as escolas secundárias particulares que formaram a elite governante da Grã-Bretanha na era vitoriana.
O culto grego ao jovem atlético (totalmente estranho à cultura romana, simbolizada pelo cônsul de meia-idade ou o general de cenho franzido) influenciou a cultura britânica que gerou os poetas A.E. Housman e Rupert Brooke. Como observou o ensaísta George Steiner, "a saga homérica de guerra e intimidades masculinas, com sua ênfase formidável sobre os esportes competitivos, parece guardar mais relevância do que qualquer outro texto à escola para meninos, à faculdade exclusivamente masculina, ao regimento e ao clube exclusivamente masculinos (configurações cardeais à sociedade britânica, não às sociedades européias continentais)". A helenomania era uma característica que o romantismo inglês tinha em comum com o alemão. A carreira de lorde Byron o levou da Escócia, lar do nobre Ossian, à Grécia, onde morreu combatendo os turcos, em defesa da independência grega. Shelley declarou: "Não fosse por Roma e o cristianismo, todos nós seríamos gregos -sem os preconceitos destes". Todo um gênero menor de literatura romântica era dedicado à nostalgia inspirada pelos artefatos ou as ruínas gregos. Não foi por acaso que Keats escreveu uma ode inspirada por uma urna grega, em lugar de um vaso romano.

O feio Ocidente
Comparações eram traçadas entre a Grécia Antiga, paraíso ensolarado povoado por atletas e poetas, e a cristandade medieval repressora ou o feio Ocidente industrial moderno. Para homossexuais, como Oscar Wilde, ou libertinos, como Algernon Swinburne, a Antiguidade grega representava a libertação das normas sexuais burguesas e cristãs. A civilização romana -imperial, metropolitana, urbana, burocrática- lembrava demais a Europa e a América do Norte contemporâneas para ser usada como contraste com a sociedade do século 19.
Assim que Roma passou a ser vista como símbolo da civilização dessensibilizadora, os românticos antilatinos se apressaram a identificar primitivismo e pureza virtuosos em sociedades tribais, como os antigos celtas, teutões ou eslavos. Na verdade, desde um ponto de vista romântico e nacionalista, a queda de Roma diante da invasão das diversas tribos transalpinas foi uma precondição necessária à formação das nacionalidades européias modernas.
O nacionalismo e o populismo românticos levaram os intelectuais do século 19 a procurar heróis étnicos no folclore camponês e em manuscritos medievais havia muito esquecidos. A Ossian se juntaram o alemão Siegfried, o irlandês Cuchulainn, o inglês Beowulf e o espanhol El Cid, entre outros. Esses novos heróis inspiraram Richard Wagner e William Butler Yeats a criar dramas ambientados na pré-história mítica da Alemanha e Irlanda. E a saga de Beowulf, redescoberta no século 19 em manuscritos esquecidos, tornou-se a base da nova e nacionalista disciplina escolar da "literatura inglesa".
A ascensão da fama dos bardos gregos e dos bárbaros do norte da Europa foi acompanhada pelo rápido declínio na reputação dos escritores romanos. O fantasma de Virgílio, relegado à sombra por Homero, pode não ter sido obrigado a competir com Ossian depois de exposta a fraude de Macpherson, mas encontrou um novo rival em seu admirador Dante.
