São Paulo, domingo, 9 de março de 1997.

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Qual o principal pecado da imprensa hoje?

GUSTAVO H.B. FRANCO
especial para a Folha

Sempre me impressionou, na imprensa brasileira, o modo como, ao longo dos últimos anos, o noticiário econômico-financeiro invadiu o noticiário geral, o domínio da alta política, das celebridades e dos crimes hediondos. Nada havia de se estranhar, contudo, que temas complexos e especializados chegassem às manchetes: estávamos vivendo uma hiperinflação, uma doença rara que acometeu pouco mais de uma dúzia de países em toda a história da humanidade. Inflações desta estirpe, sem dúvida, fornecem farto material para manchetes garrafais todos os dias, especialmente quando se tem em conta a gravidade e extensão de suas consequências.
Essa invasão teve algumas interessantes consequências. Através do que parecia um inofensivo ajuste de linguagem, os fenômenos financeiros ganharam algumas definições peculiares: tudo o que tem sinal negativo veio a ganhar a designação de ``rombo'' ou ``buraco''. Nada era capaz de simplesmente subir: as coisas ``disparavam'' ou tínhamos ``estouros'' ou ``explosões''. A abundância sempre se tornava ``enxurrada'' ou ``farra'', enquanto que a escassez sempre era descrita como ``corrida''. E quando as coisas caíam, elas ``despencavam'', ou eram objeto de ``arrocho''. Mais delicado, mas comum, era qualificar quaisquer coisas complexas como ``negociatas'', ou problemas estatísticos como ``maquiagem''. Os exemplos são inúmeros.
Tendo em vista a ampla utilização desse dicionário, a pergunta que se faz é se o uso do léxico não estaria afetando o entendimento dos fenômenos. Ou se disso não resultou uma embocadura reducionista para os temas da economia, por meio da qual ficou mais difícil descrever qualquer coisa que não coubesse perfeitamente nessa linguagem superlativa.
A título de exemplo, é bem conhecido o episódio no qual a televisão descreveu como ``desvalorização'' uma alteração nas bandas cambiais, provavelmente em função da dificuldade em se explicar do que se tratava de uma forma que parecesse inteligível naquele veículo, tendo em vista suas limitações no tocante a tempo e... linguagem. Pouco antes, a Folha deu em manchete que o governo pensava em um ``congelamento'' do câmbio, em função de um elaborado texto de análise do jornalista Celso Pinto. Em ambos os casos, fica a dúvida sobre as reais possibilidades de se enquadrar o que se passa nesse domínio a partir de um universo cognitivo que não comporta nuances e possibilidades intermediárias entre os extremos do ``congelamento'' e da ``desvalorização''. Existem, é claro, muitos outros exemplos. O ponto importante é que a linguagem reducionista pode limitar as possibilidades do jornalismo econômico.
O problema não é com o jornalismo econômico em si, cuja qualidade não está em discussão, mas o de fazê-lo retornar às páginas especializadas em que o idioma oferece mais recursos e os assuntos comportam uma abordagem mais analítica. Aparelhar-se para evitar o sensacionalismo econômico, que naturalmente vicejou nos anos da hiperinflação, parece ser um dos grandes desafios da imprensa econômica para os próximos anos.


Gustavo H. B. Franco é doutor em economia pela Universidade de Harvard (EUA), diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central e foi secretário-adjunto de Política Econômica do mInistério da Fazenda (governo Itamar Franco).

MILTON DOS SANTOS
especial para a Folha

Frente à tirania do mercado, a imprensa tornou-se uma indústria frágil, impedida, exceto de forma residual e intermitente, de corresponder cabalmente ao seu papel histórico de ajudar a formar uma opinião pública independente.
Em sua dimensão global, o mercado controla uma produção oligopolística de notícias por meio das agências internacionais e nos apresenta o mundo atual como uma fábula. Em suas dimensões nacional e local, o mercado, agindo como mídia, segmenta a sociedade civil, influi sobre o fluxo e a hierarquia do noticiário e aconselha a espetacularização televisiva de certos temas, confundindo os espíritos em nome de uma estratégia de vendas adotada pelos jornais como forma de sobrevivência. O remédio, aqui, é um veneno, num círculo vicioso que acaba por ser o seu principal pecado. Estará a imprensa pecando em nome próprio ou em nome e em favor do mercado? O resultado é o mesmo.
O grave problema é geral e profundo. Como a questão é estrutural -um dado de nosso tempo: certos países europeus, em favor da preservação da opinião pública, adotaram medidas compensatórias para reduzir a vulnerabilidade de imprensa independente, frente ao império da publicidade. Mas esse tema -como outros ligados à cidadania- tem sido pobremente abordado no Brasil

Milton dos Santos é professor titular de geografia na USP.

