São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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O mundo em negativo

Associated Press - 6.ago.1996
Paciente com malária cobre o rosto em hospital de Cabul, capital do Afeganistão



FILÓSOFO LAMENTA A AUSÊNCIA DE UMA REFLEXÃO À ALTURA DO CAPITALISMO, PARA ELE O GRANDE FENÔMENO DA HISTÓRIA, E AFIRMA QUE O MONOTEÍSMO PREFIGUROU A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


Alcino Leite Neto
de Paris

Globalização" é o nome que se dá comumente às transformações vertiginosas por que está passando o mundo. É um conceito sobretudo econômico-político, carregado de positividade ou negatividade, dependendo da inclinação política de quem o emprega.
Com frequência, está associado à potência atual do capitalismo, seja para produzir um novo mundo técnico ou para reproduzir ainda mais suas formas de injustiça social. Quando falam em "globalização", uns pensam a favor do capitalismo, outros, contra, mas poucos refletem à altura dele.
"Nós temos necessidade de um pensamento que esteja à altura do capitalismo, que é verdadeiramente "o" fenômeno da história", diz o filósofo francês Jean-Luc Nancy, na entrevista a seguir.
Nancy, 62, é autor de "La Création du Monde ou la Mondialisation" (A Criação do Mundo ou a Mundialização, ed. Galilée, 23,80 euros), lançado neste ano na França. Trata-se de uma das mais fecundas e fascinantes análises sobre nosso tempo e o nosso destino. Nancy emprega o conceito "mundialização", mais usado pelos franceses, mas no sentido forte. Para ele, a história chegou a um impasse, pois o mundo esgotou sua capacidade de criar um mundo, de "fazer mundo", e "parece ter ganho apenas a capacidade de multiplicar na potência de seus meios uma proliferação do imundo".
O "imundo" não é apenas o detrito do mundo, mas o negativo do mundo, a sua destruição. "Tudo se passa como se o mundo estivesse atravessado por uma pulsão de morte que não teria em breve nada mais para destruir que o próprio mundo. (...) Que o mundo se destrua não é uma hipótese: é em certo sentido a constatação da qual se alimenta hoje todo pensamento do mundo. Até o ponto em que não sabemos mais exatamente o que "destruir", quer dizer, nem que "mundo" é esse que se destrói", escreve ele no livro.
A análise de Nancy, filósofo de formação heideggeriana, é complexa. Para um leigo, é dificílimo sintetizá-la. O que é um mundo? "É uma totalidade de sentido." Mas hoje já não se consegue "criar mundo" porque um processo histórico que remonta à criação dos monoteísmos e se firma com a forma capitalista de reprodução incessante da riqueza e de expansão da técnica foi "esvaziando" o mundo de presença e de sentido e lançando o sentido do mundo no infinito da acumulação. Até o ponto em que já nada nos sobrou, nem Deus nem natureza nem o próprio mundo.


"ACHO QUE HÁ UMA GRANDE TENTAÇÃO NO OCIDENTE DE ENCONTRAR NOVAS IDÉIAS EM CERTAS RELIGIOSIDADES ORIENTAIS; MAS TENHO A IMPRESSÃO DE QUE NA HISTÓRIA JAMAIS VOLTAMOS PARA TRÁS"


Para Nancy, a única maneira de escapar do "imundo" é criando um novo mundo a partir do nada que nos resta, ou seja, dessa potência infinita que o capitalismo não cessa de nos apresentar. A sua proposta, que se propõe como "materialismo radical", é criar "um mundo que se tornaria rico dele mesmo, sem mais nenhuma razão, nem sagrada nem cumulativa".
"Criar o mundo quer dizer: imediatamente reavivar cada luta possível por um mundo, isto é, por aquilo que deve formar o contrário de uma globalidade de injustiça sobre fundo de equivalência geral. Mas conduzir essa luta precisamente em nome do fato de que esse mundo sairá do nada, que ele seja sem dados prévios e sem modelo, sem princípio e sem fim dados, e que é exatamente isso que forma a justiça e o sentido de um mundo."
Professor na Universidade de Estrasburgo, Nancy é hoje um dos nomes centrais da filosofia francesa, ao lado de Jacques Derrida, de quem é amigo. Publicou dezenas de livros, como "Le Sens du Monde" (Galilée, 1993) e "La Communauté Affrontée" (Galilée, 2001). Pensador bastante solicitado pela imprensa, por escolas e instituições, tratou de pintura, música, cinema e psicanálise. No Brasil, tem apenas duas obras editadas, "O Título da Letra" (Escuta) e "O Mito Nazista" (Iluminuras), ambas em co-autoria com Philippe Lacoue-Labarthe. Neste mês, lançou "À l'Écoute" (À Escuta, Galilée).
Em Paris, está em cartaz uma peça de teatro, "L'Intrus" (O Intruso), baseada em um livro homônimo de Nancy, no qual ele reflete sobre um transplante de coração a que se submeteu. Foram os cuidados com a saúde que o impediram, a contragosto, mais de uma vez, de visitar o Brasil, para onde foi convidado várias vezes.