A maioria dos mais importantes intelectuais literários dos séculos 19 e 20 preferia Dante a Virgílio, cujo fantasma atuou como guia do poeta florentino em seu percurso pelo inferno. Henry Wadsworth Longfellow, que traduziu a "Divina Comédia" para o inglês (1865-67), introduziu o culto a Dante nos Estados Unidos. T.S. Eliot (1888-1965), cuja poesia contém muitos ecos da "Divina Comédia" e que via Dante como o poeta ideal, declarou numa palestra proferida em 1944 que Virgílio "ocupa o centro da civilização européia, uma posição que nenhum outro poeta pode compartilhar ou usurpar" e que "todos nós, na medida em que herdamos a civilização da Europa, ainda somos cidadãos do Império Romano". Mas o classicismo de Eliot era, na realidade, uma espécie de medievalismo romântico anglo-católico que levou o poeta a enxergar Virgílio por intermédio dos olhos de Dante. Eliot estava mais interessado na cristandade latina do que na latinidade pagã, no Sacro Império Romano de Carlos Magno do que no Império Romano de Augusto. A reputação de Cícero e também a de Virgílio sofreram reavaliações drásticas nos séculos 19 e 20. A união, em Cícero, do estadista republicano, advogado, filósofo e mestre da retórica fez dele o herói da elite educada dos primórdios da República dos EUA. Em seu "Defence of the Constitutions of the Government of the United States of America" (Defesa das Constituições do Governo dos EUA, 1787), John Adams declarou que "nem todas as eras do mundo produziram um estadista e filósofo maior, unidos no mesmo personagem". Seu filho John Quincy Adams descreveu o "De Officiis" (Sobre o Dever), de Cícero, como o manual de todo republicano. Graças à influência de Cícero, a principal forma literária americana antes da Guerra Civil foi a oração, não o romance ou o poema lírico. A celebridade alcançada por grandes oradores, como Daniel Webster e Edward Everett, só se tornou possível numa cultura saturada com memórias da Roma republicana. A substituição do orador pelo bardo ossiânico ou xamã como modelo de poeta foi mais uma vitória da estética primitivista compartilhada pelo neoclassicismo, romantismo e modernismo -e mais uma derrota de Roma. A retórica, uma arte grega e helenística levada à perfeição por Cícero e outros romanos, era incompatível com o romantismo. Os românticos equacionavam o retórico com o insincero, e o espontâneo, com o autêntico. Embora a maioria dos grandes poetas românticos continuasse a escrever versos métricos em versões reconhecíveis de gêneros tradicionais, a estética do romantismo alemão, disseminada na Grã-Bretanha por Coleridge e outros, rezava que cada obra de arte deveria ser uma expressão "orgânica" da personalidade do artista ou, no caso dos românticos nacionalistas, do gênio da tribo ou raça. De acordo com a ortodoxia romântico-modernista, "retórico" era o maior insulto que poderia ser empregado em conexão com o trabalho de um poeta, que, se supunha, deveria ser uma efusão espontânea e sincera, não um trabalho de construção verbal arquitetado com uma platéia em mente. Mais ainda do que Cícero, Sêneca foi vítima da reavaliação romântica alemã do passado clássico. O escritor italiano Giraldi Cinthio, que forneceu a Shakespeare as tramas de "Medida por Medida" e "Otelo", escreveu em 1543, falando de Sêneca: "Em quase todas as suas tragédias ele superou todos os gregos que já escreveram -em sabedoria, em gravidade, em decoro, em majestade e em aforismos memoráveis". A tragédia elisabetana foi inspirada pelas tragédias de Sêneca, até mesmo no tocante a sua estrutura em cinco atos, sua violência tenebrosa e seu uso de fantasmas; "Hamlet", de Shakespeare (1564-1616), é uma peça que remete a Sêneca. Como Cícero, Sêneca era admirado não apenas como filósofo, mas também como estilista literário, e foi elogiado por Dante, Chaucer e Montaigne. São Jerônimo o indicou para a canonização, e seu estoicismo influenciou pensadores de ambos os lados da linha divisória da Reforma. Durante um milênio e meio seu lugar esteve seguro ao lado de Virgílio, no pico do Parnaso. No século 20, porém, Sêneca foi desprezado pelos críticos e historiadores literários. Em "The Spirit of Tragedy" (1956), Herbert J. Muller escreveu: "Chama a atenção de quase todos os leitores de hoje a característica tosca de seu drama e seu gosto abominável. É difícil compreender porque, durante séculos, os críticos e poetas ocidentais tiveram tão grande admiração por Sêneca, incluindo suas peças entre os clássicos" (entre outras coisas, essa crítica deixa implícito que Shakespeare, que tanto aprendeu com Sêneca, teria sido um mau juiz da arte dramática). A única arte na qual a tradição romana manteve sua posição de respeito nos séculos 19 e 20 foi a arquitetura. A partir do neoclassicismo do final do século 18, tendências passageiras de simplicidade primitiva e abstrata na arquitetura têm repetidas vezes sido seguidas por retornos em favor de ornamentados estilos romano ou neo-romano renascentista. O neoclassicismo deu lugar ao vistoso segundo império; o "revival" grego do início do século 19 foi seguido, na segunda metade do século, pelo "revival" do estilo belas-artes. Nas décadas de 80 e 90, uma reação contra a abstração geométrica do modernismo de estilo internacional assumiu a forma de um ressurgimento neopaladiano. Em cada um desses casos a razão foi a mesma: a simplicidade neogrega na poesia ou no drama pode ser sublime, mas, na arquitetura, é apenas enfadonha. Gerações de "connaisseurs" compartilharam o sentimento expresso no século 18 por lorde De La Warr ao ver o edifício em estilo "revival" grego encomendado por lorde Nuneham: "Maldito seja, milorde, é essa a sua arquitetura grega? Que vilania! Que absurdo! Se isso é grego, me dê algo chinês, algo gótico! Qualquer coisa é melhor do que isso!". Embora a alta cultura baseada na cultura latina tenha sobrevivido por mais tempo nos EUA provinciano do que na Grã-Bretanha ou na Alemanha, com Emerson e Whitman a maioria dos intelectuais americanos juntou-se ao movimento romântico transatlântico. Em meados do século 19, oradores ciceronianos, como Daniel Webster, poetas ao estilo de Augusto, como os Connecticut Wits, e pintores clássicos, como Thomas Cole e Benjamin West, já pareciam fazer parte de outra civilização. É verdade que a cultura mais antiga da latinidade sobreviveu por mais tempo no Sul dos EUA. O poeta Allen Tate descreveu o "herói agrário composto" do Sul, "Cícero Cincinato": "Não posso pensar em melhor imagem para descrever o Sul como era antes de 1860 e, em grande medida, o que ainda era até mais ou menos 1914 do que a de um cavalheiro idoso do Kentucky que, todas as tardes, ficava sentado em seu jardim, debaixo de uma velha árvore de açúcar, lendo Cícero".

