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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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+ política

Liberalismo no front

Diante dos verdadeiros inimigos as sociedades liberais devem aplicar o regime da lei, mesmo que as consequências pareçam duras e "iliberais'

Marcin Król
especial para a Folha

Na Polônia, um país supostamente católico, há um programa de rádio e um jornal diário de propriedade da "Rádio Maria", ambos vozes públicas de um padre carismático, xenófobo e fundamentalista que odeia nossa sociedade liberal. Seus valores, idéias e objetivos -tudo o que ele defende- constituem um ataque a tudo o que o liberalismo representa. Ele destruiria nossa democracia sem hesitar.
O que nós, poloneses, deveríamos fazer com esse inimigo interno? O que, na verdade, os liberais de qualquer lugar podem fazer para enfrentar seus inimigos, internos e externos? Os liberais, sendo pessoas de boa vontade, acham difícil imaginar inimigos implacáveis. Tolerantes, os liberais supõem que exista tolerância nos outros. Mas os atos de Osama bin Laden nos lembram que alguns inimigos não podem ser apaziguados. Então como podemos distinguir os inimigos implacáveis dos adversários comuns -e como devemos lidar com eles?
Os filósofos de inclinação liberal têm uma utilidade limitada nesse caso. Michael Walzer, por exemplo, fala do que ele chama lealdade "fina e grossa". Liberais acham relativamente fácil concordar sobre o nível de solidariedade "fina". Por exemplo, entendemos as pessoas que lutam por sua liberdade e podemos aceitar o que elas entendem por liberdade. O que é mais difícil encontrar, como sugere Walzer, é a solidariedade no nível "grosso", aquelas ocasiões em que devemos levar em conta valores conflitantes. O melhor, diz Walzer, é esperar apenas o tipo fino de lealdade e solidariedade.
Richard Bellamy propõe que isso seja feito através de compromissos institucionais duradouros. Estes, segundo ele, podem ser alcançados em campos onde reina o pluralismo, como a educação multicultural. Mas Bellamy leva o liberalismo longe demais, dizendo que uma "paz" semelhante pode ser obtida por meio de debates sobre temas tão amargamente divisores quanto o aborto.
Impossível. Aqui, aqueles que discordam se colocam do outro lado de um abismo de valores. Um modus vivendi é tudo o que pode ser alcançado realisticamente, sugere John Gray em "The Two Faces of Liberalism" (ed. New Press).
Esses dois autores reconhecem implicitamente que a fraqueza do liberalismo é revelada nos momentos em que até a lealdade "fina" é impossível, quando não há possibilidade de compromisso institucional e quando um modus vivendi não pode ser sustentado. Mas o que então devemos fazer ao enfrentar inimigos tão implacáveis aos quais nada detêm na tentativa de impor seus valores?
Se os filósofos liberais são uma ajuda limitada para nos orientar no trato com nossos inimigos, talvez um dos pensadores mais iliberais do século 20 possa ajudar. Carl Schmitt acreditava que conhecer seu inimigo era o ingrediente essencial da política. De fato, Schmitt acreditava que um mundo sem inimigos seria um mundo sem política.
Em seu famoso livro "O Conceito do Político" (ed. Vozes), Schmitt afirmou que a República de Weimar na Alemanha apodreceu porque seus líderes se recusaram a enfrentar seus inimigos declarados. Ao deixar de defender a Constituição contra inimigos internos, os liberais de Weimar mostraram que temiam tomar uma decisão mais do que temiam enfrentar seus inimigos. Mas as decisões soberanas -decisões de vida e morte para uma sociedade- são inevitáveis até nas sociedades baseadas em princípios liberais. Ou você enfrenta e derrota seus inimigos ou você morre.
O liberalismo já enfrentou inimigos antes, é claro -Schmitt entre eles, pois, como "Jurista da Coroa" de Hitler, foi um dos que se colocaram como inimigos irreconciliáveis do liberalismo de Weimar. É claro que os inimigos menores não devem ser considerados mortais. Os inimigos do liberalismo são suficientemente reais. Não há necessidade de imaginá-los.
Então como identificar nossos inimigos? A maneira é simples: devemos acreditar em suas palavras. Escutar quem está declarando que nós somos seus inimigos. Que grupo, que sociedade, país ou religião fala sobre nós abertamente como seu inimigo. Os que o fazem são nossos inimigos.
Uma vez identificados, não devemos tratar os inimigos declarados como crianças e tentar explicar-lhes que eles realmente não querem dizer aquilo, que nós os amamos e que eles não devem usar palavras tão feias. Se as pessoas dizem que são nossas inimigas, devemos tratá-las apropriadamente. É claro que é nobre hesitar antes de declarar alguém seu inimigo, mas quando alguém fala e age como inimigo as dúvidas devem desaparecer. É hora de se mobilizar.
A democracia liberal, afinal, está bem preparada para combater seus inimigos internos por meio do regime da lei. As leis contra a incitação à violência devem ser aplicadas, as conspirações perseguidas, os traidores expostos. De fato, como demonstra a experiência do século 20, diante dos verdadeiros inimigos as sociedades liberais devem aplicar o regime da lei mesmo que as consequências pareçam duras e "iliberais".
O que vale para os inimigos internos também deve valer para os externos. Os Estados liberais não devem tentar impor seu próprio modo de vida a todo o mundo, devendo respeitar ou pelo menos tolerar o fato de que outros povos vivam de acordo com normas das quais discordam. Mas os Estados liberais não devem hesitar em usar a lei internacional para lidar com os países vilões e aqueles que ameaçam uma ordem global baseada na tolerância mútua.
Se acreditamos nos valores liberais, devemos estar preparados para defendê-los -nas palavras de Malcolm X, "através de quaisquer meios necessários". As ferramentas escolhidas podem às vezes ferir nosso temperamento liberal. Que seja. O liberalismo em guerra? Talvez seja a única opção, para que o próprio liberalismo sobreviva.


Marcin Król é catedrático de história na Universidade de Varsóvia, detentor da cadeira Erasmus, e editor de "Res Publica", principal revista cultural da Polônia. Copyright: Project Syndicate, 2003.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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