A mundialização é também uma crise do Ocidente como civilização que possa "orientar a marcha do mundo", nas suas palavras. Mas aquilo que não é propriamente ocidental não poderia renovar o mundo?
Acho que há uma grande tentação no Ocidente de encontrar novas fontes, novas idéias, por exemplo em certas religiosidades orientais, como o zen. Mas eu tenho a impressão de que na história jamais voltamos para trás. Não é procurando novas idéias em formas de pensamento antigas, datadas na história, que se vai renovar o Ocidente. Enquanto isso, uma transformação está sem dúvida se produzindo, invisível para nós, no interior do próprio Ocidente e que irá dar em alguma coisa absolutamente imprevisível. Estou profundamente persuadido de que vivemos numa época de mutação comparável ao fim da Antiguidade. É toda uma civilização que chegou ao fim, e nós a vemos hoje como um romano do século 5º enxergava a sua. Ele não tinha nenhuma idéia do que iria se passar e simplesmente constatava que a civilização romana, ou greco-romana, estava desmoronando. Não via que estava começando uma outra cultura, que seria a da Europa cristã.
Existe coincidência entre a crise do Ocidente e a crise do cristianismo ou, mais ainda, dos monoteísmos?
Sim, porque o Ocidente -no sentido próprio- é verdadeiramente ligado ao monoteísmo. A Antiguidade não era ainda de fato o Ocidente. Ela foi, claro, uma condição prévia. Mas o movimento que combinou o judaísmo e o helenismo no cristianismo e mais tarde ainda produziu o islã -tudo isso estruturou o Ocidente. Talvez na América Latina tenha sido diferente, pois conservou-se algo de um certo politeísmo no culto dos santos, mas na Europa o cristianismo é a produção histórica de uma forma de ateísmo. O Deus único é essencialmente retirado do mundo ou é afastado do mundo e passa a ser de tal forma encarnado no homem que, ao cabo, suprime-se toda a referência divina, sagrada. O devir ateísta do monoteísmo é a sua verdade, embora não seja um ateísmo na forma em que o materialismo, o marxismo ou o racionalismo o compreenderam.
O sr. poderia explicar um pouco mais o que entende por devir ateísta do monoteísmo?
Sim. Os deuses do politeísmo eram forças que estavam presentes por todo lado. No monoteísmo ocorre alguma coisa que não é apenas reunir muitos deuses num só: o Deus único significa que Deus não está mais presente no mundo. O Deus judeu nunca está lá, não se pode vê-lo nem nomeá-lo. Com o Deus cristão é a mesma coisa, mas sua invisibilidade, sua ausência, é dada no interior do próprio homem, no Cristo como homem-deus. No Cristo, porém, não se vê senão o homem, pois o invisível é Deus. No islã, o que é surpreendente, há um retorno à invisibilidade, à transcendência absoluta de Deus. Nesse sentido, um Deus que não está mais presente não é mais um deus. O que eu digo não é nenhuma novidade. Schelling [1775-1854, filósofo idealista alemão" já dizia isso em um de seus cursos sobre a filosofia da religião. Quer dizer, o Deus no monoteísmo não é uma presença, mas sim uma ausência. Ele desenha uma abertura na direção de uma ausência. O mundo do monoteísmo é também o mundo ocidental, um mundo onde não há presença fixa assegurada nem limites definidos. O movimento infinito da ciência pertence a esse espaço, ao ilimitado. Não há limite para o saber, para a arte, para a potência do homem, mas também não há limite para a sua infelicidade. O monoteísmo abriu pouco a pouco o espaço de uma civilização que é sem limite, sem pontos de referência.
O que significa a encarnação de Deus em Cristo? A manifestação momentânea da presença de Deus no mundo?
É uma construção muito complicada e estranha, ao mesmo tempo muito popular e intelectual. Justamente por isso é bastante reveladora de algo do Ocidente. Com o cristianismo não há nova presença, não há novo Deus. É o mesmo deus de Abraão, Isaac e Jacó. O que é novo não é o Deus, mas muito mais a regra, o modelo de vida, tudo o que Cristo diz sobre a pobreza, a humildade e também sobre o fato de que a mensagem divina é endereçada a todo mundo. A novidade do cristianismo é que Deus se manifeste como um homem, mas também que ele não se manifeste mais de todo como um Deus. No cristianismo há uma espécie de aprofundamento do monoteísmo, porque já não há muito mais o que ver enquanto Deus, mas, enquanto homem, há, sim, bastante. A despedida de Deus é também a chegada do homem -e do homem universal, porque, como diz são Paulo, já não há mais homem nem mulher, nem judeu nem grego, nem homem livre nem escravo. A comunidade de cristãos do início é o germe e o símbolo de uma comunidade universal. Essa pequena comunidade deve se propagar à totalidade da humanidade, pois o cosmopolitismo está inscrito no cristianismo.