A civilização ocidental
No século 20, os gregos antigos já haviam tomado quase por completo o lugar dos romanos antigos como ancestrais culturais preferidos dos americanos. Aquilo a que David Gress, em seu estudo recente sobre as concepções mutantes do Ocidente, "From Plato to Nato" (De Platão à Otan), deu o nome de a "grande narrativa" americana da história ocidental foi moldado pelo curso de civilização contemporânea criado na Universidade Columbia, após a Primeira Guerra, e o currículo dos grandes livros criado por Robert M. Hutchins e Mortimer Adler na Universidade de Chicago, durante a década de 30. Essas reformas curriculares inspiraram os cursos universitários americanos de "civilização ocidental", uma versão da história mundial disseminada para uma platéia mais ampla por popularizadores tais como Will e Ariel Durant e Edith Hamilton.
A disciplina de civilização ocidental (conhecida como "Western Civ" ou WC) afirmava que a história euro-americana entre Péricles e Thomas Jefferson não passara de um longo e lamentável desvio.
Segundo Gress: "Fundada por Homero, a literatura chegou à plenitude nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. A arte representativa, que esteve no cerne da moderna identidade ocidental, do Renascimento ao século 20, alcançou elevações nunca mais igualadas nas esculturas do Partenon de Atenas ou no templo de Apolo em Olímpia. A filosofia amadureceu com Sófocles e atingiu seu auge, no século 4º, com Platão e Aristóteles. Como se tudo isso não bastasse, os gregos ainda inventaram a democracia e o estudo da história, e os dois eram relacionados, assim como o eram a filosofia e a visão científica da natureza".


O Império Romano tinha tão pouco em comum com a Alemanha nacional-socialista quanto tinha a República Romana com as de George Washington ou de Robespierre; mesmo assim, a imagem de Roma, já prejudicada por gerações de propaganda dos partidários dos gregos, foi ainda mais maculada por ser associada à da ditadura do século 20


Essa postura convencional representava a transformação em ortodoxia das afirmações antes revolucionárias dos filelenos românticos do início do século 19. De acordo com a ortodoxia da WC, a missão histórica de Roma foi meramente a de transmitir a herança da Atenas de Péricles para as modernas democracias atlânticas. O trabalho dos popularizadores da disciplina foi facilitado pelo fato de que o protestantismo americano sempre disseminara uma imagem negativa do Império Romano (e de sua sucessora, a Igreja Católica Romana). Os protestantes americanos viam os romanos da Antiguidade como um povo malévolo e libertino cujo passatempo favorito era ver cristãos sendo dados de alimento aos leões no Coliseu. Na mente popular, os gregos tinham boa forma física e se exercitavam; já os romanos, gordos, passavam seu tempo entre orgias, recostados em divãs e mordiscando uvas. A lição a ser tirada da história romana parecia ser clara: se você se divertir demais, será aniquilado por invasores bárbaros e vulcões em erupção. Na América protestante, Roma simbolizava não apenas a imoralidade pagã, mas também o grande governo tirânico. A comparação entre as concessões feitas pelo governo à população e o "pão e circo" oferecidos por Roma às massas depravadas e indisciplinadas se tornou parte do repertório padrão da retórica conservadora americana.