MARTA SUPLICY
especial para a Folha

O maior pecado da imprensa é o ``oficialismo''. O poder que emana de Brasília pauta os jornais. E não é poder de deputados ou da Câmara. É a ``agenda'' do que o governo quer pautar. Já participei de dezenas de audiências públicas nas quais foram discutidos assuntos super-relevantes, de grande interesse público, com jornalistas presentes, e nada, no dia seguinte, nos jornais. Por quê?
Temas ligados a interesse de grupos sociais que não representam o ``poder'' não têm a devida atenção. Será que os leitores percebem esta inversão de prioridades?
Há pouco jornalismo investigativo, e o que o governo fala logo é publicado sem maiores aprofundamentos, como verdade absoluta. Os desmentidos saem alguns dias depois, sem grandes críticas frente à leviandade do pronunciamento, às vezes, do próprio presidente. O governo só pauta o que lhe interessa. Exemplo ocorre na educação, para a qual existe um programa de erradicação do analfabetismo que tem verba específica para tal fim, e o governo gastou apenas 4,61% do orçamento para o exercício de 1996. Isto é, somente neste programa, o governo deixou de investir 95,39% de verba já disponível. Mas só publicam as ``maravilhas'' que o ministro da Educação está realizando.
Resumindo, oficialismo e parcialidade da imprensa estão intimamente articulados, e isso faz com que os meios de comunicação não estejam democratizados e não garantam a pluralidade de opiniões presentes na sociedade. Este padrão de notícia que é determinado pelo poder de Brasília acaba excluindo outros fatos políticos que acontecem nos Estados, a não ser em caso de enchentes, chacinas ou violência.
Outra coisa que noto e de que reclamam os leitores da Folha é que o Painel do Leitor é ocupado seguidamente por políticos. É válida a queixa, mas o representante do povo também tem direito a ocupar este espaço na medida em que muitos não conseguem publicar suas idéias nos grandes jornais ou serem entrevistados sobre assuntos que crêem relevantes.
Outro pecado é a frequência com que as manchetes são diferentes do conteúdo da matéria. Exemplo disso foi ``Mulher caminha para dominar EUA''. Há um certo progresso no número de mulheres em postos importantes e nas altas cortes jurídicas, mas daí a chegar perto do poder, estão anos-luz! Falta análise e maior conhecimento sobre o que se escreve.
As opiniões mais ousadas e críticas são de articulistas, aliás, ótimos. Tenho que dizer que, pessoalmente, não tenho do que reclamar. Os assuntos de mulher que não conseguia colocar na imprensa, como a campanha Mulheres sem Medo do Poder, conseguiu um bom espaço. Mas, sem conseguir resistir, a imprensa ainda é muito machista em relação à oportunidade e à superficialidade com que tem tratado os temas da mulher.

Marta Suplicy, 50, é psicanalista e deputada federal pelo PT-SP, membro da Comissão de Seguridade Social e Família e da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

ROBERTO MANGABEIRA UNGER
especial para a Folha

A tarefa principal do jornalismo numa democracia é ampliar o entendimento coletivo do possível, permitindo, por isso, um entendimento profundo e mais preciso da realidade das coisas. A nossa imprensa e a imprensa geral do mundo, mas sobretudo a nossa imprensa, estão rendidas completamente à ordem estabelecida das coisas, colaboram para desmoralizar qualquer visão de ampliação possível e para reafirmar os limites do existente.

Roberto Mangabeira Unger é filósofo social e professor de direito da Universidade de Harvard (EUA).

D. LUCAS MOREIRA NEVES
especial para a Folha

A Igreja Católica, em vários documentos relativos aos ``mass-media'', forjou uma outra expressão que julga preferível: fala de meios de comunicação social. Ela pensa evitar, desse modo, o perigo de ver tais meios como massificantes.
A mesma Igreja afirma e reafirma a convicção de que são funções da mídia as seguintes: informar, transmitir cultura, divertir, criar comunhão e comunidade, educar ou formar a consciência moral dos usuários.
Nesta linha, o pior pecado que a imprensa pode cometer é o de descumprir seus objetivos ou fazer o contrário deles: desinformar, até propositadamente; proporcionar, em função de interesses subalternos, obscenidade em lugar de lazer; ofender ou adulterar a cultura do povo; criar divisões e rupturas; deformar a consciência moral e religiosa.

D. Lucas Moreira Neves é cardeal-primaz do Brasil e presidente da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil).


HERBERT DE SOUZA
especial para a Folha

É fundamental, antes de falar de pecado, destacar a importância fundamental da imprensa para a democracia. Sem uma imprensa livre e ligada à realidade, a democracia é uma farsa.
Falando de pecado, creio que o principal é o sentido de pressa, de furo, que várias vezes joga a imprensa no perigoso terreno do inventado ou enganoso com consequências concretas sobre as pessoas e as instituições.
Como todos sabem que a imprensa é poder, há uma grande disputa por seus espaços e, nos dias de hoje, isso se dá a alta velocidade, mas existem fatos e afirmações que precisam de tempo, devem ser qualificadas.
Uma característica importante da imprensa é que ela dispara as notícias muitas vezes sem retorno, ou com um retorno muito atenuado, o que a torna a arma mais afiada ainda.
No quadro de concentração de poder existente hoje no Brasil a liberdade de imprensa adquire uma importância vital, que deve ser preservada.

Herbert de Souza, o Betinho, 61, é sociólogo, diretor-geral do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e articulador nacional da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida.

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