São Paulo, domingo, 9 de março de 1997.

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VERDADES E MENTIRAS
A privatização da democracia


Noam Chomsky examina os usos políticos da informação
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Ano passado foi o ano Chomsky no Brasil. A TV Cultura exibiu, em março, as três partes da entrevista-documentário ``Noam Chomsky, o Consenso Fabricado''. Nessa produção canadense, ele alinhavava pacientemente seus principais argumentos contra a mídia ou, melhor, contra o que ele chamaria de sua manipulação, particularmente nos EUA. Em novembro, foi o linguista em pessoa que visitou o Brasil, palestrou em lugares como a USP e o Masp, encontrou-se com representantes do Movimento dos Sem Terra, disse que a dívida externa nacional não deveria ser paga, etc.
A repercussão de ambos os eventos esteve à altura da celebridade internacional do personagem. Segundo o linguista chomskyano Steven Pinker, seu mestre é hoje um dos dez nomes mais citados na área das humanidades em geral, sendo também o único vivo entre esses dez, que incluem Platão, Aristóteles, Marx e Freud. O curioso é que ele começou a granjear essa celebridade numa área do conhecimento que, de tão específica, chega a ser inacessível para a maioria das pessoas: a linguística. Afinal, foi nos anos 50, com menos de 30 anos de idade, que esse norte-americano, hoje professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology), principiou uma revolução que, desafiando o consenso ``behaviorista'' de então, colocaria sua ciência sobre novas bases.
Simplificadamente, a linguística norte-americana da época acreditava que a aquisição da linguagem era um processo educativo-social, ou seja, a linguagem vinha de fora. Chomsky, por seu turno, esforçou-se por demonstrar que o ser humano nascia já pré-equipado com um programa ou módulo básico, idêntico para todos. A questão de Babel, isto é, a multiplicidade das línguas, resumia-se a diferenças superficiais enraizadas numa identidade mais profunda dos idiomas em geral, sem exceção. O sucesso de suas teses deslocou o debate que se travava nas ciências cognitivas, resumível como ``naturo versus nurturo'' (inato versus adquirido), definitivamente (até o momento) para o primeiro pólo.
Foi nos anos 60, porém, com sua ativa participação nos protestos contra o envolvimento de seu país no Vietnã, que seu nome se tornou conhecido do grande público. A partir dessa década, ele ocupa um lugar proeminente tanto na bibliografia de sua especialidade quanto nos debates políticos da atualidade. Se sua contribuição à linguística é inovadora, o mesmo não se pode dizer de suas outras posições polêmicas, algo que ele mesmo subscreveria, definindo-se como um seguidor do Iluminismo.
Para Chomsky, as mazelas socioeconômicas do planeta são responsabilidade de um pequeno número de pessoas, sobretudo norte-americanas, que controlam o governo e as grandes corporações, manipulando um público dócil e influenciável por intermédio da mídia. Pode-se achar que -mesmo com a riqueza de dados de seus vários livros sobre o assunto- esse quadro explica menos do que se esperaria. Ainda assim, Chomsky continua aí para nos lembrar de coisas que, não raro em nome de uma análise mais complexa, são muito fáceis de esquecer.
A presente entrevista se compõe de perguntas apresentadas ao linguista (e por ele respondidas) por escrito depois de sua passagem pelo Brasil.

Soldados e civis chineses experimentam óculos para visualizar imagens em 3ª dimensão durante feira de telecomunicações em Pequim


Folha - O Brasil é conhecido na imprensa estrangeira por ser o país que queima suas florestas e onde a polícia chacina meninos de rua. Infelizmente, essas coisas realmente acontecem, mas, depois de sua visita ao país, o sr. diria que essa é uma visão unilateral e que o quadro não se resume a isso?
Noam Chomsky -
O quadro é uma caricatura, é claro, mas não é preciso fazer uma viagem ao Brasil para descobri-lo.
