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O nirvana pop
Radicado em Miami, Romero Britto
fala da influência de Brennand e Keith Haring
em sua formação, considera pintar um
"ato religioso" e defende que aquilo
que as pessoas buscam na arte é a felicidade
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Na semana de abertura da 27ª Bienal
de São Paulo,
quando as atenções se voltam para as pesquisas de ponta no
campo da arte contemporânea,
a Folha faz o caminho inverso
e investiga o fenômeno cultural
e comercial Romero Britto.
Sucesso de vendas e público
no Brasil e no mundo, sobretudo nos EUA, o artista de 42
anos que saiu de uma família
pernambucana pobre para se
tornar um "self-made man"
modelo nos EUA é criticado no
meio especializado das artes visuais, mas incensado (e consumido) pelo público leigo e por
um círculo de celebridades internacionais. Isso lhe rendeu,
por exemplo, um convite para
dar uma palestra no Fórum
Econômico Mundial, em Davos, em janeiro passado, sobre
arte e globalização.
Sobre o que ele falou na palestra? "Falei de como o que os
artistas plásticos fazem está
longe de ter um impacto global.
As pessoas se beneficiam quando podem ver arte na TV, num
outdoor, em produtos que circulam mais do que a arte, restrita a museus e galerias."
É conhecido o projeto "The
Most Wanted Paintings" (As
Pinturas Mais Desejadas), da
dupla de artistas russos Vitaly
Komar e Alex Melamid, que
empreenderam uma pesquisa
do gosto, primeiramente nos
EUA (1994) e, nos anos seguintes, com o apoio do Dia Center
for the Arts, em vários países
do mundo.
Questionário aplicado em
larga escala, os artistas produzem a pintura preferida da população de cada país, invariavelmente uma paisagem tranqüila de céu azul.
Em registro diverso, Mark
Kostabi, o maior oportunista
do mercado de arte, que tem
um séquito de assistentes que
fazem pinturas surrealistas,
cubistas, realistas e em qualquer outro estilo que o artista
queira, para depois as assinar e
vender por uma fortuna, também lida em seu trabalho -de
caráter rasgadamente comercial- com questões de gosto e
mercado.
A ironia de Komar e Melamid é incensada no campo da
arte contemporânea; o cinismo
de Kostabi é execrado por críticos e público especializado.
Qual o lugar de Romero Britto
nesse contexto?
Seis curadores e críticos de
arte brasileiros foram ouvidos
pela reportagem da Folha a esse respeito (leia textos na página ao lado) e apontaram o hiato
entre a inventividade da produção artística contemporânea, como aquela que pode ser
vista na atual Bienal de São
Paulo, e a diluição comercial da
visualidade pop empreendida
por Romero Britto.
"O circuito que legitima Romero Britto é o circuito das celebridades políticas e do entretenimento. O circuito da arte
não o reconhece porque seu
trabalho é ornamento, não é
arte. Como a maioria das pessoas não detém informações e
um olhar crítico sobre a arte,
consome Romero Britto da
mesma maneira que consome
os valores apregoados pelas revistas de celebridades", afirma
a curadora Cristiana Tejo.
De fato, há 20 anos vivendo
nos EUA, Romero Britto tem
obras em coleções de celebridades que vão de Madonna e
Michael Jackson a Bill Clinton
e Arnold Schwarzenegger, de
quem é amigo pessoal.
Ele participa de diversos
projetos sociais, doando para
serem leiloadas obras que alcançam cifras na casa das dezenas de milhares de dólares. Recentemente, teve uma obra pública comissionada pelo fundador da feira Art Basel, Ernst
Beyeler, para enfeitar a entrada
da meca do comércio mundial
da arte contemporânea.
Em sua galeria na rua Oscar
Freire, em São Paulo, a Britto
Central, suas criações são acessíveis a todos os bolsos: vão de
R$ 8 (cartões-postais) a R$ 250
mil (telas originais).
Na entrevista abaixo, concedida no mês passado em Campinas (SP), na abertura de exposição sua em um hotel da cidade, Britto falou de sua trajetória e de suas influências.
FOLHA - A que você atribui o fato
de nunca ter sido convidado para
uma Bienal de São Paulo?
ROMERO BRITTO - Eu realmente
não sei. Às vezes você tem alguma coisa acontecendo tão perto
de você que você não nota. Em
geral, o que acontece também é
que, pelo fato de eu não estar
muito no Brasil, no cenário de
arte brasileiro, as pessoas não
acompanham tanto meu trabalho. Pode ser por isso, mas eu
realmente não sei.
