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1989!
MANIFESTAÇÕES POPULARES
E INCOMPREENSÃO DO MOMENTO HISTÓRICO POR PARTE DE EUA E UNIÃO SOVIÉTICA FORAM DECISIVAS PARA
A QUEDA DO MURO,
APONTAM NOVAS PESQUISAS
TIMOTHY GARTON ASH
Não é surpreendente que o 20º aniversário de 1989
venha acrescentar
mais livros a uma
estante já repleta de obras sobre o ano que encerrou o curto
século 20.
Se ampliarmos "1989" para
abranger também a unificação
da Alemanha e a desunificação
da União Soviética [URSS] em
1990-91, devemos dizer, com
mais precisão, os três anos que
encerraram o século.
Os livros sobre o aniversário
incluem retrospectivas jornalísticas, com algumas visões
pessoais vívidas e detalhes
marcantes (Victor Sebestyen,
György Dalos, Michael Meyer e
Michel Meyer [este, autor de
"Histoire Secrète de la Chute
du Mur de Berlin", História Secreta da Queda do Muro de
Berlim, ed. Odile Jacob, 352
págs., °21, R$°54]), instigantes
ensaios de interpretação histórica (Stephen Kotkin e Constantine Pleshakov [deste,
"There Is No Freedom without
Bread!", Não Há Liberdade
sem Pão, Farrar, Straus and Giroux, 304 págs., US$°26,
R$°45]) e trabalhos acadêmicos
originais baseados em fontes
de arquivo e em história oral
(Mary Elise Sarotte e o volume
editado por Jeffrey Engel).
Não posso fazer resenhas individuais das obras. A maioria
delas acrescenta algo a nossos
conhecimentos; algumas
acrescentam bastante.
Não constitui crítica nenhuma a qualquer um desses autores dizer que concluí sua leitura sonhando com outro livro: a
história global e sintética de
1989 que ainda falta ser escrita.
Ao longo desses 20 anos, as
descobertas mais interessantes
têm saído dos arquivos soviéticos, americanos e alemães e,
em grau menor, de outros do
Leste Europeu, britânicos e
franceses. Lançam luz principalmente sobre a alta política
de 1989-1991.
Assim, ficamos sabendo, por
exemplo, que o Politburo soviético nem sequer chegou a
discutir a Alemanha em 9 de
novembro de 1989, o dia em
que o Muro de Berlim iria cair,
mas, em vez disso, ouviu um
relato assustado do primeiro-ministro Nikolai Rijkov sobre
preparativos para a secessão
nos Estados bálticos e seus
possíveis efeitos sobre a Ucrânia e a Rússia. "Sinto cheiro de
um colapso geral", disse Rijkov.
Campo desconhecido
É notável ler as palavras repulsivamente lisonjeiras com
que Anatoly Chernyaev, assessor de Mikhail Gorbatchov [então secretário-geral do PC soviético], saudou a queda do
Muro de Berlim na anotação
feita em seu diário em 10 de novembro: "Isto é o que Gorbatchov fez... Ele intuiu o passo da
história e ajudou a história a
encontrar um canal natural."
Para um inglês, causa vergonha descobrir a desfaçatez com
que Margaret Thatcher parece
ter traído as promessas feitas
publicamente à Alemanha.
"As palavras escritas no comunicado da Otan podem soar
diferentes, mas ignore-as", ela
teria dito a Gorbatchov em setembro de 1989, segundo anotação da conversa redigida por
Chernyaev. "Não queremos a
unificação da Alemanha."
(Recorrendo à Lei de Liberdade de Informação britânica,
Sarotte ["1989 -The Struggle to
Create Post-Cold War Europe", A Luta para Criar a Europa
Pós-Guerra Fria, Princeton
University Press, 344 págs.,
US$°29,95, R$°52] também teve acesso ao registro britânico
feito da mesma conversa. Ela
observa que o registro "não
continha essas declarações,
mas foi editado".)
Assim, num clássico avanço à
la Ranke [1795-1886, historiador alemão] dos conhecimentos, sabemos mais do que sabíamos, à época, sobre essas áreas
da alta política tradicionalmente documentadas.
Em contraste, descobrimos
pouca coisa nova sobre as causas e as dinâmicas sociais das
ações populares de massa que
realmente deram a 1989 o direito de reivindicar-se uma revolução, ou uma sucessão de
revoluções.
