São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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+ filosofia

Apoio a uma ação militar contra o terror exige repensar os fundamentos legais que permitem matar não-combatentes, como em guerras ou em legítima defesa

Os efeitos colaterais da moral

Thomas Nagel
especial para a Folha

Pessoas do mundo inteiro reagem com horror visceral aos ataques contra civis praticados pela [rede terrorista] Al Qaeda, por homens-bomba palestinos, separatistas bascos ou tchetchenos ou por militantes do IRA (Exército Republicano Irlandês). Talvez seja o momento de abordar uma questão fundamental: o que torna as matanças dos terroristas mais dignas de condenação que qualquer outra forma de assassinato? A ignomínia especial associada à palavra "terrorismo" deve ser entendida como uma condenação dos meios, e não dos fins. É claro que aqueles que condenam os atentados terroristas contra civis muitas vezes também rejeitam os fins que os atacantes pretendem alcançar. Eles pensam que um Estado basco separado ou a retirada das forças americanas do Oriente Médio, por exemplo, não são objetivos que alguém devesse perseguir, muito menos por meios violentos.

Meios e fins
Mas a condenação não depende de uma recusa dos objetivos dos terroristas. A reação aos atentados de 11 de setembro em Nova York e Washington e outros semelhantes salienta que esses meios são ultrajantes, sejam quais forem os fins; não devem ser usados nem sequer para alcançar um bom fim -na verdade, mesmo que não haja outra maneira de alcançá-lo. A comparação normal de custos contra benefícios não é permissível aqui. Essa afirmação não é tão simples quanto parece, porque não depende de um princípio de moral geral que proíba toda matança de não-combatentes. De modo semelhante, os que condenam o terrorismo como algo que ultrapassa os limites geralmente não são pacifistas. Eles acreditam não apenas que é certo matar soldados e bombardear depósitos de munição em tempos de guerra, mas também que infligir "danos colaterais" a não-combatentes às vezes é inevitável -e moralmente permissível. Mas, se isso é permissível, por que é errado visar diretamente não-combatentes, se sua morte tiver uma boa probabilidade de levar o inimigo a cessar hostilidades, a recuar de território ocupado ou garantir a independência? Morrer é ruim, seja qual for a maneira de ser morto. Então por que a morte de um civil deveria ser aceitável se ocorresse como efeito colateral de um combate que serve a um fim válido, enquanto a morte de um civil infligida deliberadamente como um meio para o mesmo fim é um ultraje terrorista?

Repulsa generalizada
A distinção não é universalmente aceita -certamente não pelos principais beligerantes da Segunda Guerra Mundial. Hiroshima é o exemplo mais famoso de bombardeio terrorista, mas os alemães, os japoneses e os britânicos, assim como os americanos, deliberadamente chacinaram não-combatentes civis em grande número. Hoje, no entanto, o terrorismo inspira uma repulsa generalizada, que por sua vez ajuda a justificar a ação militar contra ele. Por isso é essencial que o motivo dessa repulsa seja mais bem entendido. A idéia moral central é a proibição de visar a morte de uma pessoa indefesa. Assim, todo mundo é supostamente inviolável até que se torne um perigo para os outros; temos permissão para matar em autodefesa e para atacar combatentes inimigos na guerra. Mas isso é uma exceção a um requisito geral e rígido de respeito pela vida humana. Desde que não estejamos praticando nenhum mal, ninguém pode nos matar só porque seria útil fazê-lo. Esse respeito básico mínimo é devido a todo indivíduo e não pode ser violado nem mesmo para atingir objetivos válidos a longo prazo. Mas há algumas atividades, incluindo a legítima autodefesa ou a guerra, que criam um risco inevitável de danos a partes inocentes. Isso é verdade não apenas em relação às ações militares ou policiais violentas, mas também a projetos pacíficos, como grandes obras em cidades densamente povoadas. Nesses casos, se o objetivo for suficientemente importante, a atividade não é moralmente proibida, desde que se tomem os devidos cuidados para minimizar o risco de danos a partes inocentes, compatíveis com a realização do objetivo.

Máximo pelo mínimo
O conceito moral é que somos obrigados a fazer o possível para evitar ou minimizar as baixas civis na guerra, mesmo sabendo que não podemos evitá-las completamente. Essas mortes não violam a estrita proteção à vida humana -que não podemos pretender matar uma pessoa indefesa. Ao contrário, nosso objetivo é, se possível, evitar essas mortes colaterais.
É claro que a vítima acaba morrendo, seja deliberadamente por um terrorista ou lamentavelmente como efeito colateral de um ataque a um alvo militar legítimo. Mas, em nosso sentido do que nos é devido moralmente por nossos semelhantes, existe uma enorme diferença entre esses dois atos e as atitudes que eles expressam em relação à vida humana.
Enquanto for um meio eficaz para que partes fracas exerçam pressão contra seus inimigos mais poderosos, não se pode esperar que o terrorismo desapareça. Devemos esperar, no entanto, que seu reconhecimento como forma de especial desprezo pela humanidade se dissemine, em vez de se perder devido a seus recentes sucessos.


Thomas Nagel é um dos principais filósofos políticos norte-americanos da atualidade. Professor de direito na Universidade de Nova York, é autor de "A Última Palavra" (Unesp) e "Uma Breve Introdução à Filosofia" (Martins Fontes), entre outros. Copyright: Project Syndicate, 2002.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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