Quando se fala em mundialização, portanto, estamos tratando de um processo iniciado com o cristianismo?
Sim, mas no começo os cristãos não se pensavam em termos de mundo e nem mesmo em termos de história. Eles pensavam que o reino de Deus viria muito rápido e que tudo isso iria terminar. Mas esse é o primeiro cristianismo, que é ainda um messianismo e talvez tenha durado até o ano 1000, ao menos no plano do cristianismo popular. Ao mesmo tempo a história se torna a questão do cristianismo. Eles se perguntam: o que faremos com ela, a história, se Cristo não voltar logo? O próprio Cristo, no começo dos Atos dos Apóstolos, diz que vai partir, que vai se reunir ao seu pai, e os apóstolos perguntam a ele quando voltará para instalar o Reino. Cristo responde que esse não é um assunto para eles, que não lhes compete saber quando será o retorno, ou seja, o tempo e o momento favoráveis. Quer dizer, o retorno de Cristo não se pode fixar, não é um assunto dos homens. A partir desse momento, coloca-se a questão da história de uma maneira que nenhuma religião havia colocado antes, porque as religiões sempre estiveram ligadas a uma temporalidade cíclica. O cristianismo coloca a questão da história como duração aberta, indefinida e na realidade sem fim. Claro que, como o fim dos tempos está no infinito, então ele também ocorre a cada momento. Ele se manifesta não apenas na morte de cada homem, mas a cada instante. É isso que eu creio ter sido uma invenção do cristianismo. Evidentemente, tudo se cristalizou muito lentamente. Apenas nos séculos 14 e 15, com a Renascença, isso irá produzir efeitos sociais, gerando uma civilização verdadeiramente histórica, que dará em seguida na lógica do progresso. Agora, o nosso problema é que chegamos ao fim do progresso. Não acreditamos mais nele de fato, embora continuemos sempre dentro da história.
O que o sr. quer dizer quando se refere ao mundo como "uma proliferação do imundo"?
Um mundo quer dizer um cosmo. Cosmo em grego significa uma bela ordenação. E sabemos que o mundo, para a Antiguidade, era essa ordenação bem-feita. No judaísmo, por sua vez, não há propriamente o mundo, mas apenas o homem, e o coração do homem é que é ruim, por ser rebelde ao seu Deus. O cristianismo pega as duas coisas -o mundo, sim, mas coloca o mal no mundo, ele pode ser malfeito. Essa é a grande questão do mal que explodiu depois da Renascença. A idéia das Luzes e do racionalismo do século 19 era que o homem poderia, com o seu saber e a sua potência próprios, corrigir o mal humano e mesmo o mal da natureza. Mas foi o contrário que se produziu. O século 20 mostrou que o homem era capaz de um mal muito maior do que tudo o que tínhamos conhecido, de uma vontade de destruição capaz de atingir a própria natureza. Num certo sentido, deixamos então de ter até mesmo catástrofes naturais. Mesmo quando há um terremoto, que é a coisa menos sujeita à ação do homem, imediatamente buscamos a responsabilidade dos homens -daqueles que fizeram as construções anti-sísmicas ou daqueles que não puderam prever o desastre, com seus instrumentos de análise. É nesse sentindo que há o imundo: isso não é mais o mundo, nada é mais natural, não há senão a técnica. A técnica não é forçosamente ruim, mas ela não produz um mundo novo. E nossa questão é que não haja um mundo novo. Havia um novo mundo para o mundo antigo, que foi a América, mas agora estamos todos num velho mundo -e esse mundo já não é mais exatamente um mundo.
Os Estados Unidos são o acabamento da civilização ocidental ou uma cultura que, por sua potência técnica, aponta ainda para um novo mundo?