Multidão
Passei muitas horas de minha vida no meio dessas multidões, em Varsóvia, Budapeste,
Berlim e Praga; o comportamento delas era ao mesmo
tempo inspirador e misterioso.
O que tinha movido esses homens e essas mulheres a sair às
ruas, especialmente nos primeiros dias dos movimentos,
quando ainda não era evidente
que fosse possível fazê-lo em
segurança?
O que os movia enquanto
multidões? Quem, em Praga,
foi a primeira pessoa a tirar um
chaveiro de seu bolso, erguer as
chaves ao alto e sacudi-las
-uma ação que, imitada por
300 mil pessoas, produziu o
som mais espantoso que se poderia imaginar, como sinos chineses acumulados em massa?
Historiadores como George
Rudé [1910-93], com seu estudo pioneiro sobre a multidão na
Revolução Francesa, E.P.
Thompson [1924-93] e Eric
Hobsbawm tentaram compreender a dinâmica subjacente do protesto popular em períodos anteriores.
Certamente já é hora de historiadores contemporâneos,
com fontes melhores à disposição (horas de gravações de televisão, vídeo e rádio, por exemplo), encararem o desafio de
tentar analisar 1989 de baixo
para cima, não apenas de cima
para baixo.
Todo estudioso que escreve
sobre 1989 luta contra uma
propensão humana quase inevitável, batizada por psicólogos
de "viés da visão retroativa"
-ou seja, a tendência a enxergar resultados históricos reais como mais prováveis do que as
alternativas que pareciam reais
na época (por exemplo, uma repressão ao estilo de Tiananmen
na Europa central).
O que aconteceu de fato se
apresenta para nós como algo
que não poderia ter deixado de
acontecer. Henri Bergson
[1859-1941] falou das "ilusões
do determinismo retrospectivo". São propostas explicações
do que aconteceu.
Como comentou um estudioso alguns anos após 1989:
ninguém previu o que aconteceria, mas todos souberam explicá-lo depois.
Ao ler esses livros, me veio
novamente à mente a "lei da
cornucópia infinita" do filósofo
polonês Leszek Kolakowski
[1927-2009], segundo a qual é
possível encontrar um número
infinito de explicações de qualquer acontecimento dado.
Uma grande qualidade de
"1989", de Mary Elise Sarotte, é
explicitar o problema do viés da
visão retroativa e explorar, de
maneira sistemática, os caminhos que não foram trilhados.
Ela nos recorda, por exemplo, quão perto a Alemanha
Oriental poderia ter chegado
de derramar sangue em Leipzig
em 9 de outubro de 1989: as autoridades mobilizaram uma
força de 8.000 homens, incluindo policiais, soldados e
membros da agência de inteligência Stasi; hospitais foram
instruídos a preparar leitos para possíveis vítimas.
E ela analisa os modelos diplomáticos que foram sugeridos, mas não executados, na
formação de uma nova ordem
europeia em 1990, incluindo o
modelo de um sistema de segurança pan-europeu construído
em torno da existência continuada de dois Estados alemães
separados.
Jargões particulares
Todo escritor tem um viés
profissional, geográfico ou disciplinar.
Jornalistas, políticos, diplomatas, historiadores, cientistas
políticos, especialistas no estudo dos processos de transição
de um regime político a outro,
estudiosos de movimentos sociais, economistas, especialistas em estudos de segurança,
resistência civil e relações internacionais -todos chegam a
1989 já com suas experiências,
seus métodos, quadros de referência comparativos e jargões
próprios.
Com frequência terminam
por dizer mais ou menos a mesma coisa de maneiras distintas.
O sucesso tem muitos pais, e
todo mundo tem um que é seu
predileto. Os poloneses e católicos gostam de destacar o papel do papa polonês [João Paulo 2º], especialmente de suas
visitas inspiradoras feitas à Polônia em 1979, 1983 e 1987.
Alemães e húngaros assinalam a contribuição dos comunistas reformistas húngaros
que abriram a Cortina de Ferro
e deixaram alemães orientais
escaparem através dela.
(Michael Meyer, em "The
Year That Changed the World"
[O Ano Que Mudou o Mundo,
ed. Scribner, 272 págs., US$°26,
R$°45], repleto de recordações
pessoais vívidas de fatos que
testemunhou como correspondente da "Newsweek", chama
isso de "história não relatada"
de 1989; bem, talvez não o seja
em inglês, mas em alemão ela já
foi relatada muitas vezes.)
