São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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1989!

MANIFESTAÇÕES POPULARES E INCOMPREENSÃO DO MOMENTO HISTÓRICO POR PARTE DE EUA E UNIÃO SOVIÉTICA FORAM DECISIVAS PARA A QUEDA DO MURO, APONTAM NOVAS PESQUISAS

TIMOTHY GARTON ASH

Não é surpreendente que o 20º aniversário de 1989 venha acrescentar mais livros a uma estante já repleta de obras sobre o ano que encerrou o curto século 20.
Se ampliarmos "1989" para abranger também a unificação da Alemanha e a desunificação da União Soviética [URSS] em 1990-91, devemos dizer, com mais precisão, os três anos que encerraram o século.
Os livros sobre o aniversário incluem retrospectivas jornalísticas, com algumas visões pessoais vívidas e detalhes marcantes (Victor Sebestyen, György Dalos, Michael Meyer e Michel Meyer [este, autor de "Histoire Secrète de la Chute du Mur de Berlin", História Secreta da Queda do Muro de Berlim, ed. Odile Jacob, 352 págs., °21, R$°54]), instigantes ensaios de interpretação histórica (Stephen Kotkin e Constantine Pleshakov [deste, "There Is No Freedom without Bread!", Não Há Liberdade sem Pão, Farrar, Straus and Giroux, 304 págs., US$°26, R$°45]) e trabalhos acadêmicos originais baseados em fontes de arquivo e em história oral (Mary Elise Sarotte e o volume editado por Jeffrey Engel).
Não posso fazer resenhas individuais das obras. A maioria delas acrescenta algo a nossos conhecimentos; algumas acrescentam bastante.
Não constitui crítica nenhuma a qualquer um desses autores dizer que concluí sua leitura sonhando com outro livro: a história global e sintética de 1989 que ainda falta ser escrita.
Ao longo desses 20 anos, as descobertas mais interessantes têm saído dos arquivos soviéticos, americanos e alemães e, em grau menor, de outros do Leste Europeu, britânicos e franceses. Lançam luz principalmente sobre a alta política de 1989-1991.
Assim, ficamos sabendo, por exemplo, que o Politburo soviético nem sequer chegou a discutir a Alemanha em 9 de novembro de 1989, o dia em que o Muro de Berlim iria cair, mas, em vez disso, ouviu um relato assustado do primeiro-ministro Nikolai Rijkov sobre preparativos para a secessão nos Estados bálticos e seus possíveis efeitos sobre a Ucrânia e a Rússia. "Sinto cheiro de um colapso geral", disse Rijkov.

Campo desconhecido
É notável ler as palavras repulsivamente lisonjeiras com que Anatoly Chernyaev, assessor de Mikhail Gorbatchov [então secretário-geral do PC soviético], saudou a queda do Muro de Berlim na anotação feita em seu diário em 10 de novembro: "Isto é o que Gorbatchov fez... Ele intuiu o passo da história e ajudou a história a encontrar um canal natural."
Para um inglês, causa vergonha descobrir a desfaçatez com que Margaret Thatcher parece ter traído as promessas feitas publicamente à Alemanha.
"As palavras escritas no comunicado da Otan podem soar diferentes, mas ignore-as", ela teria dito a Gorbatchov em setembro de 1989, segundo anotação da conversa redigida por Chernyaev. "Não queremos a unificação da Alemanha."
(Recorrendo à Lei de Liberdade de Informação britânica, Sarotte ["1989 -The Struggle to Create Post-Cold War Europe", A Luta para Criar a Europa Pós-Guerra Fria, Princeton University Press, 344 págs., US$°29,95, R$°52] também teve acesso ao registro britânico feito da mesma conversa. Ela observa que o registro "não continha essas declarações, mas foi editado".)
Assim, num clássico avanço à la Ranke [1795-1886, historiador alemão] dos conhecimentos, sabemos mais do que sabíamos, à época, sobre essas áreas da alta política tradicionalmente documentadas.
Em contraste, descobrimos pouca coisa nova sobre as causas e as dinâmicas sociais das ações populares de massa que realmente deram a 1989 o direito de reivindicar-se uma revolução, ou uma sucessão de revoluções.