Folha - O sr. já leu mais extensamente sobre nosso país? Como vê a transição brasileira do regime militar à democracia? Nossa democracia lhe parece real ou meramente formal? Para o visitante estrangeiro, o país transmite uma impressão muito miserável?
Chomsky -
Tenho lido muita coisa sobre o Brasil no decorrer dos anos, especialmente sobre as relações EUA-Brasil, e também tenho escrito sobre esses tópicos.
A democracia não é uma simples questão de sim ou não; ela tem muitas dimensões. Tomemos a questão da igualdade. No estudo que fundou a teoria democrática, Aristóteles argumentou que um Estado democrático deve ser ``uma comunidade de iguais, que visa a melhor vida possível'' para todos. A democracia terá graves falhas se não forem eliminados os extremos de riqueza e pobreza e se todos não puderem participar em termos iguais. Uma democracia deve assegurar a ``prosperidade duradoura dos pobres'', por meio da distribuição de ``verbas públicas''. Ela deve ser um Estado de bem-estar social.
Esse conceito persiste através das revoluções democráticas modernas e do liberalismo clássico. Em seu célebre estudo sobre a democracia na América, Tocqueville enfatizou a importância crucial da igualdade de condições e alertou que a democracia não sobreviveria se a ``aristocracia manufatureira'' ganhasse poder demais, como ela mais tarde fez, ultrapassando de longe seus piores temores.
Um século mais tarde, o mais importante filósofo social dos EUA, John Dewey, aplicou o mesmo raciocínio tradicional à era contemporânea. Argumentou que não pode existir uma democracia real quando o país é governado pelas ``empresas visando o lucro privado, por meio do controle privado dos bancos, da terra e da indústria, reforçado pelo comando da imprensa, dos agentes de imprensa e de outros meios de publicidade e propaganda''; ``quem detiver sua posse governará a vida do país'', e a política será ``a sombra lançada sobre a sociedade pelas grandes empresas''.
Por razões semelhantes, o principal arquiteto do sistema constitucional, James Madison, havia observado que ``sem um povo informado ou que tenha meios para adquirir informação, um governo popular não passa de um Prólogo a uma Farsa ou a uma Tragédia, ou possivelmente a ambas''. A CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) chegou à mesma conclusão alguns anos atrás, quando pediu medidas para democratizar a mídia nacional para que ela não funcione como instrumento de conglomerados privados ou do poder do Estado.
Esses são alguns dos elementos fundamentais de uma sociedade democrática, se com esse termo pretendemos designar uma sociedade na qual as pessoas possam desempenhar um papel significativo na direção das questões que lhes dizem respeito.
Como fica a democracia brasileira, quando julgada por esses critérios? Ou a americana? A resposta dada por mais de 80% da população americana é semelhante à de Dewey: que o sistema político atende a ``poucos interesses especiais'', não ao ``povo''. A mesma proporção vê o sistema econômico como sendo ``inerentemente injusto''. Os mecanismos formais da democracia existem, mas funcionam dentro dos limites estreitos traçados pelo poder privado.
No caso dos EUA, do Brasil ou de outras democracias parciais, o estado da democracia não pode ser captado em uma única frase. Há muitos fatores a levar em conta. Por exemplo, pode o Brasil (ou os EUA) ter ``eleições justas'' quando a mídia se encontra majoritariamente sob o controle da grande riqueza? Pode a democracia funcionar quando as decisões básicas estão nas mãos do poder privado e de instituições financeiras internacionais, que não precisam responder a ninguém por sua atuação? Ou quando boa parte da população é obrigada a lutar pela mera sobrevivência?
As formas democráticas são uma conquista, e as modalidades de participação e de ação popular devem ser protegidas e ampliadas, tanto no sistema político quanto na sociedade civil. Mas sem ilusões quanto às restrições existentes à democracia e às forças que esperam reduzir a democracia a uma mera sombra.