Pluralidade
Os especialistas em história
russa costumam atribuir o crédito maior a Gorbatchov.
Os alemães de esquerda dão
crédito a sua versão própria da
"détente", conhecida como
"Ostpolitik"; os norte-americanos de direita o dão a Ronald
Reagan (o subtítulo do livro
prescindível de Romesh Ratnesar sobre o discurso "derrubem
este muro" proferido por Reagan em Berlim em 1987 ["Tear
Down This Wall", Derrubem
este Muro, ed. Simon and
Schuster, 240 págs., US$°27,
R$°47] é "Uma Cidade, Um Presidente e o Discurso Que Pôs
Fim à Guerra Fria").
Não há nada de errado com
tal pluralidade de perspectivas.
Cada uma lança luz sobre
uma parte diferente do elefante
ou vê o animal inteiro de um
ângulo diferente. Mas, sempre
que um autor se aferra a um
elemento isolado e diz que esta
é "a" explicação, "a" chave, sabemos que se equivoca.
Tese revisionista
Lamentavelmente, Stephen
Kotkin, renomado historiador
da URSS, cai nessa armadilha
quando volta sua atenção a países que não conhece igualmente bem.
"Uncivil Society" [Sociedade
Incivil, com colaboração de Jan
T. Gross, ed. Random House,
240 págs., US$°24, R$°42] contém muitas explicações históricas substanciais e interessantes sobre o fracasso do comunismo, mas é prejudicado por
um argumento estridentemente revisionista segundo o qual
1989, como sugere o subtítulo
de seu livro, teria sido pouco
mais que uma "Implosão do Establishment Comunista".
Esse establishment do Estado-partido, ou da "sociedade
incivil" (em oposição ao que ele
identifica como a imaginada ou
idealizada "sociedade civil" celebrada na época por dissidentes e intelectuais ocidentais),
"provocou a derrocada de seu
próprio sistema".
Excetuando a Polônia, "o foco sobre a oposição se enquadra na esfera da ficção".
Sua polêmica atinge o ápice
na seguinte linha: "A Alemanha
Oriental foi um esquema de pirâmide que caiu numa corrida
aos bancos". É uma afirmação
que poderia ser aceitável como
provocação em sala de aula; como afirmativa séria em um livro, é quase ridícula.
É verdade que, graças a pesquisas exaustivas de historiadores como Andre Steiner e
Jeffrey Kopstein, hoje temos
uma compreensão clara das dimensões da dívida da RDA em
moeda forte e do impacto que
ela teve sobre a liderança comunista no outono de 1989.
Ao tornar-se líder do partido,
sucedendo a Erich Honecker,
que ocultara a profundidade do
problema da maioria de seus
colegas -e talvez até de si próprio-, Egon Krenz pediu um
relatório franco sobre a posição
econômica do país.
Ao final de outubro, foi-lhe
informado que a RDA "era dependente, no mais alto grau
possível, de crédito capitalista".
Mas um Estado não é um
banco, muito menos um esquema de pirâmide. Os Estados podem viver por períodos mais
longos com dívidas grandes. Os
Estados não "vão à falência"
simplesmente.
E a RDA era um tipo particular de Estado: era a zona de ocupação soviética convertida em
satélite da URSS.
Enquanto aquela superpotência dotada de armas nucleares estivesse disposta a carregar o ônus de seus Estados-satélites, esse Estado poderia ter
continuado a existir.
Mas Mikhail Gorbatchov e
seus assessores calcularam que
a maior chance de modernizar
a URSS dependeria de uma
cooperação econômica em
grande escala com a outra Alemanha -a República Federal-
e outros parceiros ocidentais.
Gorbatchov sentia que não
valia a pena colocar essa perspectiva em risco, dando apoio à
repressão na RDA.
Se ele, ou um líder soviético
diferente, tivesse tomado outra
decisão, a RDA poderia ter sobrevivido muitos anos mais
-como país miserável, endividado e dilacerado por crises, na
linha de frente de um império
miserável e dilacerado por crises, é verdade, mas não teria sido o primeiro caso desse tipo
na história.