Multidão
Passei muitas horas de minha vida no meio dessas multidões, em Varsóvia, Budapeste, Berlim e Praga; o comportamento delas era ao mesmo tempo inspirador e misterioso.
O que tinha movido esses homens e essas mulheres a sair às ruas, especialmente nos primeiros dias dos movimentos, quando ainda não era evidente que fosse possível fazê-lo em segurança?
O que os movia enquanto multidões? Quem, em Praga, foi a primeira pessoa a tirar um chaveiro de seu bolso, erguer as chaves ao alto e sacudi-las -uma ação que, imitada por 300 mil pessoas, produziu o som mais espantoso que se poderia imaginar, como sinos chineses acumulados em massa?
Historiadores como George Rudé [1910-93], com seu estudo pioneiro sobre a multidão na Revolução Francesa, E.P. Thompson [1924-93] e Eric Hobsbawm tentaram compreender a dinâmica subjacente do protesto popular em períodos anteriores.
Certamente já é hora de historiadores contemporâneos, com fontes melhores à disposição (horas de gravações de televisão, vídeo e rádio, por exemplo), encararem o desafio de tentar analisar 1989 de baixo para cima, não apenas de cima para baixo.
Todo estudioso que escreve sobre 1989 luta contra uma propensão humana quase inevitável, batizada por psicólogos de "viés da visão retroativa" -ou seja, a tendência a enxergar resultados históricos reais como mais prováveis do que as alternativas que pareciam reais na época (por exemplo, uma repressão ao estilo de Tiananmen na Europa central).
O que aconteceu de fato se apresenta para nós como algo que não poderia ter deixado de acontecer. Henri Bergson [1859-1941] falou das "ilusões do determinismo retrospectivo". São propostas explicações do que aconteceu.
Como comentou um estudioso alguns anos após 1989: ninguém previu o que aconteceria, mas todos souberam explicá-lo depois.
Ao ler esses livros, me veio novamente à mente a "lei da cornucópia infinita" do filósofo polonês Leszek Kolakowski [1927-2009], segundo a qual é possível encontrar um número infinito de explicações de qualquer acontecimento dado.
Uma grande qualidade de "1989", de Mary Elise Sarotte, é explicitar o problema do viés da visão retroativa e explorar, de maneira sistemática, os caminhos que não foram trilhados.
Ela nos recorda, por exemplo, quão perto a Alemanha Oriental poderia ter chegado de derramar sangue em Leipzig em 9 de outubro de 1989: as autoridades mobilizaram uma força de 8.000 homens, incluindo policiais, soldados e membros da agência de inteligência Stasi; hospitais foram instruídos a preparar leitos para possíveis vítimas.
E ela analisa os modelos diplomáticos que foram sugeridos, mas não executados, na formação de uma nova ordem europeia em 1990, incluindo o modelo de um sistema de segurança pan-europeu construído em torno da existência continuada de dois Estados alemães separados.

Jargões particulares
Todo escritor tem um viés profissional, geográfico ou disciplinar.
Jornalistas, políticos, diplomatas, historiadores, cientistas políticos, especialistas no estudo dos processos de transição de um regime político a outro, estudiosos de movimentos sociais, economistas, especialistas em estudos de segurança, resistência civil e relações internacionais -todos chegam a 1989 já com suas experiências, seus métodos, quadros de referência comparativos e jargões próprios.
Com frequência terminam por dizer mais ou menos a mesma coisa de maneiras distintas.
O sucesso tem muitos pais, e todo mundo tem um que é seu predileto. Os poloneses e católicos gostam de destacar o papel do papa polonês [João Paulo 2º], especialmente de suas visitas inspiradoras feitas à Polônia em 1979, 1983 e 1987.
Alemães e húngaros assinalam a contribuição dos comunistas reformistas húngaros que abriram a Cortina de Ferro e deixaram alemães orientais escaparem através dela.
(Michael Meyer, em "The Year That Changed the World" [O Ano Que Mudou o Mundo, ed. Scribner, 272 págs., US$°26, R$°45], repleto de recordações pessoais vívidas de fatos que testemunhou como correspondente da "Newsweek", chama isso de "história não relatada" de 1989; bem, talvez não o seja em inglês, mas em alemão ela já foi relatada muitas vezes.)

