São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Entre a ordem e o caos

Dois dos principais filósofos da ciência do século 20, mas de visões antitéticas, Karl Popper e Thomas Kuhn têm livros lançados no Brasil

CAETANO PLASTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há muito tempo se procura compreender a natureza da ciência, seus procedimentos de pesquisa, as razões de sua notável eficácia, os valores e ideais que norteiam tal empreendimento. No século 20, os filósofos Karl Popper e Thomas Kuhn apresentaram visões de ciência amplas e desenvolvidas, ricas em exemplos históricos e com grande poder de persuasão. No entanto suas divergências foram fundamentais e marcaram definitivamente o cenário da filosofia da ciência.
Segundo Popper, a investigação científica sempre parte de problemas, teóricos ou práticos, e não de simples observações pelos sentidos. Os cientistas procuram resolver esses problemas, encontrar soluções bem-sucedidas. Essas tentativas de solução consistem em teorias formuladas em linguagem clara e objetiva.
Mas as soluções experimentadas podem falhar, podem apresentar erros. Todo conhecimento científico é hipotético e falível. Cabe submeter as tentativas de solução ao processo de eliminação dos erros, tendo em vista a busca da verdade. E novos problemas podem surgir dessa discussão crítica.

Biologia e política
No livro "Em Busca de um Mundo Melhor", sua abordagem é aplicada a um campo bem mais extenso, desde os fenômenos biológicos até as formas de governo.
"Todo organismo está constantemente ocupado em resolver problemas." Por tentativa e erro, o organismo busca soluções que melhorem suas condições de vida. A diferença é que a ameba arrisca a vida, pois sua expectativa faz parte dela própria, ao passo que Einstein submete a teste sua hipótese, sem perecer com ela.
O pensamento crítico defendido por Popper é favorecido em uma sociedade democrática, que assegure o máximo possível de liberdade e tolerância.
Nesse caso, todos são livres para formar suas opiniões e discuti-las criticamente com os outros. A busca de um mundo melhor não requer profecias utópicas; pelo contrário, exige uma atitude crítica e racional, que permita reduzir ao mínimo o sofrimento evitável, numa sociedade aberta a reformas.

Crise pronunciada
No caso da ciência, como podemos saber se as mudanças teóricas, quando obedecem o método crítico, conduzem a uma aproximação da verdade? Ainda que a verdade seja em princípio atingível, não sabemos se progredimos na direção correta.
Além disso, será que a melhor maneira de compreender a racionalidade da ciência consiste em apresentar regras metodológicas estáveis, convencionais e de aplicação geral? Segundo Kuhn, o que a história nos mostra sobre o processo científico é algo bem diverso dessa imagem ideal.
Nos períodos de normalidade, há um amplo acordo entre os cientistas a respeito dos problemas legítimos e dos padrões de solução adequados. Sua pesquisa é dirigida por um paradigma, isto é, por "realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes".
Esses cientistas compartilham uma mesma visão de mundo e estão de tal modo comprometidos com uma tradição específica que os fracassos não se refletem sobre o paradigma, mas sobre os próprios cientistas.
Com o tempo, as dificuldades podem se agravar, se tornar constantes e gerar uma crise pronunciada, um sentimento intenso de insegurança profissional. Abre-se o caminho para a emergência de um novo paradigma profundamente diferente e incomensurável com aquele que o precedeu.
Não se trata, insiste Kuhn, de um desenvolvimento cumulativo das teorias científicas em direção a um objetivo comum, mas de uma revolução científica, de uma mudança radical na maneira de ver o mundo e de nele praticar a ciência.
Seu principal livro, "A Estrutura das Revoluções Científicas" [ed. Perspectiva], publicado em 1962, tornou-se best-seller, transformou a imagem dominante de ciência e produziu forte impacto em filosofia, sociologia, história, ensino de ciência etc.
Na coletânea "O Caminho desde "A Estrutura'", Kuhn elucida e desenvolve seu trabalho original, analisa em detalhe a linguagem científica e estabelece diversos paralelos com a evolução biológica, como na explicação do surgimento de novas especialidades científicas após uma revolução.

Incomensurabilidade
Ao mesmo tempo em que questiona a filosofia corrente, Kuhn rebate as acusações de irracionalidade e relativismo radical. Reconhece o caráter intrinsecamente social do trabalho científico mas também critica a sociologia da ciência que explica o consenso mediante uma "negociação" movida a poder e interesses.
Ele revela a incomensurabilidade entre estruturas lingüísticas da ciência, mas salienta que ela não conduz ao colapso da comunicação, pois o cientista pode aprender outra linguagem sem precisar traduzi-la.
O filósofo Ian Hacking [de "Por Que a Linguagem Interessa à Filosofia?", ed. Unesp] nos conta que "os filósofos por longo tempo fizeram da ciência uma múmia. Quando finalmente desenrolaram o cadáver e notaram os vestígios de um processo histórico de transformação e descoberta, criaram para si mesmos uma crise da racionalidade. Isso aconteceu por volta de 1960".

CAETANO ERNESTO PLASTINO é professor de filosofia da ciência no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo.


EM BUSCA DE UM MUNDO MELHOR
Autor: Karl R. Popper
Tradução: Milton Camargo Mota
Editora: Martins (tel. 0/xx/11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 49 (318 págs.)

O CAMINHO DESDE "A ESTRUTURA"
Autor: Thomas S. Kuhn
Tradução: Cesar Mortari
Editora: Unesp (tel. 0/xx/11/3242-7171)
Quanto: R$ 49 (408 págs.)



Texto Anterior: +lançamentos
Próximo Texto: Popper combateu o relativismo científico
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.