A metáfora da corrida aos
bancos, à qual Kotkin retorna
com frequência, mostra o que
mais é falho em sua tese.
Em uma corrida aos bancos,
uma massa de indivíduos agindo sob o efeito do pânico, de
maneira totalmente descoordenada, corre a um banco para
sacar seus valores pessoais ali
depositados.
Elas não têm nenhum outro
objetivo senão sacar seu dinheiro. Não têm organização,
não formulam nenhuma visão
de um banco melhor, que dirá
de um sistema bancário diferente em um regime ou organização política alternativos.
É aparentemente isso o que
Kotkin quer argumentar.
Sociedade organizada
Sempre excetuando o caso
polonês, ele enxerga nas multidões que foram às ruas em 1989
apenas "mobilização social na
ausência de uma organização
correspondente da sociedade".
Assim, fazendo referência ao
desenvolvimento acelerado da
Revolução de Veludo da Tchecoslováquia, passando de manifestações de massa para uma
greve geral nacional, escreve:
"Nada disso foi inspirado ou
liderado por dissidentes ou pelo Fórum Cívico, que foi abolido pouco depois de 1989."
Então a greve geral teria se
convocado sozinha, de alguma
maneira.
Quando 300 mil pessoas reunidas na praça Wenceslas gritaram "Havel na hrad!" (Havel ao
Castelo!), isso não teria significado que a biografia, a personalidade ou a liderança altamente
visível de Vaclav Havel tivessem alguma coisa a ver com isso. Pois teria sido apenas mais
uma "implosão" de um establishment comunista.
Para qualquer pessoa que tenha estado lá ou que simplesmente tenha lido os relatos meticulosos de historiadores tchecos e ocidentais que estudaram
a Revolução de Veludo em seus
detalhes, essa afirmação é tão
indefensável quanto a que diz
respeito ao esquema de pirâmide. É revisionismo ao cubo.
O importante em momentos
como esses, de mobilização popular e resistência civil, é que,
dadas certas condições preexistentes, formas de organização
social como o Fórum Cívico podem emergir com rapidez extraordinária.
Trata-se de um fenômeno
que os historiadores de 1989
deveriam estudar em mais profundidade, e não negar.
Afirmar que a ação popular e
oposicionista na Europa central e oriental não teve participação no resultado é tão absurdo quanto seria afirmar que "o
povo" sozinho derrubou o comunismo e um império dotado
de armas nucleares.
Como é o caso com todos os
processos históricos, os meios
empregados e a estrutura precisam ser compreendidos em
sua inter-relação complexa.
Na verdade, a essência de
1989 está nas interações múltiplas não apenas de uma única
sociedade e um único Estado-partido, mas de muitas sociedades e Estados, em uma série
de partidas de xadrez tridimensionais interligadas.
A revolução europeia de 1989
foi, desde o princípio, um evento internacional -e com isso
me refiro não apenas às relações diplomáticas entre Estados, mas também às interações
de Estados e sociedades atravessando fronteiras.
Minuto a minuto
Assim, as linhas de causalidade incluem a influência de Estados individuais sobre suas
próprias sociedades, de sociedades sobre seus Estados, de
Estados sobre outros Estados,
de sociedades sobre outras sociedades, de Estados sobre outras sociedades (por exemplo, o
impacto direto exercido por
Gorbatchov sobre os europeus
centrais e orientais) e de sociedades sobre outros Estados
(por exemplo o efeito secundário que tiveram os protestos
populares na Europa central e
oriental sobre a URSS).
O fim do comunismo na Europa trouxe com ele a mais paradoxal realização de um sonho
comunista. A Polônia em 1980-81 assistiu a uma revolução dos
trabalhadores -mas ela foi feita contra um chamado Estado
dos trabalhadores.
Os comunistas sonhavam
com o internacionalismo proletário disseminando a revolução de país a país; em 1989, a revolução veio de fato e finalmente se disseminou de país a país,
tendo como efeito o desmonte
do comunismo. Mas é uma história que diz respeito tanto a
consequências não pretendidas quanto a ações empreendidas propositalmente.
Assim, o que aconteceu em
1989 só pode ser entendido
com base em uma reconstrução cronológica escrupulosa e
detalhada dos efeitos pretendidos e não pretendidos, em direções múltiplas e em estágios
múltiplos, dia a dia e, em alguns
casos -como na véspera do 9
de novembro em Berlim-, minuto a minuto.