Pluralidade
Os especialistas em história russa costumam atribuir o crédito maior a Gorbatchov.
Os alemães de esquerda dão crédito a sua versão própria da "détente", conhecida como "Ostpolitik"; os norte-americanos de direita o dão a Ronald Reagan (o subtítulo do livro prescindível de Romesh Ratnesar sobre o discurso "derrubem este muro" proferido por Reagan em Berlim em 1987 ["Tear Down This Wall", Derrubem este Muro, ed. Simon and Schuster, 240 págs., US$°27, R$°47] é "Uma Cidade, Um Presidente e o Discurso Que Pôs Fim à Guerra Fria").
Não há nada de errado com tal pluralidade de perspectivas.
Cada uma lança luz sobre uma parte diferente do elefante ou vê o animal inteiro de um ângulo diferente. Mas, sempre que um autor se aferra a um elemento isolado e diz que esta é "a" explicação, "a" chave, sabemos que se equivoca.

Tese revisionista
Lamentavelmente, Stephen Kotkin, renomado historiador da URSS, cai nessa armadilha quando volta sua atenção a países que não conhece igualmente bem.
"Uncivil Society" [Sociedade Incivil, com colaboração de Jan T. Gross, ed. Random House, 240 págs., US$°24, R$°42] contém muitas explicações históricas substanciais e interessantes sobre o fracasso do comunismo, mas é prejudicado por um argumento estridentemente revisionista segundo o qual 1989, como sugere o subtítulo de seu livro, teria sido pouco mais que uma "Implosão do Establishment Comunista".
Esse establishment do Estado-partido, ou da "sociedade incivil" (em oposição ao que ele identifica como a imaginada ou idealizada "sociedade civil" celebrada na época por dissidentes e intelectuais ocidentais), "provocou a derrocada de seu próprio sistema".
Excetuando a Polônia, "o foco sobre a oposição se enquadra na esfera da ficção".
Sua polêmica atinge o ápice na seguinte linha: "A Alemanha Oriental foi um esquema de pirâmide que caiu numa corrida aos bancos". É uma afirmação que poderia ser aceitável como provocação em sala de aula; como afirmativa séria em um livro, é quase ridícula.
É verdade que, graças a pesquisas exaustivas de historiadores como Andre Steiner e Jeffrey Kopstein, hoje temos uma compreensão clara das dimensões da dívida da RDA em moeda forte e do impacto que ela teve sobre a liderança comunista no outono de 1989.
Ao tornar-se líder do partido, sucedendo a Erich Honecker, que ocultara a profundidade do problema da maioria de seus colegas -e talvez até de si próprio-, Egon Krenz pediu um relatório franco sobre a posição econômica do país.
Ao final de outubro, foi-lhe informado que a RDA "era dependente, no mais alto grau possível, de crédito capitalista".
Mas um Estado não é um banco, muito menos um esquema de pirâmide. Os Estados podem viver por períodos mais longos com dívidas grandes. Os Estados não "vão à falência" simplesmente.
E a RDA era um tipo particular de Estado: era a zona de ocupação soviética convertida em satélite da URSS.
Enquanto aquela superpotência dotada de armas nucleares estivesse disposta a carregar o ônus de seus Estados-satélites, esse Estado poderia ter continuado a existir.
Mas Mikhail Gorbatchov e seus assessores calcularam que a maior chance de modernizar a URSS dependeria de uma cooperação econômica em grande escala com a outra Alemanha -a República Federal- e outros parceiros ocidentais.
Gorbatchov sentia que não valia a pena colocar essa perspectiva em risco, dando apoio à repressão na RDA.
Se ele, ou um líder soviético diferente, tivesse tomado outra decisão, a RDA poderia ter sobrevivido muitos anos mais -como país miserável, endividado e dilacerado por crises, na linha de frente de um império miserável e dilacerado por crises, é verdade, mas não teria sido o primeiro caso desse tipo na história.
A metáfora da corrida aos bancos, à qual Kotkin retorna com frequência, mostra o que mais é falho em sua tese.
Em uma corrida aos bancos, uma massa de indivíduos agindo sob o efeito do pânico, de maneira totalmente descoordenada, corre a um banco para sacar seus valores pessoais ali depositados.
Elas não têm nenhum outro objetivo senão sacar seu dinheiro. Não têm organização, não formulam nenhuma visão de um banco melhor, que dirá de um sistema bancário diferente em um regime ou organização política alternativos.
É aparentemente isso o que Kotkin quer argumentar.