Sem imaginação
Se a reputação da cultura romana decaíra nos séculos 18 e 19, a fama da organização política romana sofreu no século 20. Roma, que já era símbolo de arte e literatura derivativas e destituídas de imaginação, passou a ser vista também como antecessora das mais monstruosas tiranias modernas. Embora os alemães do início do século 19, divididos em pequenos Estados e mais adeptos da arte do que das armas, se imaginassem herdeiros dos gregos das cidades-Estado, a Alemanha do século 20 parecia ser estranhamente semelhante a Roma. O Segundo Reich (Império), fundado em 1870, foi liderado por um Kaiser (derivado de césar). O Terceiro Reich de Hitler aparentava ser ainda mais romano. O nacional-socialismo alemão sofreu a influência do fascismo neo-romano de Benito Mussolini, cujo próprio nome fazia referência ao símbolo romano da autoridade (o "fasces", um feixe de gravetos amarrado por uma corda). Diferentemente de alguns membros de seu movimento, Hitler se interessava pouco pela cultura dos antigos bárbaros teutões. Mas a Roma pagã, com seu Capitólio, seus coliseus, bulevares e arcos triunfais, forneceu o modelo para sua nova Berlim, "Germania", o grandioso capitólio -que nunca chegou a ser erguido- de seu império europeu. A saudação nazista era inspirada na saudação romana -"Ave, César!" transformou-se em "Heil, Hitler!" (Ave, Hitler!). Na realidade, é claro, o Império Romano tinha tão pouco em comum com a Alemanha nacional-socialista quanto tinha a República Romana com as repúblicas de George Washington ou de Robespierre. Mesmo assim, a imagem de Roma, já prejudicada por gerações de propaganda dos partidários dos gregos, foi ainda mais maculada por ser associada à da ditadura do século 20.

Culto alemão
Ironicamente, a fuga de intelectuais -muitos deles judeus alemães- da Europa aos EUA durante os anos 30 e 40 reforçou nos EUA a influência do culto alemão da Grécia. Nos escritos de Hannah Arendt (1906-1975), os liberais americanos encontraram uma versão idealizada da democracia grega; nos escritos de Leo Strauss (1899-1973), os conservadores americanos identificaram a afirmação de que a república americana tem suas raízes na tradição da filosofia política grega.
"Toda vez que nasce em países ocidentais uma "era dourada" de governo estável, igrejas repletas e riqueza em expansão, Virgílio recobra sua popularidade suprema", observou o escritor Robert Graves. "Sua reputação floresceu em (...) Paris sob Luís 14, Londres sob a rainha Anne e a rainha Vitória, Baltimore na primeira metade do século 19, Boston na segunda metade e Potsdam sob o governo do Kaiser Wilhelm 2º."
Segundo essa lógica, poderíamos prever que os EUA manifestassem novo interesse em seu legado romano no início do terceiro milênio. Afinal, os EUA não apenas são a potência militar dominante do planeta, mas também possuem a economia mais próspera e a cultura metropolitana mais influente do mundo.
Apesar disso, não se vêem sinais de reabilitação da reputação de Roma nos EUA, e a briga entre o politicamente correto e a civilização ocidental não passa, na realidade, de uma disputa entre o romantismo antilatino de ontem e o de hoje. É exagerar apenas um pouco afirmar que o período inteiro de 1760 a 2000 na cultura ocidental tem sido uma prolongada revolta contra a tradição helenística/romana/renascentista. A guerra já foi ganha há muito tempo. De pouco servem as críticas rituais feitas a autores romanos como Estácio ou Sêneca, que não são lidos nem sequer traduzidos há gerações. Os defensores da civilização ocidental deveriam defendê-la por inteiro, em lugar de pular dos gregos para a Idade Média e dela para a modernidade, passando por cima das eras supostamente "estéreis" e "derivativas" da cultura helenística, da civilização romana e do humanismo renascentista/barroco.
Muitos aspectos da sociedade e da cultura romanas, senão todos, são irrelevantes para o mundo moderno, e alguns são repugnantes para os valores modernos. O mal da escravidão foi eliminado da maior parte do mundo. Em um mundo industrializado de Estados-nações, o imperialismo se tornou arcaico. As virtudes marciais valorizadas em Roma, embora continuem tendo relevância perene para soldados e policiais, não são básicas para nossa sociedade civil e comercial. É nos campos da literatura, da arte e da filosofia que Roma tem mais a nos oferecer hoje.