A reportagem correta ou incorreta de acontecimentos, especialmente a que é feita pela
televisão, constitui em si uma
parte vital da cadeia causal.
Quando um apresentador do
noticiário das 22h30 na televisão alemã que gozava da confiança e estima do público declarou que "os portões do muro
estão escancarados", eles ainda
não estavam escancarados.
Mas sua declaração ajudou a
escancará-los, já que intensificou o fluxo de berlinenses
orientais (que assistiam à televisão alemã ocidental e tendiam a acreditar mais nela) esperançosos de passar pelos
postos de fronteira com o Ocidente, além das multidões de
berlinenses ocidentais que vieram saudá-los do outro lado.
Notícia errada
Um relato equivocado da Rádio Europa Livre, segundo o
qual um estudante chamado
Martin Smid tinha sido morto
na repressão à manifestação
estudantil de 17 de novembro
de 1989 em Praga, ajudou a inchar as multidões que se reuniram em protesto nos primeiros
dias da Revolução de Veludo na
Tchecoslováquia.
(Naquela que me parece a
melhor, e com certeza a mais
divertida, das crônicas de retrospectiva, György Dalos
["Der Vorhang Geht Auf", A
Cortina Sobe, ed. C.H. Beck,
272 págs., °19,90, R$°51] relata
como o estudante voltou para
casa na noite seguinte e soube
por seu pai, bastante agitado,
que estaria morto.)
Um modelo do tipo de análise multinacional minuciosa de
que precisamos é o trabalho do
acadêmico de Harvard Mark
Kramer sobre as relações soviético-europeias orientais, até
agora publicado apenas em
uma série de artigos acadêmicos, documentos de pesquisas
e capítulos de livros.
Baseando seu trabalho em
pesquisas extensas em arquivos soviéticos e do Leste Europeu, além de uma larga gama
de fontes publicadas, Kramer
demonstra toda a complexidade das interações entre o centro imperial e a periferia.
Conclui que aquilo que chama de "transbordamento"
ocorreu principalmente da
URSS em direção à Europa
oriental entre 1986 e 1988, nas
duas direções em 1989 e, então,
de volta da Europa oriental à
URSS em 1990-91, à medida
que os Estados bálticos, a Ucrânia e, por fim, a própria Rússia
se animaram a seguir o exemplo europeu central e oriental
de autolibertação.
Apesar de sua importância, a
interação soviético-europeia
oriental é só uma parte da conjuntura internacional maior.
Na primeira metade de 1989,
a nova administração americana do presidente George Bush
foi extremamente reticente em
sua resposta tanto a Gorbatchov quanto às transformações
que estavam sendo propelidas
por uma combinação de comunistas reformistas e dissidentes na Polônia e na Hungria.
O que aprendemos com os
arquivos soviéticos e europeus
orientais confirma que a avaliação feita por Washington de
fato pecou por um excesso de
ceticismo.
(Em um de vários excelentes
ensaios acadêmicos do volume
editado por Jeffrey Engel
["The Fall of the Berlin Wall",
A Queda do Muro de Berlim,
Oxford University Press, 208
págs., US$°27,95, R$°49],
Melvyn P. Leffler observa como o então secretário da Defesa Dick Cheney sugeriu que as
políticas de Gorbatchov "talvez
sejam uma aberração temporária no comportamento de nosso maior adversário".)
Erro de avaliação
Bush tampouco acreditou
muito em dissidentes barbudos
que pareciam saídos da Universidade de Berkeley dos anos 60.
Victor Sebestyen, em "Revolution 1989" [ed. Pantheon,
480 págs., US$°30. R$°52], repleto de instantâneos pontuais
e narrativa instigante, oferece
um relato fundamentado em
fontes confiáveis sobre um encontro do presidente com o importante dissidente húngaro
János Kis em Budapeste, em
julho de 1989, quando Bush teria dito mais tarde a seus assessores: "Esses não são realmente os caras certos para dirigir
aquele lugar."
Seria melhor ficar mesmo
com um comunista reformista,
um tipo mais convencional.