O Brasil transmite a impressão de um país miserável? Ou de um país rico? Evidentemente, de ambas as coisas. Não é segredo que o Brasil concorre ao recorde mundial de desigualdade, com setores de riqueza extrema em meio ao sofrimento e à miséria em grande escala, e com uma extraordinária concentração de terras, boa parte delas ociosas, enquanto aqueles que precisam dela mal possuem meios de sobrevivência -uma situação escandalosa, em um país de potencial tão imenso.
Folha - O senhor teve oportunidade de assistir a nossa televisão? Conseguiu avaliar sua influência generalizada?
Chomsky -
A maior parte do que sei a respeito vem de leituras, e é muito pouco para me permitir fazer um comentário sério.
Folha - Qual é a imagem do Brasil na mídia americana?
Chomsky -
A cobertura de notícias do exterior costuma ser pequena na mídia americana. No caso do Brasil, por exemplo, virtualmente nada foi divulgado sobre o papel dos EUA no estabelecimento e manutenção do regime militar. O Brasil foi elogiado como sendo um ``milagre econômico'', uma ``história de sucesso'' das políticas americanas, enquanto pouca atenção era dada ao fato de que o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU situou o Brasil perto da Albânia e o que isso indica sobre o papel americano, questão que deveria importar sobremaneira aos cidadãos de uma democracia.
Folha - Qual é sua opinião sobre a imprensa e a mídia brasileira?
Chomsky -
Mais uma vez, tenho opiniões, mas não me atrevo a tecer comentários antes de fazer uma pesquisa cuidadosa.
Folha - Diferentemente da maioria dos países europeus, mas à semelhança de alguns asiáticos, o Brasil, sua população e sua cultura são muito orientados aos EUA. Aqui, qualquer coisa americana é considerada boa, os astros pop americanos são ídolos e, enquanto as crianças sonham com a Disney World e os adolescentes com tênis Nike, os adultos querem um apartamento em Miami. Excetuando uma pequena parte da ``intelligentsia'', não há nem sequer sinal de antiamericanismo no Brasil. Como o senhor vê essa situação?
Chomsky -
``Antiamericanismo'' é um conceito curioso. De qual América se está falando? Serão os 80% de americanos que criticam o sistema político e econômico dos EUA ``antiamericanos''? Ou será Dewey, que era ``tão americano quanto a torta de maçã''?
A cultura popular dos EUA exerce grande influência em boa parte do mundo, incluindo a Europa, e o sistema doutrinal americano está fortemente instalado na Europa e em outras partes do mundo. Sem dúvida, muitas pessoas gostariam de compartilhar do estilo de vida que vêem retratado na televisão e no cinema, um quadro que é gravemente distorcido, mas não inteiramente falso. Desde sua origem, os EUA gozaram de privilégios que não têm paralelo. Os índices de saúde e mortalidade dos colonizadores do século 18 não foram alcançados pelas classes altas britânicas até o início deste século, e muito menos ainda por outros.
Em meados do século 20 os EUA possuíam literalmente metade da riqueza do mundo. Os EUA também superam outras sociedades industriais em termos de pobreza, fome, mortalidade infantil, homicídios de crianças e outros males típicos do Terceiro Mundo. Duvido que muitos brasileiros gostariam de viver nas favelas urbanas, onde a expectativa de vida dos homens negros se iguala ao nível de Bangladesh. Tampouco acredito que muitos brasileiros familiarizados com os fatos admirassem o histórico norte-americano no Terceiro Mundo, incluindo na América do Sul, que não preciso rever.
Não faz sentido admirar ou desprezar ``um país''. Essas atitudes são próprias para se ter em relação a realizações, princípios, lutas, crimes... -e essas coisas não têm cores nos mapas.


Folha - O sr. pretende escrever um artigo ou ensaio sobre o Brasil e sua visita ao país?
Chomsky -
Minha visita certamente enriqueceu a compreensão que tenho do Brasil e já afetou o que eu digo e escrevo. Mas eu não ousaria escrever sobre o Brasil, nem mesmo sobre um país que fosse muito menos diverso e complexo do que ele, com base num contato pessoal de curta duração.