Sociedade organizada
Sempre excetuando o caso polonês, ele enxerga nas multidões que foram às ruas em 1989 apenas "mobilização social na ausência de uma organização correspondente da sociedade".
Assim, fazendo referência ao desenvolvimento acelerado da Revolução de Veludo da Tchecoslováquia, passando de manifestações de massa para uma greve geral nacional, escreve:
"Nada disso foi inspirado ou liderado por dissidentes ou pelo Fórum Cívico, que foi abolido pouco depois de 1989."
Então a greve geral teria se convocado sozinha, de alguma maneira.
Quando 300 mil pessoas reunidas na praça Wenceslas gritaram "Havel na hrad!" (Havel ao Castelo!), isso não teria significado que a biografia, a personalidade ou a liderança altamente visível de Vaclav Havel tivessem alguma coisa a ver com isso. Pois teria sido apenas mais uma "implosão" de um establishment comunista.
Para qualquer pessoa que tenha estado lá ou que simplesmente tenha lido os relatos meticulosos de historiadores tchecos e ocidentais que estudaram a Revolução de Veludo em seus detalhes, essa afirmação é tão indefensável quanto a que diz respeito ao esquema de pirâmide. É revisionismo ao cubo.
O importante em momentos como esses, de mobilização popular e resistência civil, é que, dadas certas condições preexistentes, formas de organização social como o Fórum Cívico podem emergir com rapidez extraordinária.
Trata-se de um fenômeno que os historiadores de 1989 deveriam estudar em mais profundidade, e não negar.
Afirmar que a ação popular e oposicionista na Europa central e oriental não teve participação no resultado é tão absurdo quanto seria afirmar que "o povo" sozinho derrubou o comunismo e um império dotado de armas nucleares.
Como é o caso com todos os processos históricos, os meios empregados e a estrutura precisam ser compreendidos em sua inter-relação complexa.
Na verdade, a essência de 1989 está nas interações múltiplas não apenas de uma única sociedade e um único Estado-partido, mas de muitas sociedades e Estados, em uma série de partidas de xadrez tridimensionais interligadas.
A revolução europeia de 1989 foi, desde o princípio, um evento internacional -e com isso me refiro não apenas às relações diplomáticas entre Estados, mas também às interações de Estados e sociedades atravessando fronteiras.

Minuto a minuto
Assim, as linhas de causalidade incluem a influência de Estados individuais sobre suas próprias sociedades, de sociedades sobre seus Estados, de Estados sobre outros Estados, de sociedades sobre outras sociedades, de Estados sobre outras sociedades (por exemplo, o impacto direto exercido por Gorbatchov sobre os europeus centrais e orientais) e de sociedades sobre outros Estados (por exemplo o efeito secundário que tiveram os protestos populares na Europa central e oriental sobre a URSS).
O fim do comunismo na Europa trouxe com ele a mais paradoxal realização de um sonho comunista. A Polônia em 1980-81 assistiu a uma revolução dos trabalhadores -mas ela foi feita contra um chamado Estado dos trabalhadores.
Os comunistas sonhavam com o internacionalismo proletário disseminando a revolução de país a país; em 1989, a revolução veio de fato e finalmente se disseminou de país a país, tendo como efeito o desmonte do comunismo. Mas é uma história que diz respeito tanto a consequências não pretendidas quanto a ações empreendidas propositalmente.
Assim, o que aconteceu em 1989 só pode ser entendido com base em uma reconstrução cronológica escrupulosa e detalhada dos efeitos pretendidos e não pretendidos, em direções múltiplas e em estágios múltiplos, dia a dia e, em alguns casos -como na véspera do 9 de novembro em Berlim-, minuto a minuto.
A reportagem correta ou incorreta de acontecimentos, especialmente a que é feita pela televisão, constitui em si uma parte vital da cadeia causal.
Quando um apresentador do noticiário das 22h30 na televisão alemã que gozava da confiança e estima do público declarou que "os portões do muro estão escancarados", eles ainda não estavam escancarados.
Mas sua declaração ajudou a escancará-los, já que intensificou o fluxo de berlinenses orientais (que assistiam à televisão alemã ocidental e tendiam a acreditar mais nela) esperançosos de passar pelos postos de fronteira com o Ocidente, além das multidões de berlinenses ocidentais que vieram saudá-los do outro lado.