Embora a atitude cautelosa
de Washington fosse em parte
fruto de um erro de avaliação,
ela foi, na realidade, a melhor
postura possível que os EUA
poderiam ter assumido. Dessa
vez, diferentemente de 1956,
ninguém em Moscou pôde sugerir com a menor plausibilidade que os EUA estivessem mexendo o caldeirão de turbulência na Europa oriental.
Pelo contrário: Bush exortou
pessoalmente o general Wojciech Jaruzelski a candidatar-se à Presidência da Polônia e
era obcecado por não fazer nada que pudesse atrapalhar Gorbatchov.
Inação acertada
Sarotte sugere que a moderação americana tenha tornado
mais fácil para a URSS, também, recuar um passo e deixar
que os acontecimentos se de-
senrolassem em campo na Europa central e oriental.
Exagerando um pouco, poderíamos dizer que Washington
acertou pelo fato de ter errado
em sua avaliação.
Para dar o crédito a quem é
de direito: nos últimos meses
de 1989, especialmente após a
queda do muro, e ao longo de
1990, essa superabundância
inicial de cautela se converteu
em uma combinação de restrição inteiramente deliberada e
um pouco de direção política
impressionante em apoio à
campanha de Helmut Kohl [à
época chanceler da Alemanha
Ocidental] pela unificação alemã em termos ocidentais.
Mas, durante os nove meses
decisivos, entre o início das negociações de mesa-redonda da
Polônia, em fevereiro, até a
queda do muro, em novembro,
a contribuição dos EUA consistiu principalmente naquilo que
o país não fez.
Isso se aplica ainda mais à
outra superpotência. Kramer
argumenta que, em vários momentos, Gorbatchov de fato incentivou discretamente os líderes comunistas do Leste Europeu a irem no rumo de mudanças mais ousadas.
"Um bom povo"
Na maior parte do tempo, porém, sua contribuição crucial
consistiu em aceitar transformações que ocorriam na periferia do império exterior da
URSS, em lugar de tentar desacelerá-las ou revertê-las.
Quando Helmut Kohl perguntou a Gorbatchov o que
pensava da decisão dos húngaros de abrir a Cortina de Ferro
à Áustria, o líder soviético respondeu: "Os húngaros são um
bom povo" (segundo artigo inédito de Norman Naimark).
Outro exemplo revelador
vem da Polônia em agosto de
1989, quando o assessor da [organização sindical] Solidariedade Tadeusz Mazowiecki estava tentando formar um governo liderado e moldado por
não-comunistas.
O último líder do Partido Comunista da Polônia, Mieczyslaw Rakowski, recorda em seu
diário uma conversa telefônica
que teve com Gorbatchov:
"Quando eu disse que não seria possível modificar a situação sem a ajuda de um estado
de emergência, G. disse que
uma nova variação da "stan wojenny" [o termo polonês que
descrevia a lei marcial imposta
pelo general Jaruzelski em dezembro de 1981] seria impossível e que, por mais cansativo
que fosse, teríamos que sair
dessa situação sem recorrer a
tais meios" (22/8/ 1989).
E, no dia seguinte à ruptura
popular espontânea, não planejada, do Muro de Berlim, o
último líder do Partido Comunista da Alemanha Oriental,
Egon Krenz, recebeu uma
mensagem de Gorbatchov
transmitida pelo embaixador
soviético em Berlim Oriental.
Conforme lembra Krenz, o
líder soviético o parabenizou
por um "passo corajoso". Como
observou o escritor alemão
Hans Magnus Enzensberger,
ele foi um exemplo de um novo
tipo de herói: o herói do recuo.
Contudo, a atitude contida
de Gorbatchov se baseava num
erro de percepção muito mais
profundo que o de Bush. Ele
pensava, de maneira equivocada, que as transformações não
chegariam à fronteira da URSS,
que enxergava como um país,
não como um império interno.
Ao invés disso, como mostra
Kramer, as transformações revolucionárias na Europa oriental e central contribuíram diretamente para a dissolução da
própria URSS.
Robert Conquest, historiador do grande terror soviético e
da grande fome ucraniana, perguntou a Gorbatchov, muitos
anos mais tarde, se teria feito
tudo outra vez se tivesse sabido
quais seriam as consequências.
Gorbatchov respondeu: "Provavelmente não".
Talvez seja uma característica das superpotências pensarem que elas fazem a história.