Folha - O sr. tem uma atitude altamente crítica em relação à imprensa americana, que, em outras partes do mundo, é invejada e vista como uma imprensa muito boa e livre. Poderia enunciar os principais pontos em relação aos quais o senhor discorda da maneira como a imprensa funciona?
Chomsky -
A imprensa funciona em grande medida da maneira que Madison temia. John Dewey apontou há muito tempo que uma crítica séria dos ``abusos específicos'' cometidos por ``nossa imprensa não-livre'' deve buscar suas origens: ``o efeito necessário do atual sistema econômico sobre todo o sistema de publicidade; sobre a avaliação do que é notícia, sobre a seleção e eliminação dos assuntos que são divulgados, sobre o tratamento dado às notícias tanto nas colunas editoriais quanto nas do noticiário''. O conselho é válido. Se quisermos entender os órgãos de imprensa, devemos começar por perguntar o que são.
Os maiores órgãos de imprensa são empresas enormes que integram conglomerados ainda maiores. São estreitamente integrados com o nexo Estado-privado que domina a vida econômica e política. Como outras empresas, vendem um produto a um mercado. Seu mercado é composto por outras empresas (anunciantes). O ``produto'' que vendem é a audiência; no caso da mídia de elite, que estabelece a agenda para as outras, são audiências privilegiadas. Uma pessoa racional poderia esperar que tais instituições montassem um quadro do mundo que refletisse os interesses dos vendedores, o mercado, e (para as mídias de elite) a audiência/produto.
Então nos voltamos à pergunta empírica: essa expectativa racional é satisfeita? As evidências avassaladoras indicam que sim, o que não chega a surpreender. Existem milhares de páginas de documentação detalhada sobre o assunto, sujeitando a tese aos testes mais difíceis que já foram propostos. Ela resiste muito bem a todos. Não conheço qualquer crítica séria a ela. As conclusões e as provas são acessíveis, e os interessados podem fazer sua própria avaliação.
O esquema geral consiste em incentivar o debate, mas dentro de um quadro estreito de pressupostos que constituem uma espécie de ``doutrina oficial''. Para ilustrar o que digo, consideremos um tema importante do noticiário na década de 80: a Nicarágua. Na imprensa de elite, encontramos um debate entre ``falcões'' e ``pombas'', mas ambos os lados compartilham uma premissa comum: que é preciso derrubar o governo da Nicarágua. ``Falcões'' e ``pombas'' discutiam acirradamente os meios para se alcançar esse fim comum e não-questionado. Os ``falcões'' advogavam o terror e a violência. As ``pombas'' argumentavam que o estrangulamento econômico e outros meios assemelhados representariam uma maneira mais eficaz de restaurar a Nicarágua ao ``modo centro-americano'' e impor os ``padrões regionais'' -os padrões dos Estados terroristas assassinos de El Salvador e Guatemala, respaldados pelos EUA. Os casos de discordância desse quadro geral foram muito raros.
O mesmo padrão aplica-se, de modo geral, também às questões de âmbito nacional. Essas conclusões não devem suscitar surpresa nenhuma, dada a estrutura institucional da mídia.
Os enormes recursos de que dispõe a mídia empresarial permitem uma cobertura substancial, que muitas vezes resulta em trabalhos muito reveladores. E deve-se admirar a liberdade que a imprensa americana goza em relação ao controle governamental. É realmente incomum, possivelmente única no mundo. A subordinação ao poder em temas cruciais não é compelida pela força, mas escolhida -dentro, é claro, das restrições institucionais, que não são muito obscuras.
Folha - Sua crítica se estende à chamada ``grande imprensa'' pelo mundo afora, ou se limita aos EUA? O senhor já traçou alguma comparação entre a imprensa americana e a imprensa européia ocidental, digamos, ou as imprensas latino-americana e asiática? Se já o fez, quais foram suas conclusões?
Chomsky -
Já foram feitos alguns estudos da mídia de outros países, mas não em escala comparável às pesquisas realizadas sobre a mídia americana. As conclusões foram semelhantes, de modo geral, embora não idênticas (também existem variações interessantes dentro dos EUA). E há muitos ótimos jornalistas que se recusam a se dobrar diante das pressões. Muitos deles, baseados em suas experiências pessoais com a mídia, são muito mais críticos em relação a ela do que eu.