Notícia errada
Um relato equivocado da Rádio Europa Livre, segundo o qual um estudante chamado Martin Smid tinha sido morto na repressão à manifestação estudantil de 17 de novembro de 1989 em Praga, ajudou a inchar as multidões que se reuniram em protesto nos primeiros dias da Revolução de Veludo na Tchecoslováquia.
(Naquela que me parece a melhor, e com certeza a mais divertida, das crônicas de retrospectiva, György Dalos ["Der Vorhang Geht Auf", A Cortina Sobe, ed. C.H. Beck, 272 págs., °19,90, R$°51] relata como o estudante voltou para casa na noite seguinte e soube por seu pai, bastante agitado, que estaria morto.) Um modelo do tipo de análise multinacional minuciosa de que precisamos é o trabalho do acadêmico de Harvard Mark Kramer sobre as relações soviético-europeias orientais, até agora publicado apenas em uma série de artigos acadêmicos, documentos de pesquisas e capítulos de livros.
Baseando seu trabalho em pesquisas extensas em arquivos soviéticos e do Leste Europeu, além de uma larga gama de fontes publicadas, Kramer demonstra toda a complexidade das interações entre o centro imperial e a periferia.
Conclui que aquilo que chama de "transbordamento" ocorreu principalmente da URSS em direção à Europa oriental entre 1986 e 1988, nas duas direções em 1989 e, então, de volta da Europa oriental à URSS em 1990-91, à medida que os Estados bálticos, a Ucrânia e, por fim, a própria Rússia se animaram a seguir o exemplo europeu central e oriental de autolibertação.
Apesar de sua importância, a interação soviético-europeia oriental é só uma parte da conjuntura internacional maior.
Na primeira metade de 1989, a nova administração americana do presidente George Bush foi extremamente reticente em sua resposta tanto a Gorbatchov quanto às transformações que estavam sendo propelidas por uma combinação de comunistas reformistas e dissidentes na Polônia e na Hungria.
O que aprendemos com os arquivos soviéticos e europeus orientais confirma que a avaliação feita por Washington de fato pecou por um excesso de ceticismo.
(Em um de vários excelentes ensaios acadêmicos do volume editado por Jeffrey Engel ["The Fall of the Berlin Wall", A Queda do Muro de Berlim, Oxford University Press, 208 págs., US$°27,95, R$°49], Melvyn P. Leffler observa como o então secretário da Defesa Dick Cheney sugeriu que as políticas de Gorbatchov "talvez sejam uma aberração temporária no comportamento de nosso maior adversário".)

Erro de avaliação
Bush tampouco acreditou muito em dissidentes barbudos que pareciam saídos da Universidade de Berkeley dos anos 60.
Victor Sebestyen, em "Revolution 1989" [ed. Pantheon, 480 págs., US$°30. R$°52], repleto de instantâneos pontuais e narrativa instigante, oferece um relato fundamentado em fontes confiáveis sobre um encontro do presidente com o importante dissidente húngaro János Kis em Budapeste, em julho de 1989, quando Bush teria dito mais tarde a seus assessores: "Esses não são realmente os caras certos para dirigir aquele lugar."
Seria melhor ficar mesmo com um comunista reformista, um tipo mais convencional.
Embora a atitude cautelosa de Washington fosse em parte fruto de um erro de avaliação, ela foi, na realidade, a melhor postura possível que os EUA poderiam ter assumido. Dessa vez, diferentemente de 1956, ninguém em Moscou pôde sugerir com a menor plausibilidade que os EUA estivessem mexendo o caldeirão de turbulência na Europa oriental.
Pelo contrário: Bush exortou pessoalmente o general Wojciech Jaruzelski a candidatar-se à Presidência da Polônia e era obcecado por não fazer nada que pudesse atrapalhar Gorbatchov.

