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+ brasil 500 d.C.
Ao recebermos qualquer coisa do outro, contraímos uma dívida e uma culpa,
das quais nos redimimos ao doar
A capacidade de doar
Jurandir Freire Costa
Um dos mais tenazes preconceitos criados pelo
utilitarismo vulgar é a idéia de "interesse como posse ou aquisição". Aprendemos que tudo o que pensamos, sentimos e fazemos é motivado pelo interesse em possuir alguma coisa. Assim,
todo apetite, desejo ou aspiração teria como causa o interesse, manifesto ou oculto, de "possuir" o objeto visado. Essa idéia se converteu em uma espécie de jargão
cultural inconsciente. A vida, diz-se, é um cálculo, consciente ou inconsciente, que visa a regular a economia da
posse. Amamos, dominamos o outro, buscamos o prazer, o poder, a felicidade e a virtude por interesse em
possuir. E se, por acaso, atiramos no próprio pé, ainda
assim descobriremos, cedo ou tarde, um estranho e ignoto interesse em possuir, sob a aparência do gesto insensato. Nada escapa ao fôlego felino da
intenção possessiva.
O que mantém tanto tempo em cartaz
esse interesse? Dois motivos me parecem
importantes. O primeiro se relaciona ao
intelectualismo, ao universalismo e ao
racionalismo em filosofia. O utilitarismo vulgar, em
oposição a esses ideais filosóficos, afirma que interesses
concretos e não especulações desencarnadas são os móveis da ação. A ação é desse mundo, ou melhor, de algum lugar no mundo onde dominam os interesses paroquiais, irredutíveis a normas válidas e extensíveis a
todos.
O segundo motivo se deve ao prestígio dos ataques intelectuais à tradição moral cristã e às versões truncadas
da concepção rousseauniana da natureza humana. Bem
ao gosto de algumas correntes do romantismo filosófico-literário, o utilitarismo vulgar reage ao "intelectualismo frio", afirmando o direito dos corpos, paixões e
pulsões de ocuparem a cidade. Cansados da ética protestante e afinados com o espírito do capitalismo, dizemos que não somos seres etéreos, hibernando em céus
de idéias puras. O que nos excita e leva à ação nada tem
de bom-mocismo ou de histórias edificantes. Nossa
matéria-prima são os pecados capitais, portanto, lá onde o interesse está, a verdade do "desejamos" deve advir. Diz-me em que te interessas e te direi quem és!
A idéia de interesse, nesse patamar metafísico, embora insinuante, é trivial. O que tudo explica, nada explica.
Qualquer conceito que pretende esgotar a inteligibilidade do que analisa, a partir de um único ponto de vista,
incorre no mesmo engano. Mas, usada no sentido pragmático corrente, a noção pode ter utilidade, desde que
possamos ver suas vantagens e desvantagens. Uma das
grandes vantagens da idéia de "interesse" é, sem dúvida, nos liberar da tarefa de sermos anjos em corpos de
mamíferos falantes. O intelectualismo racionalista e
universalista acabou por fabricar ideais de vida em
franca contradição com os reais modos de viver. A ação,
sem dúvida, obedece às "razões da Razão", mas também às "razões do coração", como disse Pascal. Desconhecer, isso é, produzir tensões, conflitos e sofrimentos
desnecessários. A grande desvantagem do "interesse",
na vulgata utilitarista, é a sedução da imagem de "interesse como sinônimo de posse". Acreditar que só agimos porque queremos reter ou acumular é dar provas
da mais flagrante miopia em relação ao que somos ou
fazemos.
Redenção pela doação
Ninguém melhor que Winnicott, um dos três ou quatro grandes nomes da história
da psicanálise, mostrou o equívoco dessa opinião. Winnicott, ao descrever os interesses do indivíduo do "self",
em linguagem técnica, dá ênfase especial a um deles, a
capacidade de se preocupar com o outro, expressa no
"interesse de doação". Para o autor, a dádiva, o dom, a
doação, não são ornamentos dispensáveis da vida subjetiva. A doação é uma obrigação, um ímpeto em demasia, um excesso da vida criativa que não pode ser entesourado, sob pena de grave desequilíbrio psíquico.
A doação é a contrapartida psíquica da aquisição. Ao
recebermos qualquer coisa do outro, contraímos uma
dívida e uma culpa, das quais nos redimimos ao doar. A
doação não é, de forma necessária, "bondosa". Podemos doar por generosidade -em gratidão, amor ou reconhecimento ao que nos foi dado- como podemos
doar por egoísmo -em casos de ostentação perdulária,
na disputa por sucesso e poder sociais. Mas, se não pudermos doar, de alguma maneira, nos arriscamos, simplesmente, a perder o "interesse" por nossa vida e pela
vida do outro.
O impedimento de doar produz, assim, defesas emocionais que se tornam compulsivas porque visam a
anular o sentimento de "superfluidade" e "futilidade"
dos que se percebem como incapazes ou impossibilitados de doar. Esse conflito assume várias configurações
psicológicas. Por exemplo, o sujeito, diante de ideais
despóticos de perfeição, pode experimentar uma drástica desmoralização na auto-estima, já
que a desmedida da exigência torna insignificante tudo o que ele tem para oferecer. Em outros casos, o autocentramento, o desdém e a prepotência daquele a quem o dom se destina, rebaixa o valor de toda dádiva oferecida. Enfim, se a
tentativa de doar se revela infrutífera, o
sujeito pode ser levado a se apropriar de
qualquer coisa do outro, bens ou vida,
para ter a experiência de poder dar ou
negar a alguém alguma coisa de valor.
A teoria winnicottiana da "oferenda"
nos ajuda a entender, um pouco mais, o
sentido de alguns fenômenos dramáticos da vida urbana moderna. O bloqueio
do circuito da doação fixa o sujeito na
posição da "posse", levando-o a agir de
forma, muitas vezes, predatória e autodestrutiva, com o intuito de recuperar o
próprio sentido de viver. A destruição
cega de bens materiais ou culturais; a brutalidade de assassinatos, à primeira vista, gratuitos; o moderno sentimento de solidão e abandono individuais; a epidemia
de depressões ou de maus-tratos corporais auto-infligidos; a busca de autovalorização por meio do prazer independente do outro, como nas drogadições etc. são alguns dos sinais da atrofia cultural do "interesse de doação".
Não nos tornamos "delinquentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela domesticação do
corpo e por sensações corporais extáticas apenas porque queremos devorar tudo e todos, segundo a lei do
consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes, abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos,
apáticos ou "resignados" porque nos fazem ver, sentir e
pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admiração", "cuidado" ou amor do
outro. A volatilidade dos valores baseados em preferências idiossincráticas; a obsolescência precoce dos emblemas de distinção socioeconômica; o aumento acelerado do número de pessoas consideradas "marginais",
"improdutivas" e "descartáveis"; e, finalmente, a exclusão da maioria, até do pífio e asfixiante universo do consumismo, tornam o que possuímos sem valor, e o que
doamos, irrelevante.
Antes de nos tornarmos definitivamente mutilados
em nossa vida mental, talvez seja interessante ouvir o
que pessoas como Winnicott têm a dizer. Quem sabe,
conhecer melhor um grande, discreto e simpático pensador seja um passo a mais no processo de revalorização de nossas vidas e de nossa capacidade de doar.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e
"Sem Fraude nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
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