Reluto em dizer muita coisa sobre a ``grande imprensa'' fora dos EUA até que tenham sido empreendidas pesquisas mais sistemáticas a respeito.
Folha - Qual é a verdadeira importância da imprensa e da mídia num país como os EUA? Ela é um pilar importante do poder ou um pilar secundário? Uma imprensa ideal, inteiramente honesta e totalmente livre, faria alguma diferença? Não é possível que o público não se importe, e que a imprensa simplesmente reflita esse fato?
Chomsky -
Como mencionei, existem provas contundentes de que aquilo que a mídia produz é moldado para atender às necessidades das instituições de poder e dominação nas quais ela se embute, mais ou menos como Dewey descreveu (como também o fez George Orwell, embora sua crítica da ``censura'' voluntária na Inglaterra tenha sido suprimida por muitos anos). Ademais, grandes esforços são feitos para garantir esses resultados. A enorme indústria de relações públicas foi montada no início deste século com o objetivo explícito de ``controlar a mente pública'', ``arregimentar as mentes do público, assim como um exército arregimenta os corpos de seus soldados'' etc. Líderes empresariais reconheceram que ``o maior perigo com que os industriais se defrontam'' é ``o recém-reconhecido poder político das massas'', e que seria necessário travar e vencer ``a eterna batalha pelas mentes dos homens'', usando todos os meios possíveis. Recursos enormes foram dedicados à arregimentação de escolas, universidades, mídia, indústria do entretenimento e todos os outros meios imagináveis para alcançar esses objetivos. As medidas utilizadas variam do estímulo de desejos artificiais à doutrinação direta. A necessidade de usar tais medidas é, ademais, um dos tópicos que comumente integram a teoria política acadêmica, incluindo seus elementos mais progressistas, com base no princípio de que ``os homens não são os melhores juízes de seus próprios interesses'' e devem ser reduzidos à apatia e à obediência para prevenir a ``crise da democracia'' que se produz quando as pessoas tentam ingressar na arena política, espaço que não lhes pertence.
Pode-se optar por ignorar os fatos e o pensamento extenso subjacente a eles. Mas nem por isso eles deixam de existir.
Para os poderosos, é conveniente, com certeza, dizer a eles mesmos que ``o público não se importa''. Se é fato, por que eles simplesmente não dizem a verdade, que é sempre o caminho mais simples? E por que aplicam recursos tão imensos na manipulação e no engodo, desenvolvendo uma estrutura doutrinária ricamente articulada para justificar o que fazem?
Também se poderia indagar por que muitas vezes há diferenças tão grandes entre a opinião pública e a política pública -fato igualmente bem documentado- e por que as pessoas normalmente expressam grande descontentamento com as políticas realizadas em seu nome, quando os fatos vazam para o conhecimento público, como às vezes acontece.
Minha própria opinião é que os poderosos e seus criados estão certos, basicamente. A capacidade de exercer coerção pela força vem decrescendo com o passar dos anos, e, assim, tornou-se mais importante ``controlar a mente do público'' do que superar a ameaça de que a democracia possa realmente funcionar, com o ``perigo'' que ela representa àqueles que lançam ``a sombra chamada `política'± ''.
Folha - Por falar nessa imprensa ideal, qual seria sua aparência? Quem a patrocinaria? A que tipo de controle seria sujeita? Por quem?
Chomsky -
Sugiro que se sigam os conselhos da CNBB, de Dewey e de muitos outros. Na medida em que as instituições são controladas pelo poder que não responde a ninguém -poder de Estado ou privado-, elas vão atender ao interesse público apenas por acaso.