Inação acertada
Sarotte sugere que a moderação americana tenha tornado mais fácil para a URSS, também, recuar um passo e deixar que os acontecimentos se de- senrolassem em campo na Europa central e oriental.
Exagerando um pouco, poderíamos dizer que Washington acertou pelo fato de ter errado em sua avaliação.
Para dar o crédito a quem é de direito: nos últimos meses de 1989, especialmente após a queda do muro, e ao longo de 1990, essa superabundância inicial de cautela se converteu em uma combinação de restrição inteiramente deliberada e um pouco de direção política impressionante em apoio à campanha de Helmut Kohl [à época chanceler da Alemanha Ocidental] pela unificação alemã em termos ocidentais.
Mas, durante os nove meses decisivos, entre o início das negociações de mesa-redonda da Polônia, em fevereiro, até a queda do muro, em novembro, a contribuição dos EUA consistiu principalmente naquilo que o país não fez.
Isso se aplica ainda mais à outra superpotência. Kramer argumenta que, em vários momentos, Gorbatchov de fato incentivou discretamente os líderes comunistas do Leste Europeu a irem no rumo de mudanças mais ousadas.

"Um bom povo"
Na maior parte do tempo, porém, sua contribuição crucial consistiu em aceitar transformações que ocorriam na periferia do império exterior da URSS, em lugar de tentar desacelerá-las ou revertê-las.
Quando Helmut Kohl perguntou a Gorbatchov o que pensava da decisão dos húngaros de abrir a Cortina de Ferro à Áustria, o líder soviético respondeu: "Os húngaros são um bom povo" (segundo artigo inédito de Norman Naimark).
Outro exemplo revelador vem da Polônia em agosto de 1989, quando o assessor da [organização sindical] Solidariedade Tadeusz Mazowiecki estava tentando formar um governo liderado e moldado por não-comunistas.
O último líder do Partido Comunista da Polônia, Mieczyslaw Rakowski, recorda em seu diário uma conversa telefônica que teve com Gorbatchov:
"Quando eu disse que não seria possível modificar a situação sem a ajuda de um estado de emergência, G. disse que uma nova variação da "stan wojenny" [o termo polonês que descrevia a lei marcial imposta pelo general Jaruzelski em dezembro de 1981] seria impossível e que, por mais cansativo que fosse, teríamos que sair dessa situação sem recorrer a tais meios" (22/8/ 1989).
E, no dia seguinte à ruptura popular espontânea, não planejada, do Muro de Berlim, o último líder do Partido Comunista da Alemanha Oriental, Egon Krenz, recebeu uma mensagem de Gorbatchov transmitida pelo embaixador soviético em Berlim Oriental.
Conforme lembra Krenz, o líder soviético o parabenizou por um "passo corajoso". Como observou o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger, ele foi um exemplo de um novo tipo de herói: o herói do recuo.
Contudo, a atitude contida de Gorbatchov se baseava num erro de percepção muito mais profundo que o de Bush. Ele pensava, de maneira equivocada, que as transformações não chegariam à fronteira da URSS, que enxergava como um país, não como um império interno.
Ao invés disso, como mostra Kramer, as transformações revolucionárias na Europa oriental e central contribuíram diretamente para a dissolução da própria URSS.
Robert Conquest, historiador do grande terror soviético e da grande fome ucraniana, perguntou a Gorbatchov, muitos anos mais tarde, se teria feito tudo outra vez se tivesse sabido quais seriam as consequências. Gorbatchov respondeu: "Provavelmente não".
Talvez seja uma característica das superpotências pensarem que elas fazem a história. Os grandes acontecimentos devem ser feitos por grandes potências. Mas, nos nove meses que pariram um novo mundo, entre fevereiro e novembro de 1989, os EUA e a URSS foram pouco mais do que parteiras passivas. Fizeram história pelo que deixaram de fazer.
E os dois gigantes se mantiveram no segundo plano em parte porque subestimaram o significado de coisas que estavam sendo feitas por pessoas pequenas em países pequenos.

