São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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Ponto de fuga

Além dos olhos

Jorge Coli
especial para a Folha

A Pinacoteca do Estado (SP) consagra uma retrospectiva a Arcangelo Ianelli. Ela permite seguir as modificações de sua trajetória com clareza. O próprio percurso do pintor facilitou as coisas, pois é límpido a ponto de tornar quase redundantes as explicações da crítica. Demonstrar e compreender, no entanto, ficam aquém de uma experiência mais importante que ocorre ali: a experiência da beleza.
Parece meio deslocado falar de beleza no mundo das artes contemporâneas, preocupadas antes com estranhamentos, sensações esdrúxulas ou novidades. Reflexões teóricas, analíticas, hoje também não se servem muito dessa noção. Mas a beleza está no cerne das obras de Ianelli. Ela propõe uma ascese: qualquer sensualidade, qualquer sedução tátil à qual o artista possa ter cedido, tende à transcendência e à elevação.
No pátio da Pinacoteca estão dispostas, em círculo, algumas de suas esculturas. Demonstram parentesco com as telas: são superfícies que se tornaram autônomas no espaço e adquiriram espessura material. Apresentam frestas, fendas, incorporando a atmosfera. A maravilhosa qualidade do mármore branco deixa a luz penetrar na matéria e se irradiar: o sólido assim se transfigura em direção ao imaterial. Pela contemplação, sem imagens, signos ou símbolos, o espectador se eleva acima de si mesmo. Não é preciso sentimentos religiosos para perceber que ocorre ali algo de espiritual, espiritual num sentido amplo, difuso, impreciso sem dúvida, mas reconhecível e intenso.

Tintas - A última sala da exposição Ianelli reúne suas pinturas mais recentes, grandes superfícies de cores unidas, sem bordas, que se transfundem em outros tons ou em outras densidades de luz. Paira no ar um fundo musical de canto gregoriano, mas ele não é necessário: as telas dão conta da meditação que vibra na atmosfera. O clima está próximo da capela de Rothko, em Houston, Texas. Na evolução interna à sua arte, o último Ianelli tomou, de fato, caminhos convergentes aos do último Rothko, que se suicidou em 1970. Ele o faz com autoridade, e não se pode falar em imitação diante de resultados tão poderosos.
É importante, ao contrário, assinalar distinções. Nesses mundos elípticos, condensados, essenciais, feitos de sensações sem palavras, qualquer diferença não é pequena. A escolha predominante de fusões verticais, de intensidade ou de cor, entre as amplas superfícies, provoca menos a estabilidade sugerida pelas telas de Rothko, que um efeito de aspiração por frestas, em direção a um outro mundo. Ianelli também chegou a tons "fin-de-siècle", a azuis violáceos preciosos, mas sustentados e fortes. Como em certas gemas, eles são luminosos mesmo quando escuros. Isso lembra antigas tradições espirituais nas artes, que alcançavam os céus pela riqueza das matérias e pelo requinte das cores.

Atmosfera - "Baía Cabrália" é uma paisagem de Antonio Parreiras, não muito grande (120 x 84 cm) e disposta ao comprido. Pertence ao acervo permanente da Pinacoteca do Estado (SP) e foi restaurada há pouco tempo. O verniz envelhecido, oxidado, pesava sobre a imagem, com uma coloração enferrujada. Foi retirado, e agora é possível ver quantas nuanças ele ocultava: são reflexos que brilham com delicadeza, são florinhas que emergem da vegetação. O ar tornou-se cristalino. Os ritmos das dunas parecem se refletir nas nuvens do céu.

Teclas - A denominação não é lá muito feliz: "Poesilúdios". Mas isso não importa nada. São 16 esplêndidas peças breves para piano compostas por Almeida Prado entre 1983 e 1985. Algumas possuem subtítulos sugestivos como "Noites de São Paulo", "Noites de Tóquio", "Noites de Solesmes", "Noites de Iansã". A mais longa (4 min 29 s) chama-se "As Noites do Centro da Terra". Líricas, misteriosas, evocativas, admiravelmente escritas, deveriam estar no repertório de todo pianista brasileiro. Foram gravados em CD por Adriana Lopes e aguardam edição comercial.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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