Devemos nos opor às tiranias de qualquer espécie; esses princípios se estendem ao controle da mídia pelo poder privado concentrado. Qualquer sistema de autoridade, poder e dominação tem uma pesada carga de justificativa a suportar, e, se não puder demonstrar sua legitimidade, deve ser desmontado e submetido ao controle popular. A questão se apresenta com contundência especial no caso dos sistemas de informação e comunicação, por razões evidentes -por exemplo, pelas razões realçadas por Madison. Mas os princípios são gerais. Boa parte da história humana consiste nas lutas populares para aplicar esses princípios em áreas cada vez mais amplas, e não estamos nem sequer perto do fim da estrada.
As questões que você levanta são difíceis demais para serem respondidas em fórmulas fáceis, assim como são difíceis de se responder na arena do processo decisório político e econômico. Como muitas vezes no passado, precisamos criar formas de participação e controle democrático, realizando experiências com as diversas possibilidades. Os projetos de televisão com base comunitária existentes no Brasil, sobre os quais aprendi algo (e que pude testemunhar) quando estive no Rio, são um exemplo muito sugestivo. Tenho minhas próprias opiniões sobre esses assuntos, que remontam a idéias do Iluminismo e do liberalismo clássico que foram ampliadas por movimentos democráticos e libertários esquerdistas radicais, incluindo o movimento sindical independente. Já escrevi e falei muito sobre essas questões, inclusive durante minha visita ao Brasil, mas não posso revê-las em poucas palavras.
Folha - Como o senhor encara a decisão tomada pelo governo islâmico do Irã de proibir o uso de antenas parabólicas no país?
Chomsky -
É ultrajante, evidentemente, como é qualquer medida tomada pelo poder público ou privado para restringir o acesso público às informações e opiniões.
Folha - A maneira como as informações viajam na Internet se assemelha ao tipo de imprensa e mídia ideal que o senhor visualiza, ou ela não passa de um novo tipo de engodo manipulador?
Chomsky -
A Internet, assim como a maior parte da tecnologia avançada, foi desenvolvida com dinheiro público, supostamente para fins de ``segurança'', e agora está sendo entregue ao poder privado. Muitos analistas da indústria prevêem que, a continuarem os processos já em curso, o sistema será controlado, em grande medida, por algumas poucas enormes megacorporações internacionais. Elas, naturalmente, vão procurar modificar o caráter da Internet para atender a seus próprios interesses.
Isso pode servir como mais uma ilustração de como as questões são apresentadas pela mídia nos interesses do poder privado. A legislação e os acordos comerciais recebem tratamento de notícias de negócios: como deve o enorme sistema construído às custas públicas ser transferido para o poder privado? Existe outra pergunta: será que isso deve ser feito ou será que o sistema deve ser submetido ao controle popular? Essa questão praticamente não foi levantada, embora esteja claro que possua grande importância para o futuro da democracia.
A própria tecnologia, em si, é neutra: pode ser usada para dominar e controlar ou para liberar. Depende de quem está no comando. Se, como se prevê, o sistema for entregue a algumas poucas megacorporações, será usado como apenas mais um meio de tentar transformar o público em átomos isolados de consumo, passivos e marginalizados, obedientes e separados uns dos outros. Isso não precisa obrigatoriamente acontecer, assim como não é característica necessária de outras tecnologias de comunicações -a imprensa escrita, o rádio, a televisão etc. O poder privado e os órgãos de Estado que atendem a ele têm suas próprias pautas de prioridades, que não são secretas, longe disso. A luta popular pode, como sempre, produzir um resultado diferente.
Folha - A existência de redes noticiosas que funcionam 24 horas por dia e transmitem seus noticiários para o mundo inteiro faz algum tipo de diferença?
Chomsky -
Depende do que esses serviços estão fazendo. Os serviços noticiosos estão diminuindo, na verdade de forma bastante acentuada, excetuando o noticiário de negócios. Deixando isso de lado, não podemos ignorar os pontos mencionados anteriormente, sobre os fatores que limitam e distorcem o que a mídia nos apresenta.