FOLHA - Como foi seu início?
BRITTO - Desde muito jovem eu
pintava, mas nunca imaginei
que arte pudesse ser uma profissão. Eu imaginava que seria
um hobby e que teria um outro
trabalho. Já aos 14 anos eu era
muito influenciado pelo trabalho de Francisco Brennand; então comecei a pintar coisas bem
locais, ligadas ao Nordeste e à
natureza.
Acho que até hoje minha arte
tem a ver com a natureza, com
os sentimentos, e talvez isso explique seu sucesso, o motivo
por que as pessoas são tão atraídas pela minha arte.
As pessoas, especialmente do
mundo das artes, às vezes criticam meu trabalho dizendo que
é muito leve.
Um crítico uma vez falou que
eu não me preocupava com o
que está acontecendo no mundo, mas não é que eu não me
preocupe, é que eu acho que, do
mesmo jeito que é importante
uma consciência sobre o mundo, também é importante pensar na felicidade.
Se você imaginar o que se
gasta hoje na procura da felicidade... As pessoas trocam de sexo, trocam de cidade, se casam
dez vezes, têm vários filhos,
deixam os filhos, constroem
pontes, tudo por conta da procura da felicidade, de um momento de paz.
A felicidade é algo importante na vida das pessoas, e acho
que deve ser disso que elas mais
sentem falta. Na hora de colocar alguma coisa em suas casas,
preferem ter algo alegre, e não
algo com que vão se sentir mal.
FOLHA - Você é uma pessoa feliz?
BRITTO - Eu me sinto uma pessoa feliz, sim. Eu me sinto bem
comigo mesmo, hoje em dia.
Faço o que adoro, acordo de
manhã e faço aquilo de que gosto. Claro que a vida tem altos e
baixos, mas, quando estou fazendo a minha arte, é como se
fosse um ato religioso.
FOLHA - Como foi o caminho das
pinturas de cajus e outros temas ligados à cor local do Recife e à obra
de Brennand até a linguagem pela
qual você é tão conhecido hoje?
BRITTO - No caso de Brennand,
ele tem murais na cidade inteira de Recife. Isso para mim foi
uma coisa fascinante, ver e admirar o trabalho de Brennand
onde quer que fosse na cidade.
Uma das coisas que achei fascinantes quando eu cheguei
aos EUA foi o fato de a arte ser
mais democrática, o fato de a
arte ser uma coisa que as pessoas vivem mais no dia-a-dia,
ao invés de ser algo que as pessoas só vêem no museu.
Então, quando comecei também a ler bastante a respeito de
[Andy] Warhol e [Keith] Haring e de outros artistas cujo
trabalho pode ser visto em todo
canto dos EUA, fiquei fascinado e imediatamente tive esta
certeza: quero que a minha arte
seja uma coisa que as pessoas
possam ver. Quero alcançar o
maior público possível.
FOLHA - Mas como é que os trabalhos de Andy Warhol ou Keith Haring, além do aspecto de conseguirem atingir um público mais amplo,
influenciaram sua linguagem? Porque existe um diálogo, do ponto de
vista plástico, entre sua produção e
a de Haring, principalmente, não?
BRITTO - Acho que o vocabulário dele era um vocabulário que
as pessoas podiam entender.
Assim também o meu vocabulário. O que estou fazendo, o
que estou desenvolvendo nos
últimos anos é pegar coisas do
meu dia-a-dia, coisas do universo que me rodeia e colocando na minha arte...
FOLHA - Mas por que você define
sua obra como neo-cubista-pop?
BRITTO - Isso foi uma conversa
que tive com uma pessoa do
meio de arte, Eileen Guggenheim, que falou que minha arte tinha algo do cubismo, algo
da pop art, algo novo. Mas,
quando você fala em pop art, a
referência que temos é de uma
produção que aconteceu nos
anos 1960, 1970, mas que infelizmente não evoluiu.
Aconteceu, alguns artistas levaram para a frente, mas outros
artistas não evoluíram, e de lá
para cá houve outras tendências que aconteceram, mas que
são fragmentadas, cada um fazendo uma coisa. A Eileen falou
que havia essas influências e
sugeriu que eu chamasse assim.