Influência de Tiananmen
A China também exerceu um papel importante. O massacre da praça Tiananmen [em Pequim] ocorreu no dia do grande avanço da Polônia em uma eleição semilivre, 4 de junho de 1989. Nunca me esquecerei de ter assistido em uma tela de televisão no escritório improvisado do jornal oposicionista polonês "Gazeta Wyborcza", em meio à empolgação do dia eleitoral na Polônia, às primeiras imagens de manifestantes chineses mortos ou feridos sendo carregados da praça Tiananmen.
"Tiananmen" aconteceu na Europa também, no sentido em que tanto a oposição quanto os líderes comunistas reformistas viram o que poderia acontecer se as coisas chegassem a um confronto violento e redobraram seus esforços para impedir que isso acontecesse.
Em outras palavras, o fato de Tiananmen ter ocorrido na China é uma das razões por que não aconteceu na Europa (houve importante derramamento de sangue na Romênia, mas não resultou na permanência no poder do partido e da liderança comunistas da época).
Contudo uma influência então fluiu de volta na direção contrária: da URSS e da Europa oriental para a China.
Conforme o que foi documentado por David Shambaugh e outros, o Partido Comunista chinês estudou sistematicamente as lições da queda do comunismo na Europa, para garantir que o mesmo não acontecesse com ele.
A China de hoje é fruto desse processo de aprendizado.
O ano de 1989 foi um dos melhores da história europeia.
Na realidade, acho difícil pensar em qualquer ano que tenha sido melhor. Foi também um ano em que o mundo voltou seus olhos para a Europa -especificamente para a Europa central, e, em um momento crucial, para Berlim.
Para usar o termo em um sentido quase hegeliano, a história mundial foi feita no coração do Velho Continente, a dois passos da universidade em que Hegel estudara, agora chamada Universidade Humboldt.

A história não é mais aqui
Hoje, 20 anos depois, sinto-me tentado a especular (ao mesmo tempo em que continuo a colaborar com outros europeus num esforço para comprovar o equívoco desse palpite) que essa pode ter sido a última ocasião (por muito tempo, ao menos) em que a história mundial foi feita na Europa.
Hoje a história mundial está sendo feita em outras partes do mundo. Existe um Café Weltgeist na Universidade Humboldt, mas o próprio "weltgeist" [espírito do mundo] mudou de lugar.
Referindo-se ao prolongado papel protagonista exercido pela Europa no palco mundial, é possível que gerações futuras venham a dizer que nada conveio tão bem a ela quanto abrir mão dele.
De qualquer maneira, apenas agora estão começando a vir à tona as consequências de mais longo prazo de 1989. Também elas fazem parte da história global sintética de 1989, que, em parte por essa razão, não poderia ter sido escrita antes.
Passadas duas décadas, porém, é chegada a hora de algum historiador jovem e brilhante -que se sinta à vontade em muitas línguas; que seja capaz de enxergar o ponto de vista tanto dos detentores do poder quanto das chamadas pessoas comuns; que seja um escritor dotado de distinção; que ocupe uma cadeira numa universidade, mas tenha poucas obrigações como professor; dotado de bom financiamento para efetuar pesquisas extensas em vários continentes; stakhanovita em seus hábitos de trabalho e monástico em sua vida privada- começar a escrever essa obra-prima necessária e quase impossível: uma espécie de "gesamtkunstwerk" [obra de arte total] wagneriana da história moderna.
Com sorte, aprontará a obra em tempo para o trigésimo aniversário de 1989, em 2019.


TIMOTHY GARTON ASH é professor de estudos europeus na Universidade de Oxford e autor de "Nós, o Povo" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto saiu no "New York Review of Books", que em breve publicará sua segunda parte.

Tradução de Clara Allain.


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