Dos poetas, arquitetos e escultores romanos que revitalizaram as tradições gregas ao incorporá-las, os escritores e artistas de hoje podem aprender como partir de uma grande tradição sem se deixarem escravizar por ela. O classicismo ocidental, escreve o historiador da arquitetura Michael Greenhalgh, "é uma abordagem à arte e, na realidade, à vida que dá preferência ao ideal (em termos de forma e de conteúdo) em lugar do cotidiano, ao poder da razão em lugar das emoções, frequentemente enganosas, à clareza e simplicidade em lugar da prolixidade, à possibilidade de ser medido (como um índice de beleza) em lugar da intuição".
Pelo fato de a tradição clássica ser cumulativa e se encontrar em evolução, acrescenta Greenhalgh, "é apenas raramente que se faz sentir a necessidade de retornar às fontes e fazer uma ... "tabula rasa". Logo, rejeitar as tradições da Renascença e do barroco equivale a rejeitar a tradição clássica". Finalmente, ainda segundo Greenhalgh, "a tradição é logicamente romana e não grega porque Roma tem sempre ocupado o centro da consciência européia, enquanto a Grécia (com a exceção da Antiguidade, partes da Idade Média e desde o século 19) tem estado na periferia". Os artistas verdadeiramente pós-modernos e pós-românticos podem buscar inspiração no espírito da arte romana, mesmo que não necessariamente em suas formas.
O exemplo romano na filosofia é ainda mais importante em nossos tempos. O ideal romano, que inspirou o "homem renascentista", não era o do pedante enclausurado, mas do filósofo e estadista mundano, que unia a contemplação à ação. À diferença de filósofos modernos como Hegel, os moralistas latinos como Cícero e Sêneca estavam menos interessados em metafísica e epistemologia do que nas questões práticas de como viver de maneira ética num mundo turbulento e repleto de maldade. No mundo moderno, assim como na Idade Média, a filosofia degenerou num jogo esotérico jogado por acadêmicos distantes dos centros de assuntos públicos e debates políticos. Ao rejeitar a escolástica medieval, humanistas como Petrarca adotaram o ideal ciceroniano do intelectual engajado e dotado de espírito cívico. Se quisermos que uma nova filosofia pública transcenda a dicotomia entre a teoria acadêmica e a ideologia partidária, seus proponentes poderiam se beneficiar do exemplo do acadêmico-estadista romano.
Se existe uma palavra que resume a diferença básica entre os romanos e nós, é a palavra "público". A poesia e oratória romanas eram públicas e teatrais; a arquitetura romana era pública e grandiosa. O próprio termo "república" incorpora a palavra. Os horrores do coletivismo do século 20 nos infundiram uma desconfiança justificada do comunitarismo imposto por coação.
Mesmo assim, o eclipse contemporâneo do público e acessível na literatura, arte e filosofia, diante do privado e idiossincrático, teria sido visto como desastre não apenas pelos romanos, mas também pelos gregos. Nosso termo "idiota" vem do latino "idiota", adaptação do grego "idiotes", que significa "pessoa privada". A preocupação em restaurar a comunidade, compartilhada por muitos liberais, além de conservadores, sugere que o pêndulo está começando a afastar-se dos extremos do individualismo radical no pensamento e na vida.
Do século 18 até o presente, a idealização do primitivo vem movendo a revolta contra Roma. Civilização, classicismo, tradição -para a maioria dos intelectuais ocidentais dos últimos dois séculos, estes têm sido palavrões. Aqueles que se propõem a defender a idéia de uma civilização cumulativa que seja ao mesmo tempo tradicional e progressista devem rejeitar a idéia romântica de que todo desenvolvimento é decadência, juntamente com o viés correspondente em favor do primitivo contra o civilizado, do espontâneo contra o estudado, do original contra o alusivo.
Para desafiar o culto da revolução promovido pela vanguarda política e o culto da novidade proposto pela vanguarda artística é preciso insistir que não estamos limitados a optar entre repetir a tradição ou rejeitá-la. Também temos a opção de renovar a tradição.
O viés contra a civilização romana não é tanto um viés contra Roma como contra a própria civilização. Na aurora do terceiro milênio, é possível que aqueles que defendem a idéia não apenas da civilização ocidental, mas da civilização como tal, descubram ser necessário, também, defender a idéia de Roma.


Michael Lind é ensaísta e escritor, membro da New America Foundation, em Washington, DC, e autor, entre outros, de "The Nationalist Reader" e "The Next American Nation" (ambos pela ed. Free Press, EUA).
Tradução de Clara Allain.


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