FOLHA - Pergunto isso porque chamar simplesmente de neo-pop já
daria o sentido de que você pretende levar adiante o legado da pop.
BRITTO - A referência ao cubismo vale para a composição de
alguns trabalhos que fiz, está
muito mais voltada para o que
fiz antes do que para o que faço
agora. Uma coisa é o que as pessoas falam, porque diante do
que estou fazendo você pode ver uma coisa completamente
diferente daquilo que estou
imaginando.
Eu me lembro que, na última
vez em que vi [o marchand]
Marcantonio Vilaça [1962-2000], ele disse: "É engraçado,
Romero, que no seu trabalho de
agora eu vejo mais figuras surgindo". E aquilo foi para mim
uma surpresa, porque eu nem
tinha prestado atenção.
FOLHA - Na exposição há obras sobre tecido. Isso é uma novidade?
BRITTO - Sim, isso é novo, usar
apenas o desenho em trabalhos
bem monocromáticos. Foi um
experimento, gosto muito de
tecido, de texturas, já fiz projetos em parceria com designers
e estilistas, mas usando todas
as cores. Então tive vontade de
pegar tecidos diferentes e trabalhar só o desenho.
FOLHA - Esta é uma característica
muito marcante na sua trajetória: a
opção por trabalhar também em outros "circuitos" que não só o da arte,
produzindo objetos utilitários,
transpondo suas pinturas para estampas de roupa etc. Por que a opção por esse trânsito?
BRITTO - Acho que como tudo
está relacionado no mundo, em
termos de comunicação, comportamento, arquitetura, acho
que a arte pode também participar disso, ela pode realmente
acrescentar muito ao dia-a-dia
das pessoas, então se até os músicos, hoje em dia, estão usando
instrumentos digitais, novas
tecnologias, por que não a arte,
por que não aplicar a arte de
outras maneiras?
Eu gostaria muito de em breve fazer alguma coisa diferente,
além de estar pintando para colocar na parede. Estou sempre
pensando nisso: onde mais dá
para a arte aparecer, por onde
mais a arte vai poder circular?
Porque em geral a arte é uma
coisa muito exclusiva, que se
faz para a elite, e um artista,
quando realiza seu trabalho,
quer que as pessoas o vejam,
quer dividir sua arte com as
pessoas. Como é que eu poderia
alcançar um milhão de pessoas
com uma única exposição?
FOLHA - Qual a repercussão de seu
trabalho junto ao público?
BRITTO - É fantástica. É como
ter um instrumento, uma imagem que as pessoas vêem, imediatamente codificam na cabeça e aquilo já pertence à pessoa,
é algo que lhe faz bem.
FOLHA - E no meio de celebridades
em que você circula?
BRITTO - Acho fantástica a história do governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, filho de militares que foi exilado,
que se tornou um ator, o que é
uma coisa difícil, e tornou-se
governador de um dos maiores
estados americanos...
Para mim, alguém como ele
colecionar o meu trabalho é
uma enorme honra.
FOLHA - Por que optou por abrir
um espaço próprio, em vez de trabalhar com alguma galeria no Brasil?
BRITTO - As galerias no Brasil e
na América Latina como um todo trabalham em consignação
com os artistas, mas não vendem, o que deixa o artista muito preso. Então como o artista
vai sobreviver? Então, quando
tive a oportunidade de abrir um
espaço próprio aqui, com base
na experiência de ter feito o
mesmo em Miami Beach, abri.
Também queria que minha
arte se tornasse parte do cenário cultural do Brasil.
FOLHA - Como você definiria o gosto americano por arte? É diferente
do gosto brasileiro?
BRITTO - O que acontece é que
no Brasil, por causa da exuberância da natureza, do sol e das
cores, o público acaba não querendo trazer isso para dentro
de casa. Você vê o Carnaval, vê
que o amarelo é tão amarelo
que pode acabar achando que
amarelo não é elegante.
Nos EUA a vida é muito diferente; lá os filhos crescem e vão
embora, então fica aquele espaço que as pessoas querem
preencher. Então quem tem dinheiro compra uma casa, um
carro, vai viajar... Está chateado, então vai para um spa. E
acaba resolvendo comprar arte,
se rodear de coisas estimulantes. O poder aquisitivo nos EUA
ajuda muito.
FOLHA - E onde você vende mais?
BRITTO - Nos EUA, depois na
Alemanha, na Suíça e França.
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