Os grandes acontecimentos devem ser feitos por grandes potências. Mas, nos nove meses
que pariram um novo mundo,
entre fevereiro e novembro de
1989, os EUA e a URSS foram
pouco mais do que parteiras
passivas. Fizeram história pelo
que deixaram de fazer.
E os dois gigantes se mantiveram no segundo plano em
parte porque subestimaram o
significado de coisas que estavam sendo feitas por pessoas
pequenas em países pequenos.
Influência de Tiananmen
A China também exerceu um
papel importante. O massacre
da praça Tiananmen [em Pequim] ocorreu no dia do grande
avanço da Polônia em uma eleição semilivre, 4 de junho de
1989. Nunca me esquecerei de
ter assistido em uma tela de televisão no escritório improvisado do jornal oposicionista
polonês "Gazeta Wyborcza",
em meio à empolgação do dia
eleitoral na Polônia, às primeiras imagens de manifestantes
chineses mortos ou feridos
sendo carregados da praça Tiananmen.
"Tiananmen" aconteceu na
Europa também, no sentido em
que tanto a oposição quanto os
líderes comunistas reformistas
viram o que poderia acontecer
se as coisas chegassem a um
confronto violento e redobraram seus esforços para impedir
que isso acontecesse.
Em outras palavras, o fato de
Tiananmen ter ocorrido na
China é uma das razões por que
não aconteceu na Europa (houve importante derramamento
de sangue na Romênia, mas
não resultou na permanência
no poder do partido e da liderança comunistas da época).
Contudo uma influência então fluiu de volta na direção
contrária: da URSS e da Europa
oriental para a China.
Conforme o que foi documentado por David Shambaugh e outros, o Partido Comunista chinês estudou sistematicamente as lições da queda
do comunismo na Europa, para
garantir que o mesmo não
acontecesse com ele.
A China de hoje é fruto desse
processo de aprendizado.
O ano de 1989 foi um dos melhores da história europeia.
Na realidade, acho difícil
pensar em qualquer ano que tenha sido melhor. Foi também
um ano em que o mundo voltou
seus olhos para a Europa -especificamente para a Europa
central, e, em um momento
crucial, para Berlim.
Para usar o termo em um
sentido quase hegeliano, a história mundial foi feita no coração do Velho Continente, a dois
passos da universidade em que
Hegel estudara, agora chamada
Universidade Humboldt.
A história não é mais aqui
Hoje, 20 anos depois, sinto-me tentado a especular (ao
mesmo tempo em que continuo a colaborar com outros europeus num esforço para comprovar o equívoco desse palpite) que essa pode ter sido a última ocasião (por muito tempo,
ao menos) em que a história
mundial foi feita na Europa.
Hoje a história mundial está
sendo feita em outras partes do
mundo. Existe um Café Weltgeist na Universidade Humboldt, mas o próprio "weltgeist" [espírito do mundo] mudou de lugar.
Referindo-se ao prolongado
papel protagonista exercido
pela Europa no palco mundial,
é possível que gerações futuras
venham a dizer que nada conveio tão bem a ela quanto abrir
mão dele.
De qualquer maneira, apenas
agora estão começando a vir à
tona as consequências de mais
longo prazo de 1989. Também
elas fazem parte da história global sintética de 1989, que, em
parte por essa razão, não poderia ter sido escrita antes.
Passadas duas décadas, porém, é chegada a hora de algum
historiador jovem e brilhante
-que se sinta à vontade em
muitas línguas; que seja capaz
de enxergar o ponto de vista
tanto dos detentores do poder
quanto das chamadas pessoas
comuns; que seja um escritor
dotado de distinção; que ocupe
uma cadeira numa universidade, mas tenha poucas obrigações como professor; dotado de
bom financiamento para efetuar pesquisas extensas em vários continentes; stakhanovita
em seus hábitos de trabalho e
monástico em sua vida privada- começar a escrever essa
obra-prima necessária e quase
impossível: uma espécie de "gesamtkunstwerk" [obra de arte
total] wagneriana da história
moderna.
Com sorte, aprontará a obra
em tempo para o trigésimo aniversário de 1989, em 2019.
TIMOTHY GARTON ASH é professor de estudos
europeus na Universidade de Oxford e autor de
"Nós, o Povo" (Cia. das Letras). A íntegra deste
texto saiu no "New York Review of Books", que
em breve publicará sua segunda parte.
Tradução de Clara Allain.
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