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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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Protestos em todo o mundo ajudaram a mídia dos EUA a modificar sua percepção de um eventual ataque contra o Iraque

Entre o silêncio e o ruído

Alain Touraine

Toni Albir - 15.fev.2003/Associated Press/EFE
Espanhóis protestam contra a guerra tendo ao fundo réplica do quadro "Guernica", de Picasso, em Barcelona


Estou em Nova York há duas semanas. É pouco tempo, mas durante esse tempo assisti a uma reviravolta quase completa na opinião pública. No início de minha estada, não se ouvia nenhuma discussão pública. A imprensa escrita e a televisão, o Senado e a Câmara dos Deputados, as vozes que normalmente interpretam a opinião pública, todos estavam calados ou, em lugar disso, anunciavam em voz alta seu patriotismo, com isso comovendo profundamente uma população extremamente traumatizada pelo atentado maciço de 11 de setembro, que acabou com a confiança dos americanos em sua própria invulnerabilidade. Eu nunca antes tinha notado um silêncio tão grande neste país, onde a imprensa frequentemente manifesta liberdade de opinião e as inúmeras redes de televisão parecem informar o público com fartura. Chamava a atenção até mesmo a ausência de informações publicadas pelo "New York Times" sobre as grandes manifestações realizadas no exterior ou no interior dos Estados Unidos.

Medo crescente
O cenário político era inteiramente ocupado por Bush, que aparecia menos como o eleito da maioria -por sinal, em condições altamente discutíveis- do que como agente da Providência, alguém vindo para cumprir a missão sagrada de fazer recuar as forças do mal. Os Estados Unidos davam a impressão de estar avançando rapidamente em direção a uma intervenção armada à qual ninguém se opunha e que muitos aprovavam em silêncio. Em poucos dias, a situação mudou profundamente, e por três motivos principais. O primeiro é o medo crescente de represálias químicas e biológicas lançadas pela [rede terrorista" Al Qaeda, cujas ligações com o Iraque não foram demonstradas, mas que quase certamente aproveitaria uma situação de guerra para lançar novos ataques terroristas. O segundo é a ascensão dos movimentos de oposição à guerra em todo o mundo. A terceira foi o espetáculo do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cujas reuniões nunca interessaram ao público, mas que, apesar da forte persuasão do secretário de Estado americano, Colin Powell, demonstrou a fragilidade dos argumentos sobre os quais se baseia o pedido de intervenção dos EUA. Essa decepção, aliás, foi ainda maior porque ninguém pensou em comentar a gravidade dos crimes de Saddam Hussein. No prazo de dois ou três dias, começaram a ser ouvidas as vozes de alguns adversários da guerra. A primeira que eu ouvi foi a de Susan Sarandon. O "New York Times" acabou por divulgar algumas notícias sobre os movimentos de oposição à guerra, e a manifestação do dia 15 de fevereiro, na qual professores e estudantes ocuparam lugar de destaque, mas na qual também se viam sindicalistas e militantes políticos -sendo que as igrejas negras ainda não tinham enviado suas tropas numerosas-, mostrou a muita gente que a unanimidade de fachada não se baseava num consenso real. No dia seguinte a essa manifestação, o "New York Times" finalmente dedicou sua primeira página às manifestações (de Praga e de Nova York). É pouco provável que o movimento de protesto perca força enquanto o Conselho de Segurança continuar a exercer pressão forte para que seja dado um prazo complementar aos inspetores de armas, antes que seja submetida ao voto dos delegados uma resolução condenando o Iraque por completo. Mas nos sentimos envolvidos numa corrida entre a mobilização da opinião pública, forçosamente lenta e pouco organizada, e o projeto presidencial de intervenção militar, que está quase completamente pronto, de tal modo que, tecnicamente falando, os preparativos para a possível intervenção estarão inteiramente concluídos dentro de bem pouco tempo.

Prós e contras
Aqui, nos Estados Unidos, a hipótese mais dramática, a de uma intervenção maciça no Iraque, continua a ser vista como a mais provável -mesmo porque é improvável que, até lá, os temores da opinião pública tenham feito desaparecer o patriotismo que se traduz no apoio dado à ação pessoal do presidente.
Os mais otimistas, porém, observarão que os Estados Unidos já estão pagando caro por sua política guerreira: a Otan [aliança militar ocidental] está em ruínas, os apoios internacionais de que os Estados Unidos desfrutavam estão em baixa e o risco de represálias terroristas aumenta. O mais urgente, portanto, é que sejam reforçados os protestos internacionais, pois se torna cada vez mais claro que uma intervenção americana não poderia se limitar ao Iraque; podemos prever que o Oriente Médio inteiro seria afetado, levando à necessidade de uma intervenção americana de longo prazo, como houve e ainda há em certas regiões da América Latina, como o Haiti e, sobretudo, a República Dominicana.
É isso que está em jogo nessa guerra possível e até provável: estamos falando de muito mais do que apenas o controle sobre o petróleo. Trata-se da hegemonia americana no mundo, que vem assumindo uma forma cada vez mais insustentável, fato que pode levar o presidente Bush a tomar as decisões unilaterais mais completas, com consequências imprevisíveis tanto para os próprios norte-americanos quanto para os outros países do mundo.
Sentimos que a contagem regressiva começou e que é preciso interrompê-la, por todos os meios possíveis. Todas as mídias, os governos ou os líderes de opinião, em toda a parte, devem considerar-se responsáveis por encontrarmos uma saída para uma crise que se aproxima rapidamente do momento em que serão tomadas decisões irrevogáveis.

Alain Touraine, sociólogo, é diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes), entre outros.
Tradução de Clara Allain.


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