Folha - A maioria dos observadores concorda que a maior parte da população dos países ditatoriais não leva as mentiras oficiais a sério por muito tempo. No Brasil, por exemplo, durante pelo menos os últimos dez anos do regime militar, qualquer coisa que o governo dissesse era automaticamente vista como mentira. A mesma coisa aconteceu depois dos anos 50 em países como a Polônia, Hungria e até mesmo a URSS. O que dizer dos americanos?
Chomsky -
Parece ser verdade. Uma consequência disso é que, nas ditaduras, as pessoas muitas vezes buscam informações em outras partes. Estudos acadêmicos e do governo americano feitos nos anos 70 revelaram que, na URSS, a maior parte da população ouvia transmissões estrangeiras, e a imprensa independente (``Samizdat'') atingia quase metade dos profissionais e muitos trabalhadores de colarinho azul. Nos EUA, praticamente ninguém ouve transmissões estrangeiras, e até mesmo a imprensa levemente independente atinge apenas uma minúscula fração da população, em sua maioria instruída.
Se esses resultados forem corretos, indicam que, sob a tirania soviética, as pessoas tinham acesso a fontes de informação muito mais amplas do que os americanos, segundo alguns critérios. E o que você sugere, provavelmente, é fato. Quando o Ministério da Verdade emitir uma declaração, as pessoas provavelmente a receberão com ceticismo, a ponto de acreditar que a verdade é o oposto dela. Um sistema habilidoso de propaganda não funciona dessa maneira. Em lugar disso, procura fomentar o debate animado, sem restringir as premissas que permanecem implícitas, na expectativa de que as pessoas vão acabar aceitando as premissas tácitas e, ao mesmo tempo, acreditar que as questões em pauta estão realmente sendo debatidas a sério. Esse é o método geralmente adotado por aqueles que buscam ``arregimentar as mentes dos homens'' em sociedades mais livres.
Não é fácil determinar quão bem funcionam os métodos. Já estudei vários casos a fundo, e outros fizeram o mesmo. Os resultados são mistos. É verdade que, com o passar do tempo, as pessoas tendem a internacionalizar seus valores e crenças, mas muitas vezes elas se mostram muito resistentes a isso. Tomemos o caso da Guerra do Vietnã. No início dos anos 70, cerca de 70% da população americana via a guerra dos EUA no país como sendo ``fundamentalmente e moralmente errada'', não como sendo ``um erro''. As ``pombas'' do espectro político de centro afirmavam que era apenas ``um erro'', que os EUA haviam entrado na guerra com ``esforços desajeitados para fazer o bem'', mas que seus passos em falso haviam se tornado caros demais -para a sociedade americana. A disparidade acentuada entre o público e os líderes de opinião é dramática. Por outro lado, os poucos estudos feitos sobre o assunto indicam que os americanos estimam o número de vietnamitas mortos em cerca de 100 mil, ou seja, 5% da cifra oficial fornecida pelo governo americano. Se os alemães estimassem o número de vítimas judias do Holocausto em 300 mil, isso suscitaria reações de preocupação, para dizer o mínimo. Mas isso não aconteceu no caso do Vietnã. O exemplo ilustra tanto a resistência popular à propaganda quanto sua subordinação a ela. Há muitos outros exemplos.
A situação é complexa e não pode ser descrita numa frase simples.
Folha - Que pessoas são as vítimas mais fáceis da manipulação por parte da mídia?
Chomsky -
Não conheço nenhum estudo sério a respeito, mas é possível que os setores mais instruídos tendam a ser os mais profundamente doutrinados. Se isso for verdade, não será muito surpreendente. Afinal, eles são os administradores doutrinais, e são poucas as pessoas que conseguem mentir conscientemente; o padrão usual é que se adotem as crenças que servem a nossos interesses. Ademais, esses setores são sujeitos a muito mais propaganda, em função do fato de serem instruídos. O sistema de ensino de elite também tende a selecionar as pessoas para a obediência; aquelas que não se encaixam nesse padrão muitas vezes são excluídas, de muitas maneiras. Acho que é um assunto que vale a pena ser estudado.


Tradução de Clara Allain.

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