Eles são a ponta mais avançada do Ocidente, ao mesmo tempo em que são o seu questionamento. Os protestantes são a forma mais atéia e mais subjetiva do monoteísmo. Nos Estados Unidos, colocou-se numa natureza praticamente virgem o sujeito ocidental em sua relação exclusiva consigo mesmo. Deus lá é de uma abstração inacreditável e ao mesmo tempo funciona como uma espécie de caução inteiramente moral da subjetividade, sem corpo e sem consistência de Deus. Assim, os EUA se tornaram o país da técnica triunfante, absoluta, ao mesmo tempo em que são o país da democracia, no sentido da liberdade, mais do que no sentido da comunidade. Eu digo tudo isso não com um espírito antiamericano, que é um sentimento um pouco idiota. Não é culpa dos americanos se a coisa se passa assim, mas do próprio Ocidente, que projetou lá a sua imagem -a mais avançada e também a mais problemática. É essa projeção que faz dos EUA um país extremamente curioso, sempre em relação com a sua própria imagem. O cinema americano não pára de colocar em cena a América, mesmo de maneira irônica, crítica. Os EUA são capazes de ter uma grande ironia em relação a si próprios, até o infinito, sem mudar nada, pois se trata de uma vertigem da própria imagem. Trata-se, além disso, do único país que parece ter dado uma essência aos novos mitos do mundo moderno. Se há essa mitologia, não é porém no sentido de algo criador, como as mitologias da Antiguidade.
Por que não?
Não sei a razão. É como se o Ocidente tivesse feito lá a prova de que não pode de fato produzir uma nova mitologia. O que é uma mitologia? É o que enuncia, o que fala de uma ordenação do mundo. A demanda de uma nova mitologia se realizou nos EUA, mas sob a forma de mitos que refletiam a própria América, o homem americano, o sonho americano, a democracia americana. Não se tratava de deuses. Uma mitologia não pode ser uma mitologia de si própria. É preciso que seja do outro, ou então vira uma mitomania ou uma megalomania.
Por que o sr. escreve que nossa tarefa hoje é criar "uma forma ou uma simbolização do mundo" e que essa tarefa é também uma luta do Ocidente contra si mesmo e do capital contra si mesmo?
O fim do comunismo foi a revelação de que jamais houve no mundo moderno outra economia que não a capitalista, porque a economia soviética foi um capitalismo de Estado. Eu digo isso não para afirmar que o capitalismo é bom, mas para expressar que nós jamais pensamos suficientemente à altura do próprio capitalismo como fenômeno histórico mundial. O curioso é que Marx pensava com essa altura. Ele dizia que o capitalismo é uma força mundial positiva e que uma revolução deveria vir quando o capitalismo estivesse completamente realizado. Nós temos necessidade de um pensamento que esteja à altura do capitalismo, que é verdadeiramente "o" fenômeno da história. O que quer dizer pensar à altura do capitalismo? Quer dizer pensar à altura de um processo que colocou no topo de tudo a criação infinita de valores -o valor se acrescendo sempre ao valor, o valor produzindo valor. É isso o capital. Uma vez acumulado, ele produz novo capital, que é reinvestido, reproduzindo a riqueza ao infinito. O interessante no capitalismo é que nele a consciência desse infinito da produção de valor é cada vez mais vivo. Mas o infinito não pode criar um valor. Dizemos: é muito bom produzir ainda mais riquezas. Mas por que é bom? Aí, o absurdo explode. Eu creio que aqui a civilização está cada vez mais próxima de tocar esse vazio -do próprio valor, do homem, do mundo etc.- e fazer esse vazio voltar-se sobre si mesmo e então produzir daí alguma coisa.
Criar um mundo?
Sim, mas sem fixar valores. Seria um mundo que poderia compreender que a ausência de valores é em si mesma um valor. Trata-se de se referir ao vazio, ao nada, como quiser, remetendo à morte, mas de maneira positiva. Não se lançando à morte, pelo gosto da destruição, mas enfrentando o insuportável da morte, o que nossa civilização já não consegue fazer mais. Se alguém vive no terror perpétuo de sua morte, essa pessoa se torna louca, doente. Mas, se alguém vive no esquecimento total da morte, não quer pensar de modo nenhum nela, essa pessoa se torna um idiota. Poderíamos chamar essa criação de um mundo de criação "ex nihilo", pois não há mais mundo nem deus e, de uma certa maneira, não há nem mesmo o homem. Há uma espécie de vazio. Será que em vez de preencher esse vazio com velhas coisas, velhos deuses e velhos valores, não poderíamos agarrar o vazio e refazer algo a partir daí mesmo? Eu creio que é isso que deverá ser feito, do contrário será a catástrofe universal.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, na livraria Fnac (tel. 0/xx/11/3097-0022) e, no RJ, na livